Saúde e Bem-Estar

Fábio Galão, especial para a Gazeta do Povo

No Brasil, morrem mais policiais por suicídio do que em confronto

Fábio Galão, especial para a Gazeta do Povo
16/09/2019 10:00
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O suicídio, ainda mais de policiais, é um tabu que precisa ser enfrentado com transparência. Ilustração: Felipe Mayerle/Gazeta do Povo

No fim de agosto, números de uma pesquisa divulgada pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp), criado pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ) e pela Polícia Militar fluminense, deixaram evidente uma situação alarmante: no Brasil, quem tem a função de proteger está cada vez mais vulnerável diante de um mal que mata uma pessoa no mundo a cada 40 segundos.

De acordo com o estudo, em 2018 foram registrados 53 suicídios de profissionais de segurança pública (das polícias Civil, Militar, Federal e Rodoviária Federal e do Corpo de Bombeiros) em 18 estados e no Distrito Federal, mais que o dobro do verificado em 2017 (25 mortes).

Além disso, foram contabilizados 14 tentativas (no ano retrasado, haviam sido seis) e 14 homicídios seguidos de suicídio – situação em que o policial mata alguém (geralmente familiares) antes de tirar a própria vida.

Segundo a 13ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado na quarta-feira passada, (11),  os números são ainda mais alarmantes. Em 2018, 104 policiais cometeram suicídio – número maior do que o de policiais mortos durante o horário de trabalho (87 casos) em confronto com o crime.

São Paulo, que tem o maior efetivo de segurança pública do Brasil, teve 11 suicídios, três tentativas e quatro homicídios seguidos de suicídio.

No Paraná, foram dois suicídios – em um deles, o policial assassinou outra pessoa antes de se matar.

Entidades de classe e profissionais de saúde lamentam a falta de políticas específicas para esse público, mas aos poucos estão surgindo iniciativas que miram a correção dessa falha.

“Há uma sensação de onipotência que a sociedade coloca sobre o policial e ele acaba incorporando, acha que não pode mostrar fraqueza. Existe um tabu, a pessoa acha que falar é sinal de fragilidade, se fecha demais e não busca ajuda. Enfatizamos a necessidade da participação da família, que pode perceber a angústia, o isolamento, identificar esses sinais.” Raphael Di Lascio, coordenador do Departamento de Psicologia da Universidade Positivo.

Em Alagoas, a Polícia Militar implantou em 2017 um programa para a prevenção do suicídio após uma pesquisa apontar uma taxa de ocorrências dentro da corporação superior à da população em geral.
Segundo a capitã Larissa Paes de Omena Soares, psicóloga do Centro de Assistência Social da PM alagoana e coordenadora do projeto, a prevenção é feita em três eixos.

O primeiro é chamado de universal: direcionado ao público geral de policiais militares e famílias, consiste de palestras sobre o assunto e visitas a unidades durante todo o ano, além da capacitação de profissionais de saúde que atendem a corporação.

O segundo é a prevenção seletiva, na qual são contemplados públicos em situação de risco: dependentes químicos, policiais que passaram recentemente por ocorrências traumáticas e afastados por questões de saúde mental.
A profissão de policial é extremamente complicada. Tudo é confidencial, não pode falar nada sobre uma investigação para a família, os amigos, faz parte da função. Foto: Bigstock.
A profissão de policial é extremamente complicada. Tudo é confidencial, não pode falar nada sobre uma investigação para a família, os amigos, faz parte da função. Foto: Bigstock.
“Fazemos a orientação para que os comandantes nos encaminhem quem esteja nessas situações”, descreve a capitã Soares.
“O terceiro eixo é a prevenção indicada, em que atendemos pessoas que já apresentaram comportamentos relacionados, como as que já tentaram suicídio.”
O projeto também faz a chamada posvenção, a assistência a familiares e colegas quando um policial tira a própria vida.

“O que ocorre é que falar sobre suicídio continua sendo um tabu. Muitos ainda acham que tocar no assunto é incentivar o suicídio. Mas hoje há a certeza de que é preciso falar, sim. Temos que ouvir a pessoa, aceitá-la como ela é, sem preconceitos nem julgamentos”, diz Iracema Perin, voluntária e uma das porta-vozes do CVV em Curitiba.

A PM de Alagoas está refazendo o estudo que embasou o lançamento do projeto, para avaliar os resultados, e os dados devem ser divulgados no final de setembro.
“O que se sabe é que nos últimos três, quatro anos, está acontecendo um aumento geral do número de suicídios na população, principalmente entre os jovens. Esse estudo vai nos permitir avaliar e definir novas estratégias de prevenção”, explica a coordenadora.
A Polícia Civil do Paraná está implementando, em parceria com o Departamento de Psicologia da Universidade Positivo, um projeto para expandir o atendimento em saúde mental na corporação, no qual a prevenção do suicídio será uma das prioridades.
Luciana de Novaes, coordenadora do Grupo Auxiliar de Recursos Humanos (GARH) da Polícia Civil, conta que o projeto será a evolução do trabalho do Centro de Psicologia Jurídica e Atendimento Multiprofissional (CPJAM), que abrange Curitiba e região, e de clínicas e entidades parceiras que prestam o mesmo atendimento para policiais do interior.

“O que acontece hoje é que o delegado ou chefe de setor detecta o que está de errado com o policial e faz o encaminhamento. A ideia é fazer um diagnóstico de toda a Polícia Civil do Paraná e estabelecer um protocolo para todo o Estado, para que tudo seja feito de forma mais sistemática”, explica a delegada.

