Saúde e Bem-Estar

Mariana Ceccon, especial para a Gazeta do Povo

O que é MMS e por que pais estão dando cloro aos filhos com autismo

Mariana Ceccon, especial para a Gazeta do Povo
23/05/2019 07:30
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A Anvisa se manifestou recentemente contra a substância e a prática, que podem causar danos à saúde. Foto: Bigstock.

Impossível não se chocar com os relatos de pais que buscam curar os sintomas de autismo de seus filhos, aplicando um derivado do cloro, por via retal e oral, nas crianças.
A história tem tudo para ser mais uma daquelas que aparecem no submundo da internet e lá devem permanecer. Mas a verdade é que o uso do MMS (do inglês, Solução Milagrosa Mineral) tem angariado cada vez mais adeptos, apesar de o produto ser claramente contraindicado pelas autoridades médicas e proibido pelas instituições sanitárias do país, devido ao seu caráter corrosivo.

“A combinação é explosiva e fatal”, define o neurologista pediátrico do Hospital Pequeno Príncipe, Antônio Carlos de Farias. “Temos uma criança que não consegue se manifestar claramente – mostrando o que o produto está lhe causando –, pais desesperados por um milagre e charlatões se aproveitando da situação”, declara o médico.

Charlatões, água sanitária, cura e milagre são palavras que aparecem obrigatoriamente em buscas e em qualquer artigo ou entrevista sobre o tema. É fácil entender porque o “tratamento” causa esse tipo de reação. A história da chegada do MMS no Brasil é bem longa e possui todos os pontos que chamariam atenção para uma farsa.

O autodeclarado descobridor da substância, o norte-americano Jim Humble, alega que durante uma expedição a Amazônia, em 1996, curou um companheiro da malária usando uma dose de clorito de sódio dissolvido em água.
De lá para o cá, o cientologista diz ter descoberto que, misturado a um meio ácido, as curas acontecem pelo dióxido de cloro, um químico utilizado no tratamento de água e na composição de produtos de limpeza como alvejantes.
A popularização do  MMS aconteceu a partir de 2013, quando uma mãe, também norte-americana, lançou um livro contando como havia praticamente anulado todos os sinais severos de autismo de seu filho, seguindo um protocolo de sete passos. Foto: Bigstock
A popularização do MMS aconteceu a partir de 2013, quando uma mãe, também norte-americana, lançou um livro contando como havia praticamente anulado todos os sinais severos de autismo de seu filho, seguindo um protocolo de sete passos. Foto: Bigstock
Maravilhado com a sua descoberta, Humble fundou uma igreja de saúde e cura, batizada de Gênesis II. “O culto é a saúde e o sacramento é o protocolo de cuidados”, define um dos embaixadores da instituição no Brasil, o técnico em informática Leonardo Araújo da Silva, de 41 anos, com quem a reportagem de Viver Bem conversou.

Para os membros da religião, o MMS atua como uma espécie de purificante livrando quem o ingere da intoxicação por metais pesados e principalmente da infecção por parasitas e vermes.  Para os seguidores, a crença leva a cura de dezenas de doenças como câncer, HIV, fibromialgia e também o que eles chamam de sintomas conhecidos como autismo.

A popularização do MMS, no entanto, aconteceu apenas a partir de 2013, quando uma mãe, também norte-americana, lançou um livro contando como havia praticamente anulado todos os sinais severos de autismo de seu filho, seguindo um protocolo de sete passos.
Nesta dieta restrita ela eliminou o açúcar, glúten e laticínios, fez sessões em câmaras de oxigênio e aplicações do dióxido de cloro para eliminar parasitas e metais pesados.
Em quase 800 páginas em que descreve sua experiência, a norte-americana Kerri Rivera ocupa-se em descrever o método e tentar comprová-lo, a partir de testemunhos de algumas dezenas de famílias, como o protocolo poderia ser inovador.
No entanto, logo na primeira página os leitores são avisados de que os autores não se responsabilizam pela acurácia científica da obra. O mal estar causado pelo livro, no entanto, está levando livrarias em todo o país a recolherem o título nos últimos meses.
A solução para a propagação do conteúdo hoje se restringe a uma cuidadosa rede de grupos em redes sociais e Whatsapp, muito ligados aos movimentos anti-vacinação, que compartilham não só o livro, como também o produto proibido e conselhos de como o aplicar.

