Saúde e Bem-Estar

Diego Antonelli, especial para a Gazeta do Povo

Vício em drogas ultrapassa álcool em leitos hospitalares no Paraná

Diego Antonelli, especial para a Gazeta do Povo
18/05/2019 11:00
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Historicamente, o índice de tratamentos de dependentes apenas de álcool sempre superou o de qualquer outra droga em todo o estado. Foto: Bigstock.

Uma mistura explosiva de álcool, cocaína e crack quase provocou a morte de Renato*. Aos 41 anos, tentou, pela quarta vez, o suicídio. Consumiu, além dos entorpecentes e bebidas alcóolicas, medicamentos. Achava que não fazia sentido seguir vivo. Foi socorrido a tempo. O médico o encaminhou para se tratar em um Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) de Curitiba.
Hoje, passados quatro anos, Renato continua batalhando e se tratando para deixar os vícios, de uma vez por todas, no passado. Diagnosticado com depressão após a perda da mãe, Renato pensou que encontraria nos entorpecentes uma anestesia para a sua dor. “A gente sempre acha que consegue controlar o uso, mas não é assim”, conta.
Aos 35 anos, ele havia mergulhado de vez no uso de drogas. Perdeu o seu emprego como publicitário e viu seu nome ser descartado para outras vagas. Com 37, começou o uso de crack. Viveu por alguns meses na rua. Vendeu tudo o que tinha para sustentar a dependência.
Renato encarou algumas recaídas ao longo do tratamento. “Mas nunca pensei em desistir. É um processo longo. Estou fazendo cursos de gastronomia e de panificação para me recolocar no mercado de trabalho. Quero dar orgulho para minha mãe, onde ela estiver”, ressalta.

A saga de Renato vai ao encontro de uma nova realidade constatada no Paraná. Nos últimos dois anos, ao contrário do que ocorria anteriormente, as internações hospitalares decorrentes do uso de drogas e outras substâncias químicas ultrapassaram o índice de ocorrências provocadas pelo consumo exclusivo de álcool.

Segundo levantamento realizado no banco de dados mantido pelo Ministério da Saúde (DataSus), em 2018, o estado registrou 5.928 internamentos causados por drogas, contra 4.992 de alcoolistas. O ano anterior também apontou para o mesmo fenômeno: 5.099 internações por dependência de álcool contra 5.285 internamentos por consumo de outras drogas. Historicamente, o índice de tratamentos de dependentes apenas de álcool sempre superou o de qualquer outra droga em todo o estado.
As drogas causam dependência que exige tratamento para ser abolida. Foto: Bigstock.
As drogas causam dependência que exige tratamento para ser abolida. Foto: Bigstock.
Na maioria dessas situações, o dependente de outra substância também é viciado em álcool. Portanto, o dado indica que a polidependência química tem se intensificado nos últimos anos.

“Podemos inferir que, a partir desses dados, houve um aumento do consumo de outras drogas, muitas vezes associados ao álcool”, explica a técnica em Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Rejane Tabuti.

Ou seja, há um número maior de pessoas que acumulam a dependência alcoólatra com o vício em outro entorpecente, como o crack, a cocaína, a maconha e até remédios. “Essa é uma realidade. A maioria dos dependentes de outras substâncias também está na dependência alcóolica”, confirma o médico membro da Associação Paranaense de Psiquiatria, Ricardo Assmé.
O crescimento do consumo de crack e cocaína é um dos fatores que mais preocupa os especialistas e o poder público e pode ser uma das causas que acarretou o aumento de internações no estado.
Segundo o médico psiquiatra Marcelo Kimati, secretário da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), uma das formas de explicar esse fenômeno é que houve “um aumento da prevalência de dependência a cocaína durante os últimos anos, em comparação a um consumo de álcool que mantém o mesmo perfil epidemiológico”. “Esta hipótese inclui aqueles usuários de cocaína, incluindo crack, que vinham em uso recreativo e ampliaram o consumo caracterizando dependência”, afirma.
No entanto, Kimati faz uma ressalva e explica que em situações em que há uma demanda de internação maior do que o número de vagas disponíveis, o paciente a ser hospitalizado e internado será aquele em maior vulnerabilidade. “Entre usuários de álcool e de drogas ilícitas, os segundos estarão sempre mais vulneráveis que o primeiro grupo”, salienta.
*Nome fictício para preservar a identidade do entrevistado
Pesquisadores britânicos compilaram 18 estudos que relacionavam a bebida alcoólica a resistência à dor  (Foto: Bigstock)
Pesquisadores britânicos compilaram 18 estudos que relacionavam a bebida alcoólica a resistência à dor (Foto: Bigstock)

Caminho para tratamento começa no posto de saúde

A porta de entrada para o tratamento de transtornos mentais provocados pela dependência química é, geralmente, via postos de saúde dos municípios. Há situações, no entanto, que o encaminhamento para o atendimento pode ocorrer por  Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), proveniente de altas hospitalares ou diretamente nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
“O médico psiquiatra avaliará se é necessária a internação e, em caso contrário, com que frequência o paciente deverá frequentar o Caps”, explica o médico membro da Associação Paranaense de Psiquiatria, Ricardo Assmé.

Apenas casos graves devem ser encaminhados para internação. “O método de tratamento é a promoção de abstinência completa e manutenção da abstinência através de apoio farmacológico, psicoterapêutico e da equipe multidisciplinar”, explica Assmé.

