Saúde e Bem-Estar

Roberta Braga, especial para a Gazeta do Povo

“Ovo faz mal? ”; saiba como identificar as fake news na área de saúde

Roberta Braga, especial para a Gazeta do Povo
01/04/2019 08:00
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É mentira ou verdade que o ovo faz mal a saúde? Foto: Bigstock

Não é difícil sermos impactado por uma notícia de saúde “bombástica” que pode até mesmo vir com o aval de uma universidade estrangeira renomada: “pesquisa afirma que o ovo faz mal à saúde”. Mas e qual não é a nossa surpresa quando, poucas semanas depois, nos deparamos com outra manchete: “consumir dois ovos por dia garante a saúde do coração, afirmam pesquisadores”. O Viver Bem já publicou reportagens sobre o tema e definitivamente o ovo não foi considerado vilão algum pelos cientistas.
Isso acontece, segundo o especialista em medicina baseada em evidência, o médico e professor Luis Correa, diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências, porque não sabemos identificar se a pesquisa é baseada em evidências científicas. “Para não ser enganado, seja cético sempre”, ensina o médico. Confira a entrevista:
Como se estruturam as fake news em saúde?
As notícias são, em geral, do tipo positivas, como ‘tal coisa causa câncer’, e nunca o contrário, ‘tal coisa não causa câncer’. A informação negativa, mesmo verdadeira, não gera interesse. E as notícias falsas assim são porque a maioria dos trabalhos da literatura são pequenos, pressupondo-se ao fenômeno do acaso; e possuem vieses (erros metodológicos), predispondo a conclusões inadequadas.
E como uma pessoa leiga pode identificar a validade ou não de uma pesquisa?
Isso diz respeito à alfabetização científica da sociedade. É algo que não deve estar limitado apenas a cientistas, a sociedade como um todo tem que ter a capacidade básica de diferenciar fato de fantasia.
O primeiro critério é: seja cético em relação à notícia e saiba que muitas das coisas, mesmo quando envolvem um trabalho científico, podem não ser verdadeiras. E aí temos um problema: a mente humana não é cética, ela é crente.

“Isso é uma característica inerente, biológica: temos muito mais facilidade de acreditar do que de duvidar. Precisamos estimular a dúvida. Depois, precisamos ter em mente que o método científico serve para filtrar a nossa capacidade crítica em relação às ilusões.”

Quais são os tipos de ilusão?
Temos, basicamente, dois tipos de ilusões, a primeira delas o acaso. Muitas coisas acontecem ao acaso –  e não por alguma razão específica investigada em pesquisas. Por exemplo: pode não ter sido aquela medicação que melhorou o paciente, ele já iria melhorar. E isso se torna uma ilusão principalmente quando há uma amostra muito pequena: quanto menor a amostra, maior o efeito do acaso. A maioria dos trabalhos da literatura são pequenos e o meio científico desses pequenos trabalhos é uma fábrica de ilusões relacionada ao acaso. Um trabalho válido deve ter ‘poder estatístico’, que é a capacidade de detectar o fenômeno se ele for verdadeiro, se ele existir. Eu quero provar uma hipótese, então meu trabalho precisa ter uma porcentagem (em torno de 80%) de poder estatístico para ser considerado cientificamente íntegro. Porém, a média dos pequenos trabalhos publicados na literatura é de 20%.
A resolução recomenda, no entanto, que o primeiro contato entre médico e paciente seja feito apenas presencialmente. Foto: Bigstock
A resolução recomenda, no entanto, que o primeiro contato entre médico e paciente seja feito apenas presencialmente. Foto: Bigstock
E qual o efeito nas pesquisas na área da saúde do segundo tipo de ilusão, o viés?
Viés é quando ficamos tendenciosos a ver certas coisas. Um exemplo, eu estou em estudo de um tratamento para dor, e me dão um remédio.O paciente vai sentir o efeito placebo. Aí, se você não cegar o estudo (cegar significa fazer o paciente não saber se está tomando o remédio ou ou o placebo), ele pode apresentar uma melhora que não é do remédio, mas sim do efeito placebo. E isso não é acaso, pois  acontece sistematicamente, é uma tendência. E o investigador também deve ser cegado, porque ele pode interpretar inconscientemente que o paciente melhorou ao saber que ele está usando o remédio.

