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Joe Biden, então vice-presidente de Barack Obama, em 2015, em visita a uma das maiores fraudes de startups do Vale do Silício: a Theranos, de Elizabeth Holmes.

Anderson Godz

Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.

Redes sociais e exposição

Polarização política escancara nova “armadura medieval” criada pela tecnologia

16/11/2020 19:30
A foto acima mostra Joe Biden, então vice-presidente de Barack Obama, em 2015, em visita a uma das maiores fraudes de startups do Vale do Silício: a Theranos, de Elizabeth Holmes. Para quem não se lembra, a empresa prometia uma tecnologia revolucionária para realizar diagnósticos com uma pequena quantidade de sangue. O produto, porém, sequer existia.
Discutimos essa fraude muitas vezes na comunidade Gonew.co, mas esse não é o ponto aqui. É que essa foto me levou a uma reflexão e comecei a usar a memória das redes para um experimento que consiste em pesquisar a história digital recente de personalidades ou de fatos da atualidade.
Vejam, então, que interessante esse exemplo: Joe Biden, então vice-presidente norte-americano (e agora presidente eleito), chegou a afirmar, lá em 2015, para Holmes, a líder sociopata de um dos maiores golpes (mesmo!) do Vale do Silício: “o presidente [Obama] e eu compartilhamos sua visão do novo paradigma de saúde, com foco em cuidados preventivos”.
Mais ou menos na mesma época, o ex-presidente Bill Clinton também esteve com Holmes, quando eles conversaram sobre o “futuro da igualdade da oportunidade”. Pouco tempo depois, veio à tona o escândalo envolvendo a Theranos, com exames fraudados e até morte.
Apenas cinco anos depois, a equipe de Biden traz no relatório “Biden Administration Agenda” — que deve guiar a gestão do democrata pelos próximos quatro anos — que vai “dar continuidade às investigações/ações judiciais da gestão Trump contra plataformas tecnológicas dominantes”.
Antes que você poste sua indignação ou euforia polarizada após ler esses primeiros parágrafos envolvendo contradições de presidentes norte-americanos além-Trump, busque comigo, por gentileza e por mais difícil que seja, não tomar um lado e seguir no raciocínio. Por quê? Porque estamos exatamente como Biden e Clinton.
Dos momentos mais simples do nosso cotidiano, que agora são digitais – e logo registrados a sete chaves em blockchain –, às nossas posições e ações mais rebuscadas: tudo são memórias digitais que não se apagam mais (mesmo que a gente queira, printscreens e deep web podem ser eternos). O resultado disso é um ciclo de hiperexposição e superficialidade.
No
primeiro estágio desse ciclo, estamos, todos nós – políticos, empresas,
governos – disputando o maior ativo de todos, que é a atenção. Por ego,
necessidade, estratégia ou ingenuidade, somos cobrados (ou nos cobramos e sequer
conseguimos mais distinguir um motivo de outro) a nos posicionar diante dos
desafios e contradições do mundo.

que, agora, a tecnologia nos agrupa em feudos (quem diria!), que de tão
nichados geram alto senso de pertencimento e engajamento, mas, ao mesmo tempo,
de miopia.
Sigamos o ciclo: é como se nossas hashtags de fiéis fervorosos, compartilhadas entre iguais e feudais, fossem as novas armaduras. Sentimo-nos fortes. E, como bárbaros medievais, somos impelidos a ousar, protestar e devemos nos posicionar rapidamente sobre tudo e qualquer coisa. O problema é que tudo e qualquer coisa agora é muita coisa, guerreiro! O que temos é uma era de excesso de informação, com bilhões de visões, destemperos e variações do mesmo tema, que perdem o tom sobre todos os conflitos e contradições do mundo. Que rolo!
E é aