Saúde e Bem-Estar

The Washington Post, por Dhruv Khullar

Narrar a própria história pode ajudar quando se está próximo da morte

The Washington Post, por Dhruv Khullar
04/08/2019 18:00
Thumbnail

Uma forma de abordar a própria mortalidade é relembrar o passado (Foto: Bigstock)

Como você deve viver quando sabe que vai morrer? Talvez esta seja a eterna e maior das questões — com a qual todos precisamos lidar. Por sorte, o fazemos apenas quando a ideia de um fim é colocada diante de nós com a notícia de uma grave doença — seja ela nossa, seja daqueles que amamos.

Nós, humanos, podemos ser os únicos animais que se agarram à própria mortalidade, mas não é algo que esteja sempre em nossas mentes – até o momento em que temos, de fato, que enfrentá-la.

É uma questão que eu confronto com frequência enquanto médico que cuida de pacientes com doenças graves. Há alguns meses, em uma manhã, eu conheci um homem mais velho com um tipo agressivo de câncer que, de um atleta e corredor ávido, se tornou um leitor voraz. Ele me olhou por cima do seu jornal quando eu entrei no quarto do hospital e disse:

“É um sentimento estranho, sabe, ler sobre um mundo que você nunca chegará a ver”.

Após várias sessões de quimioterapia – cada uma mais tóxica que a anterior —  ele decidiu que não aguentava mais. Ele até podia passar um bom tempo sem contemplar a ideia da morte, ele dizia, até que a leitura de uma curiosidade sobre alguma lei recém proposta faria com que ele se voltasse novamente à realidade inevitável: seus dias estavam contados.
“Eu leio principalmente biografias agora”, me contou. “Ler sobre a vida de outras pessoas me ajuda a compreender melhor a minha”.

Olhando para trás

Eu comecei a me questionar se o segredo para uma boa morte não estaria em olhar para o passado em vez de para os dias que estão por vir — se uma análise retrospectiva não poderia ser mais terapêutica do que a preparação para os poucos dias futuros.

Pensei em quantas vezes eu focava somente a ajudar pacientes a vislumbrar o futuro — quantas semanas ou meses eles poderiam esperar, quais procedimentos eles poderiam ou não considerar.
Essas discussões, embora importantes, falham ao não abordar o que as pesquisas revelaram sobre os desejos e necessidades mais profundos de pacientes gravemente doentes.
Quase 20 anos atrás, um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) explorou o que pacientes e médicos consideravam ser mais importante no final da vida. Muitas das respostas eram bastante previsíveis: tanto médicos quanto pacientes achavam importante manter a dignidade, o controle da dor e de outros sintomas, e colocar os assuntos financeiros em ordem.
Mas o ponto onde médicos e pacientes divergem é revelador — e sugere tanto uma oportunidade perdida quanto um caminho para o progresso.
Relatos de pacientes fizeram com que o médico pensasse em como a própria mortalidade era tratada (Foto: VisualHunt)
Relatos de pacientes fizeram com que o médico pensasse em como a própria mortalidade era tratada (Foto: VisualHunt)

O que é mais desejado no leito de morte

No leito de morte, os pacientes eram mais propensos a expressar que seria mais importante ter a sensação de terem vivido uma vida completa, de estar em paz com Deus, e de ter ajudado o próximo de alguma forma. Em outras palavras: sentir que suas vidas tinham importado.
Um corpo crescente de trabalho sugere que um método poderoso, mas subutilizado, de criar esse sentido de importância é por meio de contar histórias — refletindo sobre o passado e criando uma narrativa sobre a vida do indivíduo, o que ela significou, quem ele se tornou e por quê.

Humanos são contadores natos de histórias. Temos um tremendo poder narrativo. A mesma série de eventos – ter filhos, divorciar-se, perder um ente querido, encontrar um emprego – pode ser tanto um conto de resiliência e recomeços, como  de azar e arrependimentos.

O processo de trazer coerência para a vida de uma pessoa é o que o psicólogo Dan McAdams chama de criar uma “identidade narrativa”.
As pessoas adquirem maior facilidade para identificar temas importantes da vida com o passar do tempo, e aquelas que conseguem encontrar positividade em meio a fatos negativos são geralmente mais satisfeitas com a vida.
Médicos também são contadores de histórias por profissão.  Mas nós tradicionalmente temos focado em narrar o curso das doenças em vez de ajudar as pessoas a encontrar um sentido em viver com elas.
Criar a oportunidade para que pacientes reflitam sobre experiências da vida, no entanto, poderia criar um terreno importante para a cura —- seja no fim da vida ou em algum momento no meio dela.

Em um estudo de 2018, pesquisadores deram a veteranos com perturbação de estresse pós-traumático (PSPT) a escolha de participar de sessões de 30 minutos de escrita em que eles refletiram sobre experiências traumáticas, ou de um programa de 12 semanas de terapia de processamento cognitivo, um tratamento de primeira linha para PSPT. O estudo concluiu que as sessões de escrita tinham a mesma eficácia do programa de 12 semanas.

Não basta relembrar, é preciso contar

Outro trabalho sugere que os detalhes da narrativa são importantes. Simplesmente olhar para o passado e listar eventos da vida não parece ajudar.
É a construção da narrativa — explorar laços, formular uma trama — que é crítico para chegar a uma noção coerente do ‘eu’. E até mesmo os pronomes parecem ser relevantes para isso.
Quando estamos refletindo sobre experiências do passado, cada pessoa gramatical que escolhemos para narrar nossa própria história — a primeira, segunda ou terceira — têm suas vantagens particulares.

Optar pela terceira pessoa, por exemplo, parece nos permitir apreciar melhor como nós mudamos com o tempo, enquanto o uso da primeira pessoa nos permite falar em tom de continuidade. Refletir sobre desafios com o uso do termo genérico “você” —, como por exemplo, “algumas vezes você ganha, algumas vezes você perde — ajuda a criar uma distância psicológica de uma situação difícil, bem como universalizar a experiência. Usar o “eu” coloca a sua resposta em evidência; já o “você” amarra isso à condição humana.

Se a nossa sensação de futuro parece estar se esgotando, podemos fazer o melhor do nosso passado? Eu frequentemente batalho em meu papel de cuidar de pacientes que se encontram no fim da vida.
Sei que as coisas mais benéficas que posso oferecer não são as que costumo receitar: analgésicos, laxantes, fluidos intravenosos. Pelo contrário: a resposta está naquelas coisas que são ao mesmo tempo mais desafiadoras e mais elementares. Sentar. Ouvir. Explorar o que tudo significou.
“O que eu digo a mim mesmo”, disse meu paciente, ” é que mesmo que eu não esteja por perto para ver isso, eu ajudei a moldar o mundo do futuro. Pelo menos fiz minha pequena parte para isso.”
LEIA TAMBÉM