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Neymar, Mc Reaça e o colapso dos princípios
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O Supremo Tribunal da Internet já julgou os casos Neymar e Mc Reaça, que explodiram no final de semana como uma dose adicional de tristeza ao nosso dia-a-dia. A única certeza que temos sobre os dois casos é a de não saber o suficiente sobre os fatos para condenar nem absolver ninguém.

Danem-se os fatos. O que importa no Supremo Tribunal da Internet é ter uma opinião sobre tudo, ser expert em tudo, dominar todos os fatos, enxergar conspirações até em barraquinha de cachorro-quente. As reações dizem pouco sobre os casos em si, mas são dignas de um estudo sociológico. Como chegamos a esse ponto de violência e de normalização da violência em relações familiares e íntimas?

O caso Neymar é mais uma pedrinha no edifício de soberba e sentimento de estar acima das regras que permeia a carreira de um jogador brilhante dentro do campo. O jogador foi acusado de estupro por alguém que agiu de forma responsável diante da denúncia: foi à polícia. Não teve choro por redes sociais, tentativa de difamação, nada disso, uma denúncia com perícia que demonstrou equimoses e stress pós-traumático.

Apesar de ser, há anos, cercado de uma entourage regiamente paga para proteger seu nome, Neymar não só se envolveu numa história dessas como resolveu reagir da pior forma possível: publicando conversas privadas e cenas da moça nua em seu perfil, com milhões de seguidores. O que ele pretendia com isso?

Nada do que foi publicado o exonera da acusação. Sob o ponto de vista jurídico, alguns advogados que consultei dizem ser praxe nesse tipo de defesa tentar desqualificar a conduta da vítima. A grande questão é a forma escolhida: via redes sociais, o que gerou uma outra investigação paralela.

Importante lembrar que tudo isso foi feito num contexto em que, embora as informações sejam escassas, o Supremo Tribunal da Internet já tem milhares de juízes com seus vereditos.

Logo depois chega, para uma boa parte das pessoas pelo twitter do Presidente da República, a notícia dessa tragédia humana envolvendo Tales Volpi, o Mc Reaça. Comentou Jair Bolsonaro na postagem: " Tales Volpi, conhecido como Mc Reaça, nos deixou no dia de ontem. Tinha o sonho de mudar o país e apostou em meu nome por meio de seu grande talento. Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. Que Deus o conforte juntamente com seus familiares e amigos".

Talvez o presidente tenha postado sem saber das circunstâncias macabras da morte ou não tenha ainda a consciência plena de que é o Presidente da República e não deve sair por aí exonerando quem tenta praticar um aborto na pancada e contra a vontade da mãe. Não era um presidente conservador?

Todo suicídio envolve uma dose enorme de sofrimento e desespero. Nesse caso, por piores que sejam os detalhes, não é diferente. O que leva um rapaz de 27 anos de idade a tirar a própria vida porque se envolveu numa situação já enfrentada por milhões de pessoas será sempre um mistério e uma tragédia.

O talento celebrado pós-morte pelo nosso presidente, que se diz conservador, e por várias figuras ligadas a ele que também se dizem conservadoras é fazer uma paródia de um funk proibidão contendo os seguintes versos: " Dou pra CUT pão com mortadela / E pras feministas, ração na tigela /As mina de direita, são as top mais bela / Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela"

Uma sociedade que trata esse discurso como "zueira" está, na verdade, tentando tirar a gravidade do que ele carrega e o potencial perigo representado por pessoas que celebram uma barbaridade dessas. Havia o perigo. Calamos todos, sem imaginar que fosse algo além de uma brincadeira de muito mau gosto.

O mais chocante, para mim, é que Jair Bolsonaro não tenha dado uma única palavra de solidariedade ao bebezinho, no ventre da mãe espancada, que já sofre as consequências de decisões erradas dos pais antes de nascer.

