Saúde e Bem-Estar

Agência RBS, por Marcel Hartmann

Por que descontamos questões emocionais na comida?

Agência RBS, por Marcel Hartmann
22/03/2019 12:00
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Emendar uma refeição na outra com lanches, sobremesas e snacks pode indicar outras necessidades do organismo. Foto: Bigstock

Uma barra de chocolate, um pedaço de pizza, um hambúrguer, uma taça de sorvete. Para muitas pessoas, situações de estresse e ansiedade transformam, em um passe de mágica, comidas altamente calóricas em necessidade básica de sobrevivência.
Os mecanismos por trás desse movimento ainda não foram completamente compreendidos pela ciência. Mas já se sabe que, do desejo à primeira mordida, há uma cascata de reações químicas, lembranças da infância e um apreço cultural pelo que está no prato – mais do que saciar a fome, ela serve também como carinho.

Na área médica, há um termo específico para o hábito: “comer emocional” ou “fome emocional”, quando recorremos a alimentos, em geral altamente calóricos (com muito açúcar, sal e carboidrato), para suplantar frustrações e cansaço.

Em inglês, usa-se o termo “comfort food” (comida de conforto) para aquela refeição que, normalmente, é consumida apenas em ocasiões especiais, mas que acaba sendo desfrutada quando há algo de errado na rotina.
Normalmente, o prato é caseiro ou relembra memórias da infância com a família ou amigos. Não à toa, comerciais na televisão se esforçam em vender produtos artificiais com “o gostinho da vovó”, com cenas de uma família feliz na cozinha.

Cuidado para não virar rotina

Profissionais afirmam que está tudo bem em desfrutar de um chocolate, uma pizza ou uma taça de vinho com prazer. Em idosos, muitas vezes esse tipo de comida é oferecido justamente para casos em que o paciente não se alimenta o bastante, sobretudo em vítimas de depressão.
Mas é preciso prestar atenção se o hábito vira uma rotina e, todos os dias ao chegar em casa, você recorre à junk food para lidar com tristeza, raiva, tédio ou solidão. A longo prazo, pode-se entrar em um ciclo vicioso e sempre buscá-la em situações complicadas. Surgem, por consequência, os riscos de uma dieta desregrada decorrentes do sobrepeso: diabetes, doenças no coração e acidente vascular cerebral (AVC).
Foto:Unsplash
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Há uma miríade de gatilhos da vontade de comer para ficar feliz. Uma pesquisa norte-americana e canadense feita com 277 voluntários apontou que, em mulheres, os catalisadores eram solidão, tristeza e culpa. No caso dos homens, por outro lado, entravam reações ao sucesso – como o cansaço após um dia estressante, porém produtivo. Em mulheres, estudos demonstram que, com frequência, o sentimento final é de culpa. Sobre elas, recai a maior pressão para atingir o corpo perfeito.

O alimento ligado ao passado

A comida se torna refúgio, em primeiro lugar, porque damos a ela significados relacionados a prazer e alegria. Comer é, em suma, um ato cultural. Para muitas pessoas, refeições estão associadas a experiências positivas – frequentemente, comemoramos boas notícias com pessoas queridas ao redor da mesa.
Essa ligação é fortalecida se, ao longo da vida, criamos memórias agradáveis com a família na cozinha ou no bar. A consequência é a tendência a recorrer à comida para acessar os mesmos sentimentos do passado.

“Quando nascemos, a angústia inicial é a fome. Essa sensação passa com a amamentação, que, além de nutrir, também acolhe e tranquiliza. Mas essa memória fica armazenada e é resgatada em outras etapas da vida. A consequência é que, mesmo sendo demanda emocional, e não alimentar, o sujeito busca a comida como remédio.”

Cláudio Martins, médico diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

As comidas gordurosas também podem servir como consolo – o estresse daria carta branca para recorrer a um “pecado” cometido apenas em ocasiões especiais. Aqui, o alimento preenche um vazio – em outras palavras, a felicidade de comer substitui a infelicidade.
“O indivíduo desconta na comida porque não tem um espaço interno emocional para absorver uma experiência difícil. Precisa descarregá-la em ato, e come. Uma pessoa saudável, por ter desenvolvido relações positivas, acolhe dentro de si as emoções, sejam positivas ou negativas”, diz o psicanalista César Brito, membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) e professor na psiquiatria da PUCRS.

