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FOTO: IVAN AMORIN
FOTO: IVAN AMORIN| Foto: GAZETA

Uma semana foi suficiente para que a cena descrita por Rodrigo Janot, o assassinato do juiz, virasse uma tragédia da vida real com menção direta ao episódio. Não faltaram vozes, de várias áreas do conhecimento, alertando sobre o poder das palavras. Ao descrever a cena - que ninguém sabe se é verídica - em que entrou armado em uma sessão do Supremo Tribunal Federal porque queria matar o ministro Gilmar Mendes, o ex-PGR abriu uma caixa de pandora: uma vez vocalizada por alguém importante, a cena passa de fantasia a possibilidade.

No começo do mês, cheguei a fazer uma postagem sobre isso: "Xingadores de redes sociais escalam para atos violentos". Nos casos descritos, temos provocadores com muito menos influência e atos finais com muito menos gravidade, felizmente. Os xingadores profissionais de redes sociais não contam com o respeito da sociedade, muitas vezes provocam apenas desconforto e na maioria são dignos de pena. Alguém que foi o Procurador-Geral da República responsável por instituir a Força-Tarefa da Lava Jato tem um potencial incendiário infinitamente maior.

Toda barbárie registrada na história começou com palavras que normalizaram a violência. É cômodo classificar como "loucos" os agressivos, mas é irresponsável.

Obviamente ninguém equilibrado vai ouvir um discurso violento - seja dos perdedores boca-de-latrina nas redes sociais ou de alguém importante - e se tornar automaticamente uma pessoa violenta. Só que não podemos ignorar o fato de que, entre nós, há muitos que estão a um passo de cometer um ato bárbaro. É para esses, que por desequilíbrio ou traço de personalidade, já têm uma tendência à violência que o discurso agressivo é libertador. A partir do momento em que as fantasias mais escuras são materializadas na fala pública de outra pessoa, elas deixam de ser assim tão vergonhosas.

O site Consultor Jurídico - Conjur, fez a cobertura mais detalhada do episódio em que o procurador tentou esfaquear uma juíza em São Paulo. Ele citou textualmente a fala de Janot e, na verdade, queria esfaquear o primeiro juiz que encontrasse pela frente. A vítima nem costuma trabalhar ali, estava por acaso. Houve os cruéis e boçais que, num primeiro momento, fizeram piada ou até deram apoio à declaração de Janot. Nas mentes mais estreitas, ao dizer que queria matar Gilmar Mendes, ele colocaria em risco o ministro. Não é assim: ele legitima a fantasia de matar quem ocupa posições semelhantes à do ministro, de ter o poder de decidir contra a nossa vontade. Pior é que a história pode ser uma grande lorota. O jornalista Felipe Recondo publicou no site Jota que Janot nem estava em Brasília no dia em que disse ter ido armado ao STF.

Se, nos casos dos atiradores solitários, são necessários meses ou anos ouvindo outros perdedores agressivos até cometer uma barbárie, a palavra de autoridades tem mais força. Bastou uma declaração de Janot e uma semana para que alguém perturbado libertasse seus demônios.

O Procurador da Fazenda Nacional Matheus Carneiro Assunção já estava alterado quando despachou com a desembargadora Cecilia Marcondes, no Tribunal Regional Federal da 3a Região. Em tempos agressivos, temos dificuldade de saber que tipo de alteração é perigosa e que tipo passou a fazer parte do que definimos como normalidade. Nenhum alerta foi feito. Ele prosseguiu trabalhando.

Foi ao 22o andar falar com o desembargador Fabio Prieto, que presidia uma sessão de julgamento e, por isso, não estava no gabinete. Então, o procurador desceu um andar e foi até o gabinete de outro desembargador, Paulo Fontes, que está em férias. Mas o gabinete não estava vazio, já que as férias dos desembargadores são cobertas por juízes. Estava lá a vítima, juíza Louise Filgueiras, que se salvou por presença de espírito ou intervenção divina - escolha em que você quer acreditar.

As mesas dos desembargadores do TRF-3 são grandes, muito grandes mesmo. E só por isso o procurador não conseguiu atingir a juíza como pretendia. Acertou uma facada no pescoço que, felizmente, resultou em ferimento leve. Não contente, jogou uma jarra de vidro na direção da juíza, mas errou o alvo. Com o barulho, a segurança do Tribunal entrou no gabinete e imobilizou o procurador.

Muitas pessoas notaram que ele não parecia bem quando andava pelos corredores, segundo a reportagem do Conjur. Falava sozinho, mas murmurava coisas bem corretas, como "acabar com a corrupção no Brasil". Os seguranças que o detiveram relatam que estava confuso e disse que deveria ter entrado armado no tribunal "para fazer o que Janot deixou de fazer". Teria feito o mesmo caso o ex-PGR não tivesse levantado a lebre de matar Gilmar Mendes? Jamais saberemos, sabemos apenas que fez exatamente uma semana depois.

A era da opressão de vozes dissonantes usando como desculpas o "politicamente correto" esgotou a paciência de muita gente, mas não é resposta deixar correr solto e triunfar o discurso de apologia da violência, como temos feito.

E como saber a medida exata do que é liberdade de expressão e do que realmente coloca a sociedade em risco. Não se trata de ciência exata e muita gente recorre aos princípios - apenas os que têm princípios, obviamente. Se você não permite um tipo de discurso dentro da sua casa, deve impor limites quando vir algo do tipo sendo feito na internet, onde também está sua família. Simples assim.

Quer dizer, simples de falar e muito difícil mesmo de fazer. Crescemos e aprendemos limites sem a existência do ambiente virtual, numa época em que declarações tresloucadas via mídia não eram absorvidas na intimidade de um celular, mas sucedidas de debates em família. Quem estava ali, no limite entre a razão e o disparate, acabava sendo obrigado a passar pelo processo do debate familiar sobre a loucura, o que inibe a realização de fantasias perversas. Óbvio que sempre houve quem pusesse essas fantasias em prática, mas trocar o debate com pessoas que não têm essas fantasias por fóruns obscuros cheios de lunáticos violentos faz com que mais gente perca os freios.

Por não sabermos exatamente como impor limites no ambiente virtual, onde os desajustados conseguem formar turmas com desajustados do mundo inteiro, resolvemos compartimentar. Internet é uma vida, realidade é outra, como se fosse possível um ser humano ser dois. Já sabemos que não funciona. Há, no entanto, alguns comportamentos que funcionam e não envolvem a necessidade de você entrar em embate com gente desequilibrada.

Tenho aprendido muito com o projeto Redes Cordiais. Sugiro que você visite o Instagram deles, coalhado de dicas simples e práticas para não assistir passivamente à escalada da agressividade na nossa sociedade. Fomos orientados sempre a ignorar os agressivos e deu muito certo, só que para eles. Fingir que um problema não existe jamais foi solução, precisamos nos unir e encontrar novos caminhos longe do domínio da violência.

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