No fim de setembro, será realizado um evento na Escola Superior da Polícia Civil em que serão selecionados policiais cuidadores, que terão a incumbência de fazer o acolhimento de quem necessita de ajuda. “Eles vão detectar sinais e inserir os colegas no sistema de atendimento psicológico do Estado”, aponta Novaes.
Segundo Raphael Di Lascio, coordenador do Departamento de Psicologia da Universidade Positivo, serão traçadas estratégias conforme o diagnóstico das principais demandas em atendimento por região.
O trabalho da rede de apoio será complementado por cartilhas de orientação, comunicação direta com as famílias, palestras e rodas de conversa.
“Há uma sensação de onipotência que a sociedade coloca sobre o policial e ele acaba incorporando, acha que não pode mostrar fraqueza. Existe um tabu, a pessoa acha que falar é sinal de fragilidade, se fecha demais e não busca ajuda. Enfatizamos a necessidade da participação da família, que pode perceber a angústia, o isolamento, identificar esses sinais”, relata Di Lascio, que elenca depressão, ansiedade e crises de pânico como resultados rotineiros.

No início de agosto, a morte de um delegado de Apucarana (Norte do Paraná) gerou comoção na Polícia Civil paranaense.

“A profissão de policial é extremamente complicada. Tudo é confidencial, não pode falar nada sobre uma investigação para a família, os amigos, faz parte da função. O sono é afetado também. A profissão traz coisas que obrigam a desenvolver uma resiliência para lidar com a pressão, mas para quem não consegue há uma dificuldade muito grande”, alerta o professor.

De volta à rotina

Iniciativas para prevenir suicídios entre policiais não partem apenas do Estado: entidades representativas também se mobilizam para evitar novos casos.
Há sete anos, o Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal (Sindipol-DF) criou uma clínica própria, que hoje tem duas psicólogas que atendem 46 policiais e dependentes. “A ideia surgiu quando vimos o alto índice de suicídios entre policiais federais”, afirma Egídio Araújo, presidente do Sindipol-DF.
“Percebemos uma deficiência grande na prestação desse serviço pelo estado. Nunca houve políticas públicas para esse tipo de assistência, embora na gestão atual (da PF) haja uma preocupação maior.”

Segundo o sindicato, nos últimos 20 anos 48 policiais federais se suicidaram em todo o Brasil; também foram registradas sete tentativas.

“O que a gente percebe é que, quando as doenças da mente são tratadas no início, o resultado é positivo. O paciente bem tratado e bem assistido recupera a qualidade de vida. Já tivemos muitos casos de colegas que chegaram a ter a arma recolhida e, depois de serem atendidos, voltaram às suas atividades na PF normalmente”, descreve Araújo.
No Rio Grande do Sul, a Associação dos Oficiais da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros (ASOFBM) lançou recentemente uma cartilha para prevenção do suicídio, com orientações sobre como detectar sinais de intenção suicida e procurar ajuda.
“O Rio Grande do Sul tem quase o dobro do índice de suicídios do Brasil, e na Brigada Militar é o dobro do índice do estado. Morrem mais brigadistas assim do que em confrontos”, relata o coronel da reserva Marcos Paulo Beck, presidente da entidade.
Segundo a ASOFBM, entre 2008 e 2018 foram registrados 50 suicídios de brigadistas e bombeiros gaúchos.
Beck cita baixos salários, pressões decorrentes da expansão do crime organizado e da falta de efetivo, carência de assistência psicológica e a desvalorização da profissão como males que comprometem a saúde mental de policiais em todo o Brasil.

“O soldado não tem só o bandido como inimigo. A sociedade só se lembra da polícia quando está em perigo. Quando tem batida policial, o cidadão não gosta de ser parado. Mas quando roubam o carro dele, aí ele quer saber da polícia”, lamenta o coronel.

A associação busca recursos para distribuir a cartilha nacionalmente. “Não queremos que fique restrita à Brigada Militar, queremos que seja distribuída para toda a sociedade e que seja levada para as polícias dos outros estados”, diz Beck.

Um tabu a ser vencido

O Setembro Amarelo foi criado no Brasil em 2015, uma parceria do Centro de Valorização da Vida (CVV) com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com o objetivo de reunir ações para chamar atenção para o tema durante o mês em que se comemora o Dia Internacional de Prevenção ao Suicídio (10 de setembro).

“Não temos estatísticas porque fazemos um trabalho totalmente sigiloso. A pessoa que entra em contato com o CVV (pelo telefone 188, e-mail, chat ou presencialmente) não é obrigada a se identificar. Mas o que as pesquisas destacam é que o policial tem acesso à arma de fogo, perde muitos colegas em confrontos e vivencia diariamente a exposição a situações de violência. Isso tudo e o estresse da profissão contribuem. É uma situação preocupante”, aponta Iracema Perin, voluntária e uma das porta-vozes do CVV em Curitiba.

“Nós precisamos de políticas públicas para essa população. Começa a haver uma preocupação maior, com seminários, o CVV tem recebido muitos convites para fazer palestras em unidades (policiais), no Corpo de Bombeiros. O que ocorre é que falar sobre suicídio continua sendo um tabu. Muitos ainda acham que tocar no assunto é incentivar o suicídio. Mas hoje há a certeza de que é preciso falar, sim. Temos que ouvir a pessoa, aceitá-la como ela é, sem preconceitos nem julgamentos”, afirma.
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