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Além do potencial de diagnóstico, o modelo apresentado poderia também ajudar na prevenção do câncer colorretal. Se essas bactérias começarem a aparecer no exame, seria possível intervir para tentar mudar a microbiota. Foto: Bigstock
Além do potencial de diagnóstico, o modelo apresentado poderia também ajudar na prevenção do câncer colorretal. Se essas bactérias começarem a aparecer no exame, seria possível intervir para tentar mudar a microbiota. Foto: Bigstock| Foto:

Fique à vontade para rir ao ler as próximas linhas, mas não deixe que seu humor escatológico comprometa a seriedade com que se deve tratar do tema. Estamos falando do transplante de microbiota fecal. Sim, é isso mesmo: transplante de fezes.

Porto Alegre sediou no primeiro semestre deste ano o primeiro transplante fecal da América Latina para o tratamento do diabetes. O procedimento foi realizado no Hospital Ernesto Dorneles (HED), sob o comando do médico gastroenterologista Guilherme Becker Sander, chefe do Serviço de Endoscopia do HED, em um paciente que tem especial apreço pelo assunto: o também médico Pedro Schestatsky, diabético e professor de neurologia da Faculdade de Medicina da UFRGS que se dedica ao estudo desse tipo de tratamento para atacar males neurológicos, como Alzheimer, esclerose múltipla, autismo e Parkinson.

Como é feito?

O transplante é relativamente simples. O doador precisa ter uma boa microbiota, nome pomposo para o que se conhecia popularmente como flora intestinal. Trata-se de um conjunto de microrganismos – algo em torno de 100 trilhões de bactérias – que faz nosso intestino funcionar sem sobressaltos. São as bactérias do bem que nos habitam. No caso de Schestatsky, ele escolheu um doador vegano, que passou por baterias de exames de sangue e fezes para atestar a qualidade do material que doaria.

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Mas o veganismo não é pré-requisito. Observa-se uma gama de fatores no doador, como a presença de bactérias perigosas, como salmonela, e os hábitos gerais de vida. O receptor também passa por uma preparação, semelhante à exigida a quem vai se submeter a um exame de colonoscopia. São dois dias tomando laxativos para “zerar” a microbiota. É como esvaziar o intestino de bactérias ruins para substituí-las pelas boas.

Mas o que o intestino tem a ver com diabetes? Pesquisas em diferentes áreas têm demonstrado o papel do órgão nas infecções e nas inflamações sistêmicas e em outros quadros de saúde desequilibrados e a gigantesca conexão dele com o cérebro, o que já fez com que fosse chamado de “segundo cérebro”.

Acredite: 90% dos neurotransmissores cerebrais, como a serotonina, a noradrenalina e a dopamina – os mesmos que estão contidos nos antidepressivos -, são produzidos no intestino, abrindo a possibilidade para o uso dessa técnica para casos de depressão e ansiedade.

Foto: Bigstock
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40 mil mortes evitadas por ano

Uma boa flora intestinal está associada a um sistema imunológico mais forte, e a transferência de microbiota já tem se mostrado eficiente em certos casos. No tratamento da colite pseudomembranosa, um quadro de diarreia grave provocado pela superbactéria Clostridium difficile, resistente a antibióticos, o transplante de fezes se mostrou 100% eficiente, evitando cerca de 40 mil mortes por ano no mundo, 14 mil no país.

O problema é uma das principais causas de doenças em pacientes internados na rede hospitalar. Pesquisadores da Universidade do Arizona também observaram, em um ensaio aberto, que os sintomas do autismo sofreram significativa melhora após a transferência de microbiota nos pacientes.

Apesar de um histórico indicativo de um futuro promissor a favor da saúde, o transplante de fezes ainda sofre estigmas, um dos alvos de Schestatsky quando encarou o desafio para tratar seu diabetes.

“As pessoas ainda pensam que é comer cocô. A partir dessa experiência, quero provar a segurança do procedimento e demonstrar a dinâmica disso para que possa ser oferecido a pacientes de casos extremos”, diz o neurologista.

Banco de fezes

As possibilidades de tratamento via transplante de fezes ampliam-se dia a dia. Tanto é que já existem bancos de fezes. No Brasil, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) abriu o primeiro espaço desse tipo para armazenar o material doado, que fica a uma temperatura de 80°C negativos e precisa ser utilizado em até seis meses.

O problema é que para se tornar um doador é preciso aprovação em todos os testes que asseguram a qualidade das fezes e muitos candidatos não conseguem passar nessa seleção.

Schestatsky acredita que o procedimento realizado no Ernesto Dornelles ajudará a coroar o intestino como causa de inflamações e doenças crônicas. No caso dele, os resultados positivos já aparecem na busca por reduzir a medicação contra o diabetes.

“Meu perfil glicêmico melhorou significativamente nas primeiras horas. Ficamos todos muito empolgados. Paralelamente, meu sono nos dois últimos dias está quase normal, provavelmente pela ação do transplante sobre o eixo intestino-cérebro”, avalia.

O neurologista é um entusiasta do procedimento. Em outros experimentos, a técnica se mostrou eficaz contra a obesidade e em tratamento de autistas, que apresentaram melhora significativa na socialização e no contato visual, duas carências de quem têm o espectro.

O transplante é para casos em que mudanças de hábito e outras opções de tratamento já foram testadas e descartadas.

