Saúde e Bem-Estar

Roger Pereira, especial para a Gazeta do Povo

Microbiota intestinal pode estar por trás de dores articulares, alergias e até da depressão

Roger Pereira, especial para a Gazeta do Povo
23/03/2019 07:00
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Normalizar a flora intestinal pode ajudar a reduzir doenças, inclusive a depressão. Foto: Bigstock.

Alergias, crises de enxaqueca, depressão, diabetes, lúpus, dores articulares. Apesar de tão diferentes, essas doenças podem ter em comum a relação com as bactérias e outros micro-organismos presentes em nosso intestino.
A última década tem sido marcada pelo crescimento das pesquisas sobre a microbiota (o conjunto de seres vivos que reside no ser humano). No Brasil e no mundo, médicos e cientistas tentam buscar uma relação de causa e efeito entre a desregulação nas populações desses micro-organismos – principalmente bactérias – e algumas doenças.
“O intestino era visto, antes, apenas como um órgão de absorção de alimentos. Uma via de transposição entre o mundo interno e externo para levar nutrientes para o nosso organismo. Não se considerava a microbiota, as bactérias, as funções de produção de hormônio e as funções neurológicas”, conta Mikael Faria, médico especialista em doenças funcionais do intestino e mestrando em microbiota intestinal pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

“Quando começou a se fazer cirurgias bariátricas, iniciaram-se estudos para entender a formação de alguns hormônios do intestino que vão modular apetite. Estudos da microbiota mais recentes têm mostrado a interferência cada vez mais importante das bactérias que moram em nosso intestino. O equilíbrio dessas bactérias é determinante para o nosso dia a dia”.

Segundo o médico, a harmonia entre os trilhões de organismos vivos no interior do intestino humano dificulta o surgimento de doenças autoimune, como doença de crohn, lúpus e outras, até doenças da parte neurológica.

O equilíbrio da microbiota com a parede intestinal também regula a produção de serotonina e outros neurotransmissores, podendo estar relacionada a doenças como depressão.

“Já se sabe que paciente com depressão tem uma microbiota muito específica, com algumas alterações em comum. O estudo da microbiota em neurologia começou com pacientes com autismo, que apresentam características comuns de alteração na microbiota”, explica, citando que o equilíbrio da microbiota com a parede intestinal também regula a produção de serotonina e outros neurotransmissores. Mas a lista não para por aí.

“Algumas anemias podem ter relação com alterações da microbiota, algumas doenças do sistema reumatológico, como dores articulares, mesmo não tendo sintoma intestinal, podem estar relacionadas com o intestino. Assim como algumas alergias de pele. E o sistema imune, que é altamente relacionado à microbiota. E, aí, o uso exagerado de antibióticos se revela um problema, pois o remédio também interfere na regulação dessas bactérias”.

Os estudos sobre a influência da microbiota no sistema nervoso, sistema imunológico ou na relação com outras doenças é bastante recente, tendo iniciado, em humanos, apenas em 2013, mas segundo Faria, há relação comprovada entre a presença maior ou menor de determinados tipos de bactérias no intestino humano com doenças que vão muito além dos problemas gastrointestinais.
O transplante se tornou uma forma de terapia  para casos persistentes de infecção por Clostridium difficile.<br> (Foto: Bigstock)
O transplante se tornou uma forma de terapia para casos persistentes de infecção por Clostridium difficile.<br> (Foto: Bigstock)
“A dúvida, hoje, é saber quem veio primeiro. Se a alteração da microbiota foi causada pela doença ou se essa alteração causou a doença. É nesse sentido que as pesquisas estão avançando agora”, cita, explicando que até recentemente as pesquisas estavam concentradas em identificar a tipagem genética da microbiota, o que foi possível com o sequenciamento de RNA.

“No Brasil existem testes disponíveis, com base no exame de fezes, que discriminam todos os micro-organismos encontrados no intestino, as proporções e a importância, comparando com padrões estabelecidos e indicando se há alguma desregulação que indica risco de doença”, diz.