O turbilhão hormonal e neuronal que o estresse desencadeia

Há também uma reação química desencadeada por situações de estresse que culmina na vontade de comer comidas gordas. O processo ainda não é bem compreendido pela medicina, mas há algumas teorias.
Uma delas é de que a pressão no trabalho, a discussão com o parceiro ou o problema do filho na escola são situações desconfortáveis que, no cérebro, são interpretadas como ameaça. Sobem os níveis de cortisol, um hormônio útil em situações de fuga ou de luta por aumentar os batimentos cardíacos, para o oxigênio chegar mais rápido aos músculos e ao cérebro.
Só que outra consequência é tornar o corpo resistente à insulina, um hormônio que funciona como “porteiro” ao regular a entrada de glicose (alimento) para dentro das células. Uma vez que as células estão resistentes à insulina, o corpo fabrica mais desse hormônio para compensar. E, quando há muita insulina no sangue, há fome.

“Com muita insulina circulante no sangue, a reação do cérebro para que a glicose não baixe demais é pedir comida. E os alimentos que fornecem mais glicose são carboidratos complexos, presentes em farinha, arroz e batata”, explica o médico chefe do setor de endocrinologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rogério Friedman.

O estresse também ativa áreas do cérebro relacionadas à recompensa por comer, mostrou um estudo da Universidade de Deakin, na Austrália. Bruno Halpern, médico da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), acrescenta: pessoas que descontam emoções na cozinha, ao verem comida, ativam no cérebro o sistema límbico, ligado às emoções, e o hipotálamo, relacionado a funções básicas como fome e sede.
“O indivíduo vê a o alimento e tem uma vontade muito grande de comer. Pessoas obesas demoram mais para desativar essas áreas, então precisam comer mais para atingir prazer. Mas é difícil dizer especificamente qual neurotransmissor é ativado porque não é possível abrir a cabeça da pessoa e medir a quantidade presente”, afirma o endocrinologista.
Emendar uma refeição na outra com lanches, sobremesas e snacks pode indicar outras necessidades do organismo. Foto: Bigstock
Emendar uma refeição na outra com lanches, sobremesas e snacks pode indicar outras necessidades do organismo. Foto: Bigstock
Há estudos relatando que a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de recompensa, costuma ser liberada quando ingerimos comidas com altos teores de açúcar, sal e gordura.
Esse efeito seria ainda mais acentuado se, por experiências passadas, você registrou no cérebro que, quando come chocolate, fica feliz. Há até estudos apontando que, em algumas pessoas, o cérebro libera dopamina só de pensar em tranqueiras.

O quase irresistível glutamato de sódio

A cereja do bolo é a serotonina, chamada de “neurotransmissor da felicidade”, cujos níveis sobem após a ingestão de chocolate, queijo e carboidratos. Mas não se sabe, aqui, se a produção de serotonina ocorre por causa do alimento ou simplesmente porque associamos que, ao comê-lo, ficaremos felizes.

“Alimentos calóricos, doces e com gordura estimulam a liberação de serotonina, que tem ação antidepressiva”, diz Rubens Gagliardi, ex-presidente da Academia Brasileira de Neurologia. Isso também é provocado pela tiramina (uma substância presente em vinhos e cervejas).

A indústria alimentícia também faz seu papel: produtos processados e crocantes, como salgadinhos, contêm em sua fórmula glutamato de sódio, um tipo de sal que ressalta o sabor de comidas ao hiperestimular nossas papilas gustativas a ponto de você simplesmente não conseguir comer apenas uma unidade. Mais difícil ainda de dizer ‘não’.
Vale a ressalva de que nem todas as pessoas descontam emoções no prato. Para muitos, a fome vai embora justamente em momentos de estresse e tristeza. Isso ocorre por várias questões, desde fatores genéticos até uma história de vida na qual a comida não é associada com lembranças positivas.
Mas, segundo Bruno Halpern, da SBEM, geralmente, quem é magro emagrece e quem é obeso engorda, a depender do background genético. Ele acrescenta que até o tipo de problema influencia na resposta que teremos.

