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Em defesa da família
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Foi até poético que, ignorando fatos, alguns tenham comemorado que a política de direitos humanos do Brasil será em defesa da família. A Declaração Universal dos Direitos humanos já é em defesa da família.

A palavra família aparece 6 vezes no documento e a proteção especial não poderia ser mais clara do que o texto do 3o parágrafo do art. XVI: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado." O autoritarismo se consolida quando contra argumentos não há fatos.

Cedemos ao mal aos poucos, nas pequenas decisões. Já tive a infelicidade de acompanhar conhecidos que enveredaram pela trilha da corrupção. Nada é abrupto, são pequenas concessões que vão extrapolando o limite cada vez mais até que a pessoa se transforma.

Limites não são fixos, movem-se ao sabor das reações daqueles com quem convivemos. Num ambiente de poder em que as transgressões são tratadas com normalidade, muito maior a possibilidade de perder a bússola moral. Da mesma forma, é mais difícil que as pessoas transgridam quando os demais expõem que não aceitam esse comportamento.

Vivemos em uma sociedade onde a proteção da família é um valor importante para a maioria das pessoas. Mas, passando dos sentimentos aos fatos, é possível realmente proteger a família como instituição quando somos permissivos com a bajulação e a covardia?

Bajulação implica a crença de que determinados seres humanos valem e podem mais que os outros. Seriam eles então a base da sociedade, não a família. Covardia implica não ser capaz de defender, como adulto, os valores da família e talvez nem a própria família. A conveniência seria, então, a base da sociedade.

Por se lambuzar na lama da conveniência, atolada em uma permissividade doentia com os covardes e bajuladores, parte dos defensores da família não é capaz de erguer a voz para protestar contra um dos maiores atentados de uma autoridade brasileira contra a instituição familiar.

"Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar e essas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro ", disse o senhor presidente da República, Jair Bolsonaro.

Não vou entrar na discussão sobre o nível de vilania e sadismo da declaração, possível apenas porque o presidente está convencido de que não precisa respeitar nenhum limite. Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, não enterrou o próprio pai, não teve direito a uma das mais sagradas tradições das famílias humanas.

O pai dele, Fernando Santa Cruz, foi capturado pela ditadura em 1974 e o corpo jamais foi devolvido à família. A suspeita é que tenha sido cremado em um forno de uma usina de cana. Não há defensor da vida que possa compactuar com uma violência dessas. Nenhum defensor da família apóia qualquer tipo de política que tenha o esfacelamento de famílias como arma.

Há, obviamente, os que se dizem defensores da vida e da família e apóiam esse tipo de declaração monstruosa. Tem ainda os que calam diante dessas falas, num incentivo covarde para que as próximas sejam ainda piores. É gente que diz defender a vida e a família porque pega bem mas, na hora "h", não é capaz de defender coisa nenhuma além da conveniência.

Nenhuma autoridade faz declarações inofensivas, todas elas afetam a sociedade. A verbalização é a materialização em palavras daquilo que somos, da forma como sentimos o mundo. Jair Bolsonaro já elogiou publicamente todos os tipos de ditadores: o sanguinário Pinochet, o pedófilo Stroessner e até o esquerdista Hugo Chávez, quando este resolveu dissolver o Congresso.

Em todas essas ditaduras houve tortura, justificada sempre diante da ameaça de algo pior que atingiria toda a sociedade. É preciso quebrar espíritos e dissolver famílias para que as versões se sobreponham ao fato e que um pequeno grupo resolva ter mais poder que um país inteiro.

A psiquiatria divide os psicopatas assassinos em 22 níveis de maldade, começando pelos que matam e justificam como uma necessidade, seja por defesa, ciúme ou trauma. Esses são os bonzinhos. Os mais perigosos são os envolvidos com torturas:

22. Psicopatas que colocam vítimas sob tortura extrema por um longo período e depois matam

21. Psicopatas que não matam suas vítimas, mas as colocam sob tortura extrema

20. Assassinos que têm tortura como motivo principal

19. Psicopatas levados ao terrorismo, subjugação, intimidação e estupro sem assassinato

18. Assassinos torturadores

Não há torturador que não tenha a marca da maldade. O mesmo vale para os que encomendam tortura ou calam diante dela. A história da humanidade mostra quantas vezes cidadãos comuns, por ação ou omissão, permitiram as maiores barbaridades coletivas em nome da política.

Alguns desavisados andam alegando que os torturados eram terroristas, cometeram ou planejaram atos horrendos. Não é mentira nem faz com que a tortura seja menos grave e o torturador menos sádico. O próprio Jair Bolsonaro, aliás, tinha o plano de colocar bombas em um quartel do Exército e felizmente nem o executou nem foi torturado por essa intenção.

Quem defende um torturador é capaz de qualquer coisa. Quando o presidente da República e seus príncipes insistem em elogiar o falecido coronel Ustra, torturador que atentava contra a vida humana e destruía famílias, escancaram quais sãos seus valores. Há muitas coisas que, para eles, vêm antes da defesa da vida e da família.

O pior dessa lógica é a noção de que alguns seres humanos valem mais do que os outros. Não somos então todos irmãos, criaturas do mesmo Deus, feitas à imagem e semelhança dEle. O que determina o valor da vida não seria mais sua sacralidade, mas o quanto aquele ser humano apóia ou deixa de apoiar determinada causa ou grupo político.

De tanto achar gente que contemporiza, o presidente da República se comporta como se fosse um cidadão acima dos demais, com direito inclusive a atacar valores como a vida, a família e a liberdade.

Nelson Rodrigues dizia que "a liberdade é mais importante que o pão". Os liberais brasileiros vivem da forma inversa. De olho na liberdade econômica, permitem com covardia e passividade todo e qualquer atentado às liberdades individuais.

Até mesmo apoiadores de Jair Bolsonaro reconhecem que estamos numa escalada de esgarçamento de limites. Temos de decidir quais são nossos valores mais caros: vida e família ou o amor por um político. Quem calar hoje diante do nível a que chegou o presidente da República já escolheu o que prioriza.

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