• Carregando...
Como assim o casal Garotinho estava solto?
| Foto:

Quando soube que o casal Garotinho havia sido preso, minha surpresa foi com o fato de estarem soltos. Sinceramente, não imaginava. A quantidade de poderosos que operações da Polícia Federal e do Minstério Público botam atrás das grades é diretamente proporcional ao número de relaxamentos de prisão que seus advogados regiamente pagos conseguem.

Sou favorável a uma versão brasileira da lei que rege o direito em muitos países: há que se comprovar a origem dos recursos que pagam os advogados. Mesmo os maiores bandidos do mundo podem ter fontes lícitas de renda e é com elas que devem pagar para ter, na prática, uma defesa melhor. Utilizar o produto do crime para melhorar a qualidade da defesa é uma excrescência que não tem nos ajudado a debelar a impunidade.

Mas voltemos ao casal, evangélico como eu. Dizem que Jesus é 10 e o que estraga é a torcida. Sou forçada a concordar. Rosinha Garotinho está na segunda prisão e o marido na quarta. Ambos são ex-governadores do Rio de Janeiro, cargo que parece ter virado literalmente chave de cadeia.

Não são apenas 6 prisões, são episódios espetacularizados pela própria família, que renderam cenas folclóricas e rasteiras da crônica político-policial brasileira. Quem não se lembra do vídeo deprimente do chilique na ambulância?

Esse episódio, vindo do pior que se pode esperar da classe política, liberou o pior que se pode esperar do brasileiro para florescer. Teve gente que se sentiu satisfeita, achou bom ou divertido, sentiu-se vingada. É o que os políticos querem: despertar um pedaço torpe da alma do cidadão comum para que ele preencha a alma com vingança e esqueça da Justiça. Está aí: Garotinho, até hoje de manhã, estava preso.

Teve ainda a prisão durante um programa de rádio ao vivo, uma grande novidade nessa seara de prisões. O curioso é que, como apresentador - talentosíssimo, aliás - Anthony Garotinho só fazia denunciar políticos corruptos neste programa que precisou abandonar ao vivo para ser preso por corrupção.

Não parou por aí. Limite, infelizmente, é artigo em falta no universo político brasileiro. O grande argumento de Anthony e Rosinha Garotinho para não ir para a cadeia é o risco: quem esteve na chefia das polícias obviamente é alvo de vingança de outros bandidos, aqueles ligados à criminalidade comum que foram presos enquanto eles governavam. É o mesmo argumento usado por outros ex-governadores do Rio de Janeiro ao receberem uma ordem de prisão, algo que ocorreu com todos os governadores vivos do Estado.

Obviamente os agentes de segurança estão atentos a este argumento porque é fato. Outro fato é que nenhum ex-governador preso foi vítima de criminosos comuns sedentos por vingança dentro da cadeia. Ciente disso, Anthony Garotinho, foi o primeiro. Quer dizer, não foi agredido por nenhum criminoso comum, mas por ele próprio. Isso mesmo: simulou um espancamento para justificar que precisava sair da cadeia por razões de segurança. Não contava com a presença de câmeras, instaladas depois que deixou o governo e capazes de revelar algumas das cenas mais ridículas envolvendo políticos na cadeia.

Mesmo depois disso tudo, o casal Garotinho estava solto. E agora, com a nova prisão, não deixaram nem o novo governador passar em branco. Wilson Witzel, aquele que se diz implacável contra o crime, teve um secretário levado ao xilindró junto com o casal evangélico.

A defesa de Anthony Garotinho diz que a prisão dele e da esposa é ilegal e uma retaliação política. O governador, o mesmo que promete tiro na "cabecinha" de bandido, aparentemente ainda não decidiu se seu auxiliar direto preso é ou não bandido. Também não disse o que ocorrerá com ele. Resta a nós ver quanto tempo essas prisões duram. A cadeia geralmente é mais suave para quem tem dinheiro, prestígio e poder.

Talvez pelo acúmulo de situações como essas, a população deixe de acreditar na Justiça para acreditar na vingança. Até porque o sonho de todo cidadão comum é ser tratado pela Justiça como são os poderosos corruptos: com respeito e direito até de espernear pela imprensa. Minhas experiências pessoais na Justiça brasileira foram todas catastróficas: nunca perdi, mas arquei com mais consequências que os perdedores em todas elas. É um labirinto feito para punir com o processo em si, não com a sentença.

A mistura desse clima de descrença nas instituições com um aumento significativo da tolerância à barbárie produziu mais um episódio bizarro de violência no dia-a-dia. Um rapaz já com histórico de criminalidade, pequenos furtos, acabou sendo torturado pelos seguranças de um mercadinho que suspeitavam que ele havia surrupiado um chocolate. (ATENÇÃO - IMAGENS FORTES)

Pode ser que ele tenha furtado o chocolate e, segundo os relatos de quem mora perto daquele Ricoy na periferia de São Paulo, não era a primeira vez. Óbvio que merece ser punido. Mas o fato é que o mesmo estabelecimento que pretende, com razão, punir um furto dá emprego a torturadores e facilita a eles o lugar para a tortura.

O vídeo é absolutamente chocante pelo sadismo. O rapaz está nu e amordaçado, é chicoteado insistentemente enquanto ouve ameaças de morte. É difícil até ver o vídeo, embrulha o estômago. Imagine que tipo de ser humano é capaz de fazer deste tipo de ato abjeto um meio de vida.

Tortura é mais grave que furto. Torturador é mais perigoso que punguista. E a população parece ter perdido completamente a noção disso.

Talvez os justiçamentos sejam uma forma de se vingar dos políticos que nos iludem a cada dois anos e, afiançados pela nossa credulidade, ganham uma espécie de salvo-conduto para delinquir sem grandes incômodos. Se for assim, os perversos que ocupam a política conseguiram vitória: transformaram o cidadão comum em algo mais abjeto que a própria corrupção, em algo tosco, cruel, que tem prazer com sangue e sofrimento.

Não creio que seja este o caso, que de tanto ver triunfar a maldade alguém resolva se tornar um monstro com estômago para tortura. Creio ser este um sinal de que teremos, em breve, novos poderosos delinquentes.

Conhecemos as pessoas quando damos poder a elas. Há uma infinidade de atitudes que se pode tomar contra um ladrãozinho de chocolates que incomoda o mercadinho. Deixá-lo nu, amordaçado e sendo chicoteado enquanto ouve ameaças de morte parece um tanto além da reação ao ato. Dá a impressão de ser apenas uma desculpa, uma oportunidade catártica para realizar fantasias sádicas.

E esses sádicos ganharão cada vez mais poder. Haverá quem os justifique de maneira covarde, guardando dentro da alma a própria indecência. Mas haverá também quem goste de bater no peito para se aliar à crueldade, a turma do "tá com pena?" e "leva para casa". Usam essas frases para absolver tortura, o ato considerado o mais elevado na escala da psicopatia. E é assim que os monstros chegam ao poder e continuarão chegando: graças à legião dos passadores de pano, que possibilitam uma escalada ao topo da sociedade pisando nas cabeças de quem é frágil ou tem escrúpulos.

De alguns anos para cá, principalmente após a Lava Jato, muita coisa mudou. Os delinquentes no poder têm enfrentado as consequências de seus atos muitas vezes, há vários deles na cadeia, gente que nenhum de nós jamais imaginou que tivesse de pagar pelos próprios pecados. Poder não tem vácuo. Não deixemos que seja ocupado pela nova geração de delinquentes. O Brasil não precisa de gente batendo no peito e gritando palavras de ordem, precisa de moral e princípios.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]