“Existe o estresse que você pode resolver e aquele que você não tem como, porque aguarda a decisão ou avaliação de outra pessoa. Se tenho que resolver, crescem os níveis de noradrenalina e cortisol, meu foco aumenta e como mais porque minhas necessidades calóricas subiram. Mas, se preciso aguardar outra pessoa fazer algo, entram a fome emocional e neurotransmissores como dopamina e serotonina, porque a pessoa usa a comida como forma de se defender contra uma pressão externa”, sintetiza Bruno Halpern, da SBEM.

Fome emocional não é compulsão alimentar

Não pense que descontar emoções em comida necessariamente significa ter compulsão alimentar, um transtorno previsto no DSM, a bíblia da psiquiatria mundial com todas os doenças mentais catalogados pela medicina.
Foto: Ali Inay / Unsplash
Foto: Ali Inay / Unsplash
A compulsão alimentar, que pode ser periódica, costuma surgir no fim da adolescência, sobretudo em mulheres. Há fatores genéticos e sintomas específicos: a pessoa come tudo o que está pela frente, não sente saciedade e tem muita culpa após a ingestão.
Outros transtornos psiquiátricos podem estar associados, como bipolaridade, ansiedade e depressão. Na fome emocional, come-se um alimento desejado, há uma grande satisfação e a pessoa, por fim, não tem mais vontade de comer.
Também é diferente ter o desejo de uma refeição em específico em comparação a descontar a emoção na comida. “Uma coisa é esperar pela lasanha da vó no fim de semana. Outra é comer uma lasanha congelada em casa por uma vontade incontrolável. Quando há impulsividade, o indivíduo está descontando na comida. Senão, é um desejo”, salienta a nutricionista Aline Quissak, especialista em psicologia da nutrição e em síndrome metabólica. A conclusão que fica é: se comer é um dos prazeres da vida, aproveite. Mas faça com moderação.

Fome emocional

Características
– Chega de repente, enquanto que a fome normal cresce aos poucos.
– Traz o desejo de uma comida específica (em especial, com muitas calorias), e não de alimento qualquer para saciar a fome.
Como evitar
– O primeiro passo é ter consciência dos gatilhos que acionam a vontade de comer. Repare em quando surge o desejo. É em um momento estressante? Tente controlar a vontade e foque a atenção em outra tarefa.
– Existem outras formas de proporcionar satisfação e bem-estar que não passam por comida. Exercícios, jogar videogame, ver amigos ou ter relações sexuais são alguns exemplos.
– Faça refeições equilibradas, com carne (ou outra proteína), salada e carboidratos, como arroz, batata ou massa. Assim, você mantém os níveis de insulina estáveis no sangue por horas e não fica com desespero e de fome em decorrência de baixos níveis de glicemia no sangue.
– Respire de seis a 10 vezes antes de comer quando você está na fissura por comida. Segundo a nutricionista Aline Quissak, a técnica pode reduzir os níveis de cortisol, o hormônio do estresse.
– Substitua os ingredientes por opções mais saudáveis. A macarronada pode ser feita com massa integral, o chocolate pode ser 70% cacau, o picolé de fruta pode ser tomado no lugar do sorvete.
– Pratique exercícios físicos, que combatem a ansiedade, a causa da fome emocional.
– Coma alimentos ricos em vitamina C, que reduzem os níveis de cortisol no sangue e são anti-inflamatórios. Exemplos: acerola, morango, framboesa e amora.
– Não fique muitas horas sem comer. Alimente-se de porções pequenas a cada 3 horas, para evitar a queda de glicemia no sangue. Caso contrário, o corpo produzirá muita insulina e você ficará com uma fome gigantesca.
– O cacau também está associado à queda de cortisol. Mas precisa ser chocolate 70%, e não ao leite, diz Aline.
– Mastigue devagar. A leptina, o hormônio que envia ao cérebro o aviso de que é preciso parar de comer, demora alguns minutos até fazer efeito.
– Comer na frente do computador ou da TV tira o foco de atenção do prato, o que faz você comer mais. Sente-se à mesa.
– Em última instância, coma um pedaço daquele chocolate ou pizza que você deseja. Só controle a quantidade.
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