“Há também o viés da confusão: se eu comparar pessoas espiritualizadas com pessoas não espiritualizadas, a mortalidade das espiritualizadas por doenças cardiovasculares é menor do que entre não espiritualizadas. Mas não conseguimos saber se é essa espiritualização que afeta a mortalidade ou se o espiritualizado tem hábitos, que chamamos de fatores de confusão, que podem interferir no resultado. Por exemplo, espiritualizados tendem a ter menor probabilidade de serem alcoólatras e de fumar, e tudo isso gera confusão nos resultados. Então, tudo isso precisa ser considerado.”

E como um estudo pode ser feito para que identifique uma evidência válida?
Esse estudo deve anular esses efeitos de confusão, por sorteio. Chamamos isso de randomizar. A melhor forma de demonstrar a eficácia de alguma coisa é o estudo clínico randomizado. Ao sortear metade dos pacientes para uma coisa e metade para outra, não se comparam grupos idênticos.
E quais são os níveis de evidência dos estudos?
O estudo é de alto nível de evidência ou não é? Tudo que não é alto nível de evidência tem alto risco de ser um estudo falso positivo ou falso negativo. O estudo de alto nível é um estudo confirmatório, eu leio e aquela conduta pode me influenciar, vou transformar aquilo em uma ideia a ser utilizada.
Os estudos que não são randomizados não deveriam nem mesmo ser considerados?
Eles não deveriam ser notícias muitos menos serem tidos como verdade absoluta. Se o estudo for bem feito, ele pode ser colocado dentro de uma revista científica, e é chamado de estudo exploratório,  ou seja, é a exploração inicial da pergunta, que gera uma hipótese. Então, de forma alguma ele deveria ser usado como base para uma notícia como verdade para a sociedade. Uma vez que a imprensa publica a notícia, aquilo acaba virando uma verdade para a população. Eu chamo isso de fake news científica.
O que caracteriza uma fake news científica na área da saúde?
A diferença da fake news normal da cientifica é que a normal não tem evidência a respeito daquilo, alguém simplesmente inventou. Mas a fake news científica é pior porque existe um trabalho com aquela conclusão, então isso parece verdade. Só que esse trabalho é de má qualidade, não tem um estudo clínico randomizado ou é um trabalho muito pequeno. Mas vemos ele publicado em uma revista científica e isso pseudovalida aquela ideia.
A procura por tratamentos estéticos por estrangeiros deve crescer 30% no Brasil em 2019. Foto: VisualHunt.
A procura por tratamentos estéticos por estrangeiros deve crescer 30% no Brasil em 2019. Foto: VisualHunt.
O fato de uma pesquisa ter sido feita em Harvard ou em alguma outra universidade importante não é determinante para termos uma verdade na saúde?
Exatamente, claro que essas pesquisas tem um valor científico, que talvez seja um caminho a ser seguido, mas a maioria dessas hipóteses geradas por trabalhos iniciais não vingam como hipótese verdadeira. Elas têm um valor como hipótese, mas não como notícia. Quando você torna aquilo notícia,  gera-se uma esperança, o que é até cruel porque às vezes é sobre algum tratamento ou cura para uma doença. Tem uma maldade na fake news cientifica.

“Então, para evitar cair nas fake news científica a primeira coisa é ter a dúvida, saber que o mundo é uma fábrica de ilusões, identificar se o trabalho considera os fatores acaso e viés, ver o tamanho do trabalho e a metodologia aplicada. O jornalista deve ser treinado para identificar isso e, assim, ter mais embasamento para escrever notícias ao público leigo.”

Em relação aos médicos, acha que vemos hoje uma geração atualizada, que identifica as novas evidências ou a maioria apenas segue as diretrizes e ignora os fatores científicos?
Até para os médicos é antinatural ser científico, pois deve-se ser cético. E cético não é aquele que não acredita, mas sim aquele que é cauteloso em acreditar. Então não é muito natural, é até meio chato não acreditar nas coisas. Se você é um médico, tem um consultório, é natural que você acredite no que você faz. Temos uma cultura de acreditar no que pessoas de referência, nossos pais, professores nos ensinam. E o médico é um ser humano, se é algo que está na diretriz ele vai seguir, ele acha que não tem o que fazer. E tem muita coisa nas diretrizes médicas que não tem evidência porque as diretrizes são feitas por seres humanos, que são falhos também. Então ainda existe uma visão muita inocente por parte da comunidade médica em entender isso, na necessidade do ceticismo. É uma evolução que precisamos ter como sociedade, dentro e fora da medicina também.
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