“O tom ainda é muito jocoso (para falar do transplante), mas é, sem dúvida, uma terapia séria que tem marcado efeito. Muita coisa ainda será descoberta”, aposta Sander.

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Como é realizado o transplante

1) Coleta-se em torno de 200g a 400g de fezes do doador, que passa, antes disso,por uma série de exames para avaliar condições de saúde,histórico familiar para doenças e hábitos alimentares e de cuidado pessoal.

2) O receptor também passa por um período de preparação para esvaziar o intestino

3) O material é colocado em uma espécie de mixer,onde é homogeneizado e filtrado. Separa-se a parte sólida da parte líquida.

4) O que é transplantado é o microbiota, o conjunto de bactérias boas que vai “repovoar”o intestino do paciente receptor. A parte alimentar não absorvida pelo
doador não é transplantada.

5) O material é armazenado em seringas.

6) A aplicação é feita, via de regra, por colonoscopia, ou via nasogástrica. A microbiota do doador é depositada no que se chama lúmen intestinal, o espaço interno do intestino, perto do íleo, parte final do órgão.

7) O transplante de microbiota é um procedimento rápido, dura em torno de 30 minutos e não exige que o paciente fique internado.

8) Já se fala em administrar as fezes em cápsulas,viaoral. Mas não existe nenhuma comprovação ou indicação científica para esse modelo.

O que as suas fezes dizem sobre você

Se não há um modelo único para o que se coloca no prato, o que se deposita na privada também não segue um rigor. Então, não existe uma cara definida para o “cocô saudável”. A regra básica, explica o gastroenterologista Guilherme Becker Sander, é o equilíbrio no trânsito intestinal.

Se você volta e meia tem de sair em disparada ao banheiro ou se fica horas fazendo força para ir aos pés, precisa ficar mais atento à alimentação – podem estar faltando fontes de fibras na sua dieta ou há algum problema na microbiota. A coloração também não tem um tom específico que sugira mais ou menos saúde, mas os extremos devem motivar a busca por ajuda médica. Fezes muito claras, com uma coloração semelhante a massas de vidraceiros, podem indicar algum problema relacionado ao fígado. As muito escuras, pretas como piche, podem apontar doenças graves, como hemorragias gastrointestinais.

“O intestino foi feito para trabalhar em silêncio. Sempre que há algum desconforto, merece uma avaliação”, diz Sander.

Enfermeira estomaterapeuta e professora do curso de Medicina da PUC-SP, Gisele Regina de Azevedo explica que as fezes são excelentes fontes de informação sobre o quadro de saúde de um paciente. Há, inclusive, uma tabela que ajuda a classificar os excrementos (veja ao lado), criada por um coloproctologista inglês e cuja adaptação transcultural para o Brasil foi acompanhada por Gisele. É uma espécie de guia para que os pacientes possam descrever suas fezes de maneira mais fidedigna.

“É uma classificação que mostra o quanto de água e fibra a pessoa está ingerindo. Mas as fezes refletem o que consumimos nas últimas 24 horas e também a saúde da nossa microbiota. Então, temos de ter um cuidado diário para que a evacuação seja sempre confortável”, diz.

Gisele explica que temos um conjunto de bactérias da boca ao ânus que trabalha a nosso favor, mas que precisa ser “nutrido” adequadamente para que siga fazendo um bom trabalho e se reproduzindo. Isso passa por hábitos alimentares saudáveis e hidratação adequada. A professora alerta também para as “fórmulas mágicas” ou receitas caseiras com a proposta de regular o funcionamento do intestino. O que serve para um pode não ser bem digerido por outro ou até ter um efeito inverso.

“Há microbiotas diferentes e também as intolerâncias. Leite quente, por exemplo, pode ter um efeito para mim, e outro para você”, explica.

O que pode indicar um problema?

Foto: Bigstock.
Foto: Bigstock.

Gisele acrescenta outras características das fezes que podem indicar problemas. A presença de sangue ou muco deve ser avaliada por um médico. E sabe quando um alimento passa por todo o processo digestivo ileso? Isso mesmo, quando dá para identificar o que você comeu após aliviar-se no banheiro.

“Fezes com pedaços de alimento inteiro pode ser mastigação deficiente ou má absorção. Não digerimos celulose, mas se mastigarmos bem, as nossas bactérias conseguem quebrá-la e digeri-la”, esclarece a enfermeira.

Ter uma microbioma saudável pode, antes de colocá-lo como um possível doador, deixá-lo longe da fila de possíveis receptores. A ingestão de frutas, legumes e gorduras de boa qualidade faz parte da dieta daqueles que têm um quadro intestinal saudável, assim como a pouca ingestão de alimentos processados, sal e açúcar.

Saiba indentificar

Referência para os pacientes descreverem aos médicos como está a evacuação:

Tipo 1

Pequenas bolinhas duras, separadas como coquinhos (difícil para sair).

Tipo 2

Formato de linguiça encaroçada, com pequenas bolinhas grudadas.

Tipo 3

Formato de linguiça com rachaduras na superfície.

Tipo 4

Alongada com formato de salsicha ou cobra, lisa e macia.

Tipo 5

Pedaços macios e separados, com bordas bem definidas (fáceis de sair).

Tipo 6

Massa pastosa e fofa, com bordas irregulares.

Tipo 7

Totalmente líquida, sem pedaços sólidos.

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