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A quem interessa enfraquecer o Ministério Público?
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Uma das principais mudanças na estrutura social do Brasil foi promovida graças ao fortalecimento do Ministério Público. Apesar de estar no papel que a lei é para todos, ela não valia para punir quem tem dinheiro, prestígio ou poder. A impunidade brasileira é histórica e, se é um mal que faz crescer a criminalidade comum, foi o fermento de uma corrupção que se enraizou no poder público e até nas empresas. Esse quadro só mudou com o fortalecimento do Ministério Público, gradual desde a Constituição de 88 e que desgostou os ricos e poderosos principalmente depois da Lava Jato.

Muita gente não se lembra do processo que passamos até ver empresário rico e ex-presidente da República atrás das grades por corrupção. Eu sou uma das pessoas que viveu muito tempo achando que não viveria para ver esta mudança no Brasil. Ela veio quando se percebeu que o esquema para indicar o Procurador-Geral da República era viciado e acabava gerando um capacho da Presidência da República, um devedor de favores em vez de um defensor do povo.

Chegamos a um ponto em que o cargo mais alto do Ministério Público foi ocupado, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, por alguém que ganhou o apelido de "Engavetador Geral da República". Geraldo Brindeiro ficou no cargo por oito longos anos em que a oposição, a imprensa e os humoristas reclamavam. Em 2001, dois anos antes do final do mandato dele, uma ampla mobilização de promotores e procuradores acabou em um acordo para a mudança da regra de escolha do PGR.

Não se mudou lei. Duvido que isso fosse possível com os poderes Executivo e Legislativo coalhados de gente enrolada na Justiça e morrendo de medo de Ministério Público. Foi feita uma espécie de "acordo de cavalheiros". Sendo o Procurador-Geral da República escrutinado por toda a categoria, os compromissos com seus pares e com o povo seriam laços mais fortes que a necessidade de abaixar a cabeça a quem lhe alçou ao cargo por pura liberalidade.

O Ministério Público não é, como disse o presidente Jair Bolsonaro, a dama do tabuleiro de xadrez do governo, aquela que se desdobra em fazer correrias para proteger o rei, o governante. Não é parte do governo, não é parte de nenhum poder da República e tem como missão ser a última salvaguarda do povo diante dos desmandos dos poderosos. Diz o artigo 127 da Constituição: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

A escolha do PGR, desde 2001, começa quando os procuradores que desejarem livremente apresentam suas candidaturas à categoria. Este ano, 10 procuradores o fizeram. Eles percorrem o Brasil mostrando a seus pares quais os planos têm para o MP. Os projetos são submetidos a votação dos membros do Ministério Público em todo o Brasil. Os 3 vencedores são a tal da "lista tríplice", oferecida ao presidente da República para que escolha o PGR. É uma cópia do sistema que é obrigatório nos Estados.

E aí vem a grande pergunta: a quem interessa mudar esse tipo de escolha e enfraquecer novamente o Ministério Público? Não sei. Só sei que, com Ministério Público forte, dois ex-presidentes foram parar na cadeia e uma sofreu impeachment.

A lista tríplice oferecida a Jair Bolsonaro era encabeçada por um alguém muito alinhado ao espectro político dele, Mario Bonsaglia. Talvez tenha o defeito de não idolatrar políticos, o que é algo considerado grave para a República dos Capachos em que nos estamos convertendo. O escolhido foi Augusto Aras, homem competente e também com ideologia que parecia oposta à do Bolsonaro da campanha. É francamente contra a Lava Jato e chegou a fazer uma festa na própria casa em homenagem a José Dirceu. Nem as mentes mais disruptivas foram capazes de prever esse tipo de escolha.

Mas a escolha fora da lista com a volta à tradição do compadrio era previsível. Jair Bolsonaro tem muito passivo nos seus sucessivos mandatos e também nos mandatos dos filhos. Vai se arriscar como fizeram os demais presidentes? Duvido.

Augusto Aras, além de exercer a função de procurador, também advoga. E, vejam como o mundo é pequeno, é sócio do funcionário do Senado que deu o parecer favorável à indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Toda a vida política de Jair Bolsonaro foi tocada dessa forma. Obviamente as pessoas têm o direito de se indignar, mas não o de dizer que foram surpreendidas.

Na despedida de Raquel Dodge, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, proferiu um discurso histórico e fora do seu padrão técnico de falar. Foi muito claro ao dizer a quem interessa enfraquecer o Ministério Público:

“Sabemos todos que regimes autocráticos, que governantes ímprobos, que cidadãos corruptos e que autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à própria desconstrução democrática temem um Ministério Público independente. Pois o Ministério Público, longe de curvar-se aos desígnios dos detentores do poder, tanto do poder político, quanto do poder econômico, ou do poder corporativo, ou ainda do poder religioso, o Ministério Público tem a percepção superior de que somente a preservação da ordem democrática, fora da qual não há salvação, e o respeito efetivo às leis dessa República laica, revelam-se dignos de sua proteção institucional” - disse Celso de Mello.

O Ministério Público sentiu o baque. Promotores e procuradores entraram num clima de luto depois de anunciada a volta aos tempos em que ter dinheiro, prestígio ou poder significa também ser inimputável. Têm sido feitas inúmeras cartas abertas, notas oficiais, manifestações nos Estados e pela internet. Nada disso, no entanto, será suficiente para abrir os olhos da população para a gravidade do momento.

Somente quando a população se der conta do retrocesso que é a escolha da lista tríplice e da fábrica de corrupção que é um Ministério Público agachado o Senado poderá ser sensibilizado a dizer não a essa tentativa do presidente. Não se enganem: senadores poderosos perderam o mandato e amargaram cadeia depois dessa novidade de dar força ao MP, usarão todas as desculpas do mundo para mudar esse estado de coisas. Político só tem medo de uma coisa: povo na rua. E o povo não vai às ruas defender ou combater o que não lhe toca o coração.

A vocação do Ministério Público é servir o povo. A luta dos que têm como ofício servir se faz servindo, não parando para chorar.

Só vejo uma forma de virar o jogo: o Ministério Público colocar todas suas energias em mostrar muito claramente ao povo a diferença que faz na vida do Brasil. Em vez de gastar as energias no luto diante da puxada de tapete, promotores e procuradores têm o dever, consigo mesmos e com o povo, de buscar no fundo da alma a chama do idealismo que os fez brilhar nos casos em que fizeram as defesas mais apaixonadas. É desses promotores e procuradores que precisamos agora, dos que têm paixão por defender os interesses do povo.

Que se dediquem a ouvir o clamor popular, tarefa que agora é muito mais fácil com as redes sociais e agir. É atuando com rigor e paixão nos casos que complicam a vida das pessoas em cada município brasileiro que o Ministério Público pode mostrar a diferença que faz e o risco que corremos caso se aprove um nome fora da lista tríplice.

O Ministério Público está sob ataque e de nada adiantará permanecer na defensiva. O marinheiro se conhece na tempestade.

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