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Xingadores de redes sociais escalam para atos violentos
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Há quem viva a vida como se palavras fossem somente palavras, sem consequências, levadas pelo vento, somem da mesma forma como aparecem, num breve instante. Tem gente que promete de tudo a todos e não dá conta. Alguns tratam os amores e afetos como peões de um jogo de palavras. Existem os atores, que fazem da palavra de ficção o ofício de uma vida. E, entre eles e os demais mortais, os políticos que criam uma ficção e acreditam viver nela.

Muitas das palavras que foram proferidas para morrer no vento e jamais virar um pedaço de realidade acabaram gravadas na pedra das redes sociais. O que é dito num tweet, numa mensagem de whatsapp, num post de facebook ou numa legenda de foto do instagram pode ter uma intenção efêmera, momentânea, mas não será mais levado pelo vento. O print é eterno e as consequências dele também.

Seria ótimo se as palavras não tivessem consequências, mas têm. Cada uma delas tem sua própria energia capaz de mudar circunstâncias. Nenhuma palavra passa pelo mundo à toa e é nas palavras que começam as ações, as grandes e as pequenas.

A palavra que está na ordem do dia é intolerância e, estranhamente, por excesso de tolerância com o intolerável. Todos temos fantasias infantis de dizimar nossos inimigos mas, na vida adulta, aprendemos que nem todos que pensam diferente são inimigos e que não podemos sair por aí feito super-heróis, batendo e matando quando discordamos ou não vamos com a cara de alguém. Isso se ensina pelo exemplo, mas principalmente pela palavra.

Ocorre que temos ensinado o oposto. Temos tolerado pessoas baixas, vulgares, boçais e violentas pregarem abertamente a eliminação de quem discorda delas. Quem não se opõe abertamente a esse tipo de discurso é porque o tolera. E tolerar, muitas vezes, diz mais sobre nós que as nossas palavras ou nossas ações.

Muitos creem que pessoas virulentas talvez falem "só da boca para fora". Já ouvi isso até de gente que se diz cristã e deveria saber que "a boca fala daquilo que está cheio o coração". É pela palavra que o coração do mau, do torpe, do violento e do trapaceiro abrirá caminho para as ações condenáveis que lhe trazem prazer. Muitas vezes não importa se é ele quem realiza, há os que tenham prazer com a dor alheia, a humilhação e o malfeito de qualquer origem, mais ainda quando se sentem pelo menos um pouquinho responsáveis.

Está na hora de colocar um freio nos virulentos, boçais, intolerantes e violentos que têm dominado o discurso das redes sociais. Há quem já tenha começado a partir para a ação. Todos - exatamente todos - os envolvidos em tiroteios contra multidões recentemente nos Estados Unidos eram parte da turma que "fala bobagem" nas redes sociais. Não são bobagens, são anúncios.

O primeiro teste do limite do outro ou da sociedade é pela palavra. Ninguém impõe um regime de terror ou um genocídio a bala, começa falando num tom mais alto, perseguindo alguém, ridicularizando uma pessoa e medindo a reação dos demais. O processo é o mesmo, seja nos grandes ou pequenos empreendimentos da violência. Agressões dentro de casa não começam no tapa, mas no menosprezo, depois na humilhação verbal, nos gritos, nas ameaças, no controle e, quando aquilo não choca, pode evoluir para algo mais grave. Os que não reagem, por covardia ou por concordar com a maldade em alguma porção escura da alma, são os que incentivam a escalada. Quando já não há mais limites para a intolerância com palavras, começa a escalada.

Creio ser desnecessário falar sobre como toleramos a total derrocada do nível do debate político. Ideias não são mais debatidas, o debate foi substituído por xingamentos, ameaças e assassinatos de reputação. Quem ganha? A escória que faz isso direito e os que silenciosamente vibram com os feitos.

Já não há mais limites para o que se diz em privado, nas redes sociais ou até no debate público. Temos políticos que mentem abertamente e, quando confrontados, dizem que jornalista precisa ir preso ou lançam mão do espetáculo mórbido: falar de escatologia, postar golden shower ou xingar um interlocutor específico como se os dois tivessem o mesmo poder.

Acobertadas e incentivadas por estes que estão no topo da pirâmide da boçalidade virulenta, surgem as gangues virtuais. Desocupados ressentidos que se juntam para apedrejar o mundo, achar defeito nos outros e até confessar, em grupos de whatsapp, que estão submetendo alguém a um tormento para "ver se a pessoa se mata".

Agora a parte mais ousada, intolerante e violenta da escória já se sente livre para agir da mesma forma como fala nas redes sociais. Três episódios recentes contam bem essa história e, infelizmente, não creio que serão os últimos.