A busca pela unidade de saúde se explica, segundo a técnica em Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Rejane Tabuti, para manter um cuidado integral da saúde do paciente, o que inclui cuidados com demais doenças, como diabetes e hipertensão. “Se tiver necessidade será encaminhado para a internação. Mas isso passa por uma avaliação médica rigorosa”, aponta. No Paraná, são 143 Caps e mais de 2,6 mil leitos de internação em hospitais – sendo 2,1 mil via Sistema Único de Saúde (SUS).
Rejane alerta para a necessidade de se colocar “o paciente no centro do atendimento”. Por isso, mesmo que o Caps não seja especificamente para tratamento de álcool e drogas (os chamados Caps AD), é possível que o atendimento ocorra nos demais Centros.
Em Curitiba, como explica a coordenadora da Saúde Mental do município, Flávia Adachi, os dez Caps adultos de Curitiba já atendem tanto dependentes químicos quanto os pacientes com outros transtornos mentais. “A ideia é ampliar o atendimento e facilitar o acesso ao tratamento. Os Caps possuem uma estrutura multidisciplinar, com médicos, assistentes sociais, terapeutas e enfermeiros, que realizam diversas atividades com os pacientes”, ressalta. Além disso, seis Caps da cidade possuem leitos para situações em que o indivíduo precise de algum tipo de monitoramento.
“Nas situações mais leves há uma equipe de retaguarda nas unidades de saúde, com psiquiatras e psicólogos, para realizar o atendimento. A internação é a última alternativa”, completa Flávia. Além dos Caps, os pacientes podem ser encaminhados para atendimento nos três ambulatórios de saúde mental mantidos pelo município.

A importância da ressocialização

O tratamento nos Caps – por não ser uma internação em tempo integral – permite que o paciente possa trabalhar e estudar. “As pessoas não ficam no Caps, é um sistema aberto que visa a reinserção dessas pessoas na sociedade ao mesmo tempo em que estão se tratando”, afirma a coordenadora da Saúde Mental do município, Flávia Adachi.
No estado do Paraná, existem três unidades de acolhimento nas cidades de Guarapuava, Marmeleiro e Cascavel que visam, justamente, contribuir para a ressocialização desses indivíduos. “As unidades de acolhimento atuam junto com os Caps e as pessoas podem ficar lá por seis meses enquanto estão fazendo o tratamento no Centro de Atenção Psicossocial. Durante este tempo, são incentivados a realizarem cursos e buscarem se recolocar no mercado de trabalho”, explica a técnica em Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Rejane Tabuti.
A meta do governo estadual é implantar unidades de acolhimento em todas as regionais de saúde. Outras três cidades já estão em fase de implantação: Cornélio Procópio, Toledo e Coronel Vivida.

‘Ideológico’

O secretário da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e psiquiatra Marcelo Kimati aponta que “infelizmente, a discussão sobre drogas entrou ainda em um debate pouco pragmático e excessivamente ideológico, aproximando o consumo de uma questão moral.”
Segundo ele, o uso de drogas deve ser tratado como uma questão de saúde pública. “Esse assunto tem sido discutido na perspectiva de segmentar a sociedade entre cidadãos de bem e delinquentes. A perspectiva atual frente aos usuários de drogas coloca-os em situação de vulnerabilidade, aumenta a dificuldade de acessar serviços públicos e aumenta a mortalidade associada, especialmente pela violência relacionada ao tráfico de drogas.”
As pessoas começam a beber cada vez mais jovens e, posteriormente, muitos começam a usar outras sustâncias. Foto: Bigstock.
As pessoas começam a beber cada vez mais jovens e, posteriormente, muitos começam a usar outras sustâncias. Foto: Bigstock.

Álcool, a porta de entrada

Uma das maiores preocupações dos especialistas em saúde mental é a dependência química do álcool. Isso porque é por meio do vício em bebidas alcóolicas que as pessoas tendem a começar a usar outras drogas ilícitas, como o crack e cocaína.

“O álcool, que é uma droga legalizada, tem o agravante da sua naturalização. É comum ‘beber’ algo. E é através desses pequenos hábitos que a pessoa pode se tornar um dependente químico. Além disso, percebe-se um aumento do uso precoce. As pessoas começam a beber cada vez mais jovens e, posteriormente, muitos começam a usar outras sustâncias”, afirma Rejane Tabuti, especialista da Secretaria Estadual de Saúde.

Segundo ela, é preciso instituir políticas públicas para conscientizar dos riscos à saúde e também sociais que o uso do álcool gera na sociedade. “As pessoas têm um rebaixamento da consciência e podem provocar acidentes de trânsito, por exemplo, e se tornarem mais volúveis a experimentar outros tipos de drogas”, salienta.

Cenário nacional

No Brasil, internamentos por causa de transtornos mentais provocados por uso de drogas e demais substâncias químicas superaram o número de internações decorrentes do uso exclusivo de álcool nos últimos dois anos. Em 2017 e em 2018 foram registrados 36.394 e 35.581 casos, respectivamente, devido ao vício em bebidas alcóolicas. No mesmo período, o país registrou 40.184 e 44.093, respectivamente, decorrentes da dependência em demais substâncias químicas. Lembrando que o vício em demais drogas geralmente está associado também a uma dependência de álcool.
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