A argumentação passa também pelo discurso conspiracionista. “Uma quantidade de R$ 80 em MMS, por exemplo, poderia tratar a população de uma rua inteira de dengue, por exemplo. É muito barato, então há interesse em não se divulgar isso”, comenta o embaixador da Gênesis, Leonardo da Silva.

Ele garante que utiliza a substância em si mesmo há três anos e já atendeu mais de quatro mil pessoas, todas online, compartilhando sua experiência. “Não forço ninguém a comprar. Eu relato minha experiência porque na Gênesis não há intenção comercial. Nós passamos o conhecimento como uma forma de gratidão”, conta.
Para atingir os pais com filhos portadores do autismo, Silva diz participar de grupos formado por pais, terapeutas e entusiastas. O maior deles reúne mais de 300 membros que recebem informações sobre o método de aplicação do produto e enviam, uns para os outros, vidros do MMS.
“O aconselhamento é que o pai teste em si mesmo antes. A regra de ouro é que o corpo precisa se adaptar, então o protocolo prevê uma gota dissolvida em um copo de água e com o tempo vai aumentando a dose para não haver nenhuma reação forte indesejada”.
Por reação indesejada entenda-se vômitos, diarreia, náusea, tontura e até desidratação. Para os crentes, esses são os sinais de que o corpo está eliminando as toxinas. Para os médicos, os sintomas são reações ao potencial corrosivo do produto.
Além desses sintomas, os usuários do MMS garantem que vermes e parasitas são expelidos no vaso sanitário em quantidades impactantes e que podem garantir uma boa noite de sono para os filhos autistas, logo no primeiro enema (aplicação retal).

“É um nível de charlatanismo que me espanta, porque não são parasitas e sim a mucosa do intestino descamando”, reforça o neuropediatra Antonio Carlos de Farias. “É uma judiação. A criança desidrata, fica sonolenta e mais caidinha e atribuem como uma melhora no comportamento”, afirma.

“Temos diversos casos que chegam na emergência com vômito e diarreia em crianças autistas que não têm quadro viral. Imediatamente questionamos os pais sobre o uso desse produto e a maioria nega, porque são orientados a isso. É uma seita”, pontua.

Por que estou dando cloro para o meu filho?

Anúncios espalhados pela internet oferecem o produto que é proibido pela Anvisa por ser considerado corrosivo. Foto: Reprodução.
Anúncios espalhados pela internet oferecem o produto que é proibido pela Anvisa por ser considerado corrosivo. Foto: Reprodução.
Depois de ser incluída em um grupo para tratamentos naturais, a autônoma C.M., 32 anos resolveu testar a eficácia do MMS em uma ferida na perna do filho mais novo. Ela diz que uma queimadura foi tratada em três dias e obteve uma cicatrização que há semanas lutava para conseguir usando pomadas convencionais. “Depois de ver funcionando passei a cogitar o uso no meu filho mais velho, que tem autismo. Foi muito tempo lendo e procurando informações”.
Na internet a autônoma encontrou vídeos de médicos naturopatas de renome, como Lair Ribeiro e José Bussade que abertamente defendem o uso da substância, apesar de fazerem considerações com relação a possível falta de qualidade e adulteração do produto sendo vendido sem regulamentação.

“Logo de cara você fica com o pé atrás, vê coisas negativas, mas depois eu e uma amiga que também tem filha no espectro autista passamos a pesquisar e testar o produto juntas. Os resultados foram muito bons”.