Em busca da microbiota ideal

Mikael Faria explica que ainda não existe uma microbiota 100% ideal, mas existem padrões de proporções entre bactérias e outros organismos que são considerados regulares. “Precisa-se, hoje, fazer estudos mundiais, para definir por regiões, porque o clima, o tipo de alimentação e os hábitos de vida indicam variações nesses padrões”, afirma.
Para o pesquisador, o futuro vai ser entender o tipo de alimentação e, até de medicação indicado para cada paciente levando em conta a sua microbiota.
“O medicamento indicado para você pode ser diferente de outro paciente com o mesmo problema, pois as proporções de bactérias em cada organismo são diferentes e elas estão envolvidas na absorção dessas drogas. Até a alimentação deverá ser diferente. Essas são as linhas dos estudos”.

Um homem de 1,70 m e 70 kg possui aproximadamente 30 trilhões de células humanas e 39 trilhões de bactérias. Ou seja: o seu corpo contém mais células não humanas do que humanas. Essa população de micro-organismos é chamada de microbiota, e a esmagadora maioria dela vive no sistema digestivo, onde existem 300 espécies de bactéria.

Segundo o médico, hoje é possível regular e melhorar a microbiota através da alimentação. “Chamamos de desbiose a presença de quantidade inapropriada de determinadas bactérias. E isso pode ser corrigida com alimentação ou com o uso de probióticos. Mas se tiver uma alimentação correta, com menos industrializados, mais vegetais e fibras principalmente, você consegue otimizar as proporções das bactérias e tem uma melhora visível no funcionamento do intestino e, por consequência, um equilíbrio para todo o organismo”, disse. “A ideia é que estabilizando o aparelho gastrointestinal você consiga uma remissão e até o desaparecimento dos sintomas de algumas patologias”, conclui.

Transplante de fezes?

Outro caminho pesquisado para a regulação da microbiota é o transplante de bactérias entre seres humanos, uma vez que esses micro-organismos não são cultiváveis, e isso é feito pela doação de fezes.
Além do potencial de diagnóstico, o modelo apresentado poderia também ajudar na prevenção do câncer colorretal. Se essas bactérias começarem a aparecer no exame, seria possível intervir para tentar mudar a microbiota. Foto: Bigstock
Além do potencial de diagnóstico, o modelo apresentado poderia também ajudar na prevenção do câncer colorretal. Se essas bactérias começarem a aparecer no exame, seria possível intervir para tentar mudar a microbiota. Foto: Bigstock
Na Universidade de Rio Preto, Mikael Faria aplica o transplante a partir das fezes de um único doador, após passar por uma série de testes e exames para identificar o padrão de sua microbiota.

“Hoje é possível fazer um transplante de microbiota para determinadas patologias. Há, na Europa, consórcios trabalhando com bancos de fezes. Aqui, eu trabalho com um doador único, pois achar o doador com a microbiota regulada é bem complexo”, disse.

O transplante fecal também foi uma das linhas analisadas pelo professor da Faculdade da Santa Casa de São Paulo Marcelo Jenné Mimica. Em artigo recente, o professor indica o uso do transplante fecal, administração de prebióticos ou probióticos e mudanças dietéticas, além da utilização de antimicrobianos para a redução de sintomas de diversas doenças metabólicas, inflamatórias, neuropsiquiátricas e oncológicas. Ele pondera, no entanto, que os resultados de pesquisas nessas entidades, ainda que promissores, ainda necessitam de confirmação para serem mais largamente aplicados na clínica.
Para ele, desequilíbrios no microbioma, que é a relação da microbiota com as células humanas, estão associadas a uma ampla gama de doenças, incluindo autoimunes, metabólicas, neoplásicas, neurológicas, gastrintestinais/digestivas, cardiovasculares, neurológicas e infecciosas.

“A obesidade e o diabetes tipo 2, por exemplo, estão associados a microbiomas intestinais em que bactérias do Filo Bacteroidetes estão depletadas em comparação com bactérias do Filo Firmicutes. No diabetes tipo 1 e em outras doenças com fisiopatologia autoimune, perfis específicos de microbioma funcionam como gatilho e deflagram respostas autoimunes e autoinflamatórias”, sustenta.

Para o médico, “tem sido entendido cada vez melhor o chamado eixo microbioma-intestino-cérebro. Várias bactérias que são importantes constituintes do microbioma intestinal produzem neurotransmissores, que poderiam modular a atividade cerebral tanto por meio de ação direta de neurotransmissores como também através do sistema imune e do nervo vago”.
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