O que ficou mais famoso é o ataque ao restaurante palestino Al Janiah, no Bixiga, região central de São Paulo. A filmagem foi compartilhada no Facebook por um frequentador que descreveu os criminosos como "fascistas". O local é conhecido por empregar imigrantes e promover debates políticos e culturais. Por volta das 3h30 da madrugada deste domingo, um grupo passou jogando garrafas nos frequentadores.

Outro episódio foi a tentativa de interromper o show de stand up do humorista Gustavo Mendes, que ficou conhecido do público por suas imitações escrachadas de Dilma Rousseff. Muito provavelmente, os petistas não gostavam nem um pouco da imitação que ele fazia, mas ele fez durante todo o mandato da presidente e chegou até a TV Globo com ela. Ah, mas experimenta fazer uma graça com Jair Bolsonaro.

O bolsonarismo roubou a bandeira do vitimismo de toda a humanidade. Qualquer expressão que não seja um gigantesco elogio merece ser calada. E é isso o que fizeram no show do comediante, que expulsou os autoritários. Em sua conta de Instagram, Gustavo Mendes postou:

"É possível que você já tenha sabido o que aconteceu durante o meu show em Teófilo Otoni. Parte da plateia, insatisfeita com as piadas sobre Bolsonaro se sentiu no direito de dizer o que eu posso ou não posso falar nos meus shows. E Isso nunca, amiguinhos, nunca vai acontecer, porque isso se chama censura e eu não vou aceitar essa tentativa de intimidação. Principalmente vindo de pessoas que se articularam para isso.
O problema daquelas pessoas não eram as piadas políticas.
Ora, eu sou Gustavo Mendes. Minha trajetória sempre foi de assumir posições com força e transparência, mesmo sabendo que isso incomodava muita gente. O Humor é sempre OPOSIÇÃO.
Esse é o papel do artista e principalmente o do comediante: incomodar os poderosos.
Onde estavam essas pessoas quando eu debochava da Dilma? Debochava do Temer?
Eu amo meu público, mesmo aqueles que votaram no Bolsonaro, mas não vou me calar diante do que está acontecendo hoje no Brasil
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Em outro episódio, o Estado do Pará resolveu levar a sério uma ameaça contra jornalista e realmente investigar. Trata-se do caso de Adécio Piran, dono de um blog e há 20 anos editor do jornal Folha do Progresso, que cobre política local em Novo Progresso. Além de receber ameaças, também foi o alvo de uma tentativa de assassinato de reputação. Um panfleto impresso circulou na região dizendo horrores sobre o jornalista, tudo mentira.

Os casos iguais a esses se avolumam no país ultimamente mas é difícil ameaça ser levada a sério por autoridades. Devido à realidade daquela região do Pará, onde realmente conflitos acabam em morte, principalmente se relacionados a grileiros, a polícia decidiu agir. O jornalista Décio Piran noticiou "O Dia do Fogo" tal como testemunhou em sua região. Foi a gota d'água para fanáticos políticos.

A polícia paraense concluir que as ameaças e o panfleto difamatório não vinham de grileiros, os criminosos mais comuns da região. Elas vinham do administrador do grupo de whatsapp "Direita Unida Renovada", que já prestou depoimento e vai responder pelo feito.

Nota oficial da polícia do Estado do Pará sobre a ameaça contra um jornalista.
Nota oficial da polícia do Estado do Pará sobre a ameaça contra um jornalista.

Você que está lendo com toda certeza pode listar mais uma série de exemplos do mesmo tipo que citei aqui. Não creio que cidadãos de bem sejam influenciados por palavras e se tornem monstros. Quem tem princípios simplesmente tem. Mas há os que fingem ter, que saboreiam a valorização social por pregar algo que não vivem nem sentem e se sentem finalmente libertos quando se passa a aceitar também a torpeza que transborda de seu caráter. São esses, os que sempre foram maus, que passarão dos pensamentos e palavras violentos para as ações.

Esse processo já começou. Inicia-se geralmente com o chorume humano que espera qualquer brecha na reprovação social para praticar atos horrendos. Depois vai agregando os que são apenas violentos e já não mais se contentam com o discurso. E então será o quê? Será o que nós permitirmos, o que nós tolerarmos.

O mal existe e os maus existem, sempre existiram e sempre existirão. A questão é: quantos de nós estão dispostos a deixar que nossas vidas e nossos relacionamentos sejam governados por eles? Se você é mais um dos que não suporta o nível de imbecilidade e violência do debate público, levante sua voz. Sem reprovação social não vai ter polícia que resolva a liberação da barbárie.

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