A autônoma, que tem medo de se identificar por sofrer possíveis represálias, conta que o filho de 7 anos tomou, no início deste ano, doses do dióxido divididas em 18 dias.
“Ele tinha crises, se debatia muito, qualquer coisa que o tirasse da rotina causava grande impacto. Hoje ele olha para câmera para tirar fotos, é uma criança feliz. Está mais ativo e consegue entender melhor problemas e interpretação de texto”, resume.
Apesar da melhora, ela diz que o filho recusou a substância faltando três dias para encerrar o tratamento inicial devido ao forte cheiro do cloro.
“O gosto realmente não é agradável, parece desinfetante. Mas vou esperar um tempo e reiniciar o protocolo. Eu não tenho medo porque eu uso, meu marido usa e até usei nas patinhas da minha cachorra”, contou.
A empresária , D.R., de 36 anos teve um caminho semelhante de apresentação ao produto. No entanto ela diz que além de oferecer MMS via oral, ela realiza enemas com soro no filho de 7 anos. “Todo pai de autista sabe que existem crises fortes de constipação, então fazemos isso para a criança sentir alívio. Você compra kits para enemas na farmácia, com água morna, e não entendo porque isso costuma causar tanto espanto entre as pessoas”, declara.

“Meu filho não faz mais as necessidades nas calças, está muito calmo e isso eu atribuo também a uma dieta e alimentação mais regrada que estamos fazendo”, conta.

Para a empresária, o medo de reações não é maior do que a vontade pela cura. “Eu não tenho sentimento de culpa ou de erro por estar causando prejuízo a ele. Se eu tivesse notado que está fazendo mal, não ia dar. Tudo que a gente quer é fazer algo que melhore a vida deles, tentando acertar”, argumenta.

Para associação, MMS é como realizar lobotomia

Lutando pelos direitos das pessoas com autismo, a associação Abraça condena o uso do MMS e compara a aplicação com outras formas de terapias agressivas.  O secretário-geral da associação, Alexandre Mapurunga diz que a instituição discursou em 2016, na ONU (Organizações das Nações Unidas), sobre o assunto.

“Tem muitos autistas que têm comportamento agressivo, por exemplo. Uma das soluções radicais que se propõe para isso é fazer neurocirurgia para arrancar o centro nervoso da agressividade.  Essa despersonalização é violenta.  Outro tratamento propõe remover todos os metais pesados, uma desintoxicação, inclusive os metais essenciais.  A pessoa fica apática e reduz o comportamento inadequado e isso é entendido como melhora pela família. Há um limite entre o que eu posso fazer, respeitando a dignidade do ser humano, e aquilo que se entende como terapia”, diz o secretário.

Para Mapurunga, o MMS quebra os avanços científicos mais recentes que consideram o autismo como parte da diversidade humana. “Com muita sorte o produto vai ser ineficaz apenas, quando não, está prejudicando a saúde e colocando a pessoa autista em uma situação indigna”, diz.
A criança não consegue se manifestar claramente e mostrar o que o produto está lhe causando. Foto: Bigstock.
A criança não consegue se manifestar claramente e mostrar o que o produto está lhe causando. Foto: Bigstock.
“Ainda que consideremos isso uma terapia experimental, é necessário que as pessoas livremente optem por se submeter. Muitas das pessoas autistas não têm esse discernimento e são forçadas a participar desse ato desumano e degradante. Não é à toa que a distribuição é considerada um crime e a Abraça faz seu papel conscientizando os pais e denunciando ao Ministério Público casos de abuso”, finaliza.
Desde junho de 2018, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vem recolhendo frascos de MMS, autuando fornecedores online e orientando para a retirada de anúncios sobre o tema, por considerar a substância nociva a curto e longo prazo e sua distribuição, um crime de saúde pública.

“O dióxido de cloro é classificado como um produto corrosivo e sua manipulação exige o uso de equipamento de proteção individual. É um produto que também traz riscos pela inalação”, publicou a agência no mês passado.

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