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Promotor que virou meme agora é punido por misoginia
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O caso de Deltan Dallagnol obviamente foi o que mobilizou as atenções na 11a Sessão Ordinária do Conselho Nacional do Ministério Público este ano. É um outro caso menos conhecido, no entanto, o que mais abre ao público as entranhas da Justiça brasileira. Um promotor que já havia virado meme por ir às vias de fato com um advogado em pleno julgamento - quase caiu em cima do réu - agora é suspenso por ofender as colegas mulheres nas redes sociais.

A atuação do promotor paulista Fernando Albuquerque Soares de Souza foi em um grupo fechado no Facebook chamado MPSP Livre, integrado por 840 membros do Ministério Público de São Paulo. Recebeu punição de 5 dias de suspensão, da qual ele recorria pedindo nulidade.

A defesa do promotor alegava cerceamento de defesa. Havia tentado colocar no processo alguns documentos que não foram aceitos. Segundo o CNMP, não era nada relativo ao caso mas os autos de um outro caso, diferente, também envolvendo atuação no Facebook. Alegou ainda que a gravação de uma testemunha ficou inaudível, mas a testemunha foi ouvida de novo. Também alegou que havia relação de confiança entre o Procurador-Geral do Estado, que aplicou sua pena, e a promotora ofendida. O CNMP não entendeu assim.

Em 2011, Fernando Albuquerque Soares de Souza foi um pioneiro na viralização de vídeos da vida real como meme. Um vídeo postado pelo pequeno canal da Acrimesp, Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo, chegou ao monumental número de mais de 2,5 milhões de visualizações graças à performance durante um julgamento criminal.

O promotor não gostou de alguma declaração do advogado de defesa e começou a xingar não só ele, mas também a mãe dele. A coisa foi esquentando. O tom subiu. A cereja do bolo é quando o promotor parte para cima do advogado e quase cai em cima do réu, que faz uma cara impagável antes de levantar da cadeira. A briga é apartada pela Polícia Militar e, segundos depois, o promotor tenta voltar às vias de fato.

Os concursos públicos brasileiros não têm uma forma eficaz de medir como os candidatos lidam com o poder, se têm controle de suas emoções e muito menos questões como ética e capacidade de dedicação à democracia e ao povo brasileiro. Passa quem decora melhor e, nesse bolo, temos a sorte de filtrar alguns que também têm as características não avaliadas, mas que são as fundamentais para o cargo.

Voltemos ao grupo fechado dos promotores no Facebook. Toda a confusão começou porque 3 colegas, todas mulheres, postaram entrevistas que tinham dado sobre casos com os quais trabalharam.

O promotor respondeu de uma forma que, entre os internautas, é um clichê: o macho-palestrinha. Trata-se do homem que, ao ver uma mulher abrir a boca, sente a necessidade irresistível de explicar a ela o contexto do que ela disse. Alguns são agressivos e ele abusou desse direito, segundo o CNMP.

À colega que postou uma entrevista sobre coibir fraudes nas cotas para mulheres em eleições, respondeu: "Trabalha-se muito para dar benefícios às mulheres e nada para exigir delas comportamento decente." Certamente, o nobre representante do parquet é um entendido em comportamento decente.

Depois, duas promotoras postaram a entrevista que deram sobre um caso que chocou São Paulo: o maníaco sexual que ejaculava em moças no transporte público. O colega respondeu: "Imagino a corrida ao salão de beleza para se preparar para as entrevistas que surgirão após a nova investida do tarado."

Obviamente, as colegas reclamaram da postura diante do trabalho delas, que estava sendo exposto em um grupo com centenas de outros colegas. Foi a chave para que a coisa acelerasse: "Obrigado por ligar para o SAC da Fernando Produções. Suas considerações são muito importantes para nós. No momento, os nossos operadores estão ocupados".

