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Governar por decretos esbarra no autoritarismo
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Leis não podem ser modificadas por decreto, simples assim. Estamos numa encruzilhada sem precedentes, em que o Poder Executivo insiste em exacerbar suas funções, emite decretos que revogam leis e o país cala, entorpecido pelo circo das brigas de quinta categoria que a base governista fomenta pela internet.

O que mais causou polêmica foi o decreto das armas, em que o próprio governo confessou andar na linha fina entre a legalidade e o excesso. Talvez tenha sido um balão de ensaio para verificar se uma sociedade entorpecida por escândalos políticos e crises fabricadas percebe as coisas realmente importantes. Se foi, estão de parabéns, ótima estratégia: ninguém percebe mesmo.

Por quê leis não podem ser modificadas por decretos? Porque é concentração de poder, risco de autoritarismo. Leis são feitas pelo Poder Legislativo, sancionadas pelo Poder Executivo e, se vetadas, examinadas pelo Legislativo novamente. Decreto é uma canetada presidencial sem consulta a ninguém.

A lógica é que, se uma regra foi criada para a sociedade por um conjunto de dezenas de representantes democraticamente eleitos, incluindo aí a participação do Presidente da República, ela não pode ser revogada por apenas um deles. É o mesmo que estipular que esse um tem mais poderes ou legitimidade que os demais, quando não tem.

A teoria é muito bonita e funcionou muito bem até que se cruzasse essa fronteira com o decreto das armas, que precisou ser refeito. Na salada feita por filhos bagunceiros e uma base pirotécnica que vivem de factoides no twitter, o país se entorpece e mal percebe que há um problema maior, mais grave e que só cresce: os decretos que modificam leis.

O mais preocupante deles é o que institui o programa "Meu corrupto, minha vida", Decreto 9830 de 2019. Se isso valesse na época de Dilma e Lula, não teria Lava Jato.

Em uma canetada, o Poder Executivo exacerba completamente seus poderes e modifica o coração das decisões judiciais, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de 1942, que estipula o que deve ser levado em conta para tomar cada decisão à luz de todo o arcabouço legislativo.

O decreto diz que está "regulamentando" a lei. Seria cômico se não fosse trágico. Trata-se de uma legislação já regulamentada, pacificada, solidificada há quase 70 anos. Ela foi mudada e para pior, agora alivia para os corruptos.

Art. 8º Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos, as dificuldades reais do agente público e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Na decisão sobre a regularidade de conduta ou a validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, serão consideradas as circunstâncias práticas que impuseram, limitaram ou condicionaram a ação do agente público.

A mudança é a seguinte: em vez de considerar se o agente público cumpriu ou não as regras, será analisado se estava difícil de cumprir. O critério de objetividade, central na análise dos atos do Poder Público, simplesmente foi tombado a canetada. Piora no artigo 12 que, na prática, é um habeas corpus preventivo para a delinquência no serviço público.

Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

§ 2º Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.

§ 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.

§ 4º A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público.

§ 5º O montante do dano ao erário, ainda que expressivo, não poderá, por si só, ser elemento para caracterizar o erro grosseiro ou o dolo.

§ 6º A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.

§ 7º No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.

§ 8º O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.

Levando em conta essas regras, nem Dilma nem Collor teriam sofrido impeachment. Não importa mais o nexo entre a conduta e o dano à sociedade, não importa o montante, importa só se a pessoa teve ou não a intenção de delinquir. Como se prova isso? Telepatia?

O que seria um grau "elevado" de erro? Ora, erro é erro. Se alguém ocupa um cargo público sem estar à altura dele é uma forma de corrupção, não pode prosseguir da mesma forma. Ficam aqui isentos também os agentes públicos que nomeiam subordinados incompetentes ou corruptos. Até esse decreto, era crime típico de funcionário público não punir o subordinado que se desvia.

Ninguém mais será condenado por corrupção, esqueçam. O pior golpe na Lava Jato não é a Vaza Jato, é a quase total impossibilidade de punir agentes públicos decidida em um decreto do presidente Jair Bolsonaro.

Não foi o único decreto mudando lei em um único dia. Tem também o seguinte, o Decreto 9831/2019, que implode o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à tortura.

A ginástica jurídica na introdução é louvável. O decreto diz ter a finalidade de alterar a estrutura de cargos comissionados do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, regulamentar o Decreto feito para regulamentar a Lei que instituiu o tal sistema. Você não leu errado. É isso mesmo, infelizmente.

Ocorre que o Decreto de Bolsonaro vai bem além desse equilibrismo jurídico do enunciado. Ele modifica a lei 12847/2013, que institui detalhadamente o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Ah, mas o presidente não pode querer modificar os cargos? Pode e pode até fazer isso, desde que seja dentro da lei.

Os integrantes dos conselhos de Prevenção e Combate à Tortura já disseram que vão recorrer ao Judiciário contra o Decreto. No caso do "Vale Corrupção", estranhamente, nenhum dos cavaleiros templários da jihad contra os corruptos deu um pio.

O presidente da República chegou até a apoiar passeata que pregava o fechamento do Congresso e do STF. Não é nenhuma novidade que não reconheça as demais partes legítimas no processo democrático, eleitas como ele para representar o povo. O que surpreende é o silêncio e o agachamento do Congresso Nacional, renovado pelo povo nas eleições justamente para deixar de ser um puxadinho do Palácio do Planalto.

Deputados e senadores não foram eleitos para ficar fazendo selfie e furdunço no twitter, receberam a confiança da população brasileira e juraram defender a Constituição e a democracia. Isso não se faz lacrando em rede social, se faz com coragem.

O agachamento covarde de parlamentares diante de ataques coordenados contra eles nas redes sociais já dava a medida do problema que enfrentamos. Quem não defende a própria honra é capaz de defender uma ideia ou uma ideologia? Não. E, na hora da tempestade, os marinheiros simplesmente estão dormindo.

Mais inadmissível que um presidente modificar Leis por Decretos é um Congresso Nacional agachado diante da reiteração dessa prática. Das duas, uma: ou gostaram do "Vale Corrupto" ou estão mais preocupados com likes do que com o Brasil.

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