Não importa que era um caso extraconjugal, não importa o tipo de relação que tinham os pais, o resultado é um morto, uma moça internada em estado grave com o maxilar quebrado e um bebê com a vida por um fio, no ventre dela. O Mc Reaça era professor de boxe, sabia que estava fazendo um aborto na base da pancada e efetivamente deixou isso nas entrelinhas da mensagem para a esposa.

Autoridades do nosso país trataram uma tragédia dessa magnitude com pronunciamentos exatamente iguais aos que seriam feitos caso o Mc Reaça tivesse sido vítima de um acidente, de uma doença, de um mal súbito. Não foi. Foi vítima da hipocrisia da vida dupla e de uma alma atormentada que causou sofrimento a si e a quem estava em volta. Nenhuma autoridade tem licença para ignorar esse tipo de drama e dar a quem é seu apoiador o passe livre para a barbárie.

Um Presidente da República deve a cada cidadão o mesmo tipo de satisfações e respeito que deve a seus apoiadores. Um jogador famoso tem de seguir as mesmas regras de todos os demais seres humanos para conviver em sociedade. Em que ponto perdemos essa noção?

Nos dois casos, o tempo será o senhor da razão. Que a polícia seja correta e eficiente na investigação da denúncia contra Neymar e que a Justiça impere. Que Deus acolha a alma atormentada de Tales Volpi em sua infinita bondade e console os corações dos que ficaram aqui para lidar com a tragédia, sobretudo o bebê já marcado pela brutalidade antes do nascimento e as mulheres marcadas para sempre por essa história.

Há uma linha perversa em comum entre o caso Neymar e o caso Mc Reaça: perdemos a capacidade de resolver problemas pelo diálogo? A brutalidade virou a resposta aos dilemas íntimos e familiares?

Nos dois casos, qualquer que seja a versão final a prevalecer, faltou o mais básico das relações humanas: diálogo, empatia, princípios, amor. Não há como ter harmonia sem isso, o conflito é inevitável e pode ter, como teve, um desfecho dramático.

Talvez o mundo que deveria descortinar perspectivas infinitas tenha se revelado o da desesperança. Para os jovens, toda perspectiva de sucesso está necessariamente ligada a fama e poder.

Nesse contexto, o sucesso pessoal depende apenas dos outros e não das relações pessoais necessariamente, mas das aparências que impressionam os outros para fazer parecer que alguém manda ou que sua fama está consolidada. Não há como viver assim e pensar no próximo, o foco é sempre o "eu", como aparenta, como pensa, que batalhas precisa vencer no dia para fazer sucesso.

As formas violentas de comunicação, que tornaram-se o prato do dia da internet, estariam também contaminando os relacionamentos familiares? Subtituímos a compreensão e o perdão pela necessidade de ganhar cada embate e não levar desaforo para casa?

Óbvio que sempre existiram esses casos dramáticos, o que surpreende é a frequência e a quantidade de pessoas que os tratam como se fossem normais, corriqueiros, aquilo que deveríamos esperar. Não são. Vivemos a era do estímulo à violência e ao embate, como se as vitórias ou o deleite com o sofrimento alheio fossem as coroas do sucesso. São justamente o oposto, o símbolo do fracasso de uma sociedade.

Nessa piscina de violência em que foram jogadas as relações, é preciso que cada um de nós repense as escolhas e a forma de se colocar publicamente. Ainda que a maioria esteja bem distante desse nível de barbárie, o fato de ela ocorrer e ser tida como normal por muitos nos obriga a um questionamento.

Que tipo de relação violenta estamos tornando normal no nosso dia-a-dia? De que forma estamos nos deixando contaminar por esse ambiente que instiga a violência? Que atitudes podemos tomar para reverter esse caminho e viver de acordo com nossos princípios mais caros, colocando nossas famílias em primeiro lugar e cumprindo nossas obrigações com a sociedade?

É necessário definir o que é importante em nossas vidas e viver principalmente para isso, não para as distrações periféricas. O vazio existencial gera reações ruidosas e quase sempre violentas. Não nos deixemos sugar pelo vácuo. Os sinais de que é necessário repensar as relações humanas estão aí, é só não ignorar.

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