Não parou por aí, teve de apelar também para a diminuição da colega e, outro clichê das redes sociais, a tentativa de contrabandear para a definição de humor o que é só ofensa, ressentimento e agressividade. "Ô mocinha, vai eliminar seu mau humor em outro lugar. Tá louco, quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece. Vai pela sombra. Mimimi. Continuo bem humorado, apesar das duas colegas que gostam de se jogar no chão e pedir falta. Vocês devem estar adorando. kkkkk"

A defesa do promotor não tentou justificar o que ele disse às colegas. Graças a Deus os integrantes da Justiça não desceram ao subsolo moral em que já residem alguns integrantes do Executivo e Legislativo. Foi feita uma defesa técnica, tentando suspender a suspensão de 5 dias que já havia sido efetivamente aplicada. O CNMP negou.

Aqui não se trata de suspender alguém por uma semana ou não, mas de marcar posição. Ou a instituição permite que seus membros desçam ao esgoto do comportamento social ou os adverte quando cruzam a linha da civilidade, há que se optar.

“Agiu instigando a discriminação em razão do sexo e humilhando as mulheres apenas pelo fato de serem mulheres”, diz o voto do relator, Fabio Stica, que explicou: “Tal atitude indecorosa e desrespeitosa é absolutamente incompatível com o exercício da função de membro do Ministério Público, defensor da lei e dos interesses sociais indisponíveis, devendo ser exemplarmente punida e desmotivada”.

Não sei se 5 dias de suspensão são suficientes para desmotivar que membros do Ministério Público se comportem nas redes como se fossem membros do submundo. Mas o julgamento, sem dúvida nenhuma é um precedente para o futuro, o reconhecimento de que não há duas pessoas, uma que existe só nas redes sociais e outra no ambiente real. Os dois ambientes são reais.

A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, afirmou que“O CNMP patrocina a liberdade de expressão, mas não seu abuso. O respaldo deste Conselho ao repúdio pela violência contra mulher é absolutamente relevante”. Ah, mas ele não praticou violência, só tirou sarro. Humilhar não é humor e, cá entre nós, se o promotor realmente tentou ser engraçado em suas postagens, precisa urgentemente rever seu comportamento social.

As redes sociais são hoje o principal meio de comunicação entre as pessoas. Golaço do Ministério Público ao deixar claro, por meio deste julgamento que não vai tolerar manchas à imagem da instituição decorrentes da falta de controle emocional de alguns de seus membros. É preciso estar à altura do cargo exercido e as instituições têm o dever de fazer esse controle.

Durante algum tempo houve quem pensasse que, mesmo investido de um cargo público, podia exercê-lo durante o expediente e comportar-se de maneira absolutamente antissocial nas horas de folga, principalmente se for só pela internet. O CMNP deixou claro que não pode: é necessário manter o decoro o tempo todo porque cada atitude de um membro do Ministério Público respinga na instituição, que pertence não aos seus membros, mas ao povo brasileiro.

Pode parecer apenas um detalhe e é um julgamento com pena pequena. De qualquer forma, é um grande acerto, com efeito cascata. Instituições que não fazem essas correções de rumo podem descer a ladeira completamente. A normalização do baixo nível na comunicação via redes sociais invariavelmente acaba extrapolando para interações pessoais e, às vezes, até para pronunciamentos oficiais, em nome de todo um povo.

Dizem por aí que, quando não há freio, as pessoas passam a achar normal qualquer coisa. Quem antes, por exemplo, se escandalizava quando alguém dizia em privado a horrorosa expressão "mulheres de grelo duro" pode até achar normal falar "porra" em pronunciamento oficial, com direito a replay ao vivo.

O Ministério Público talvez creia ter evitado chegar ao absurdo completo em que seus membros falam de "cocô" e usam o verbo "cagar" diariamente e repetidas vezes enquanto representam a instituição. Já eu sou otimista. Não creio que ninguém em sã consciência chegue a esse ponto, seria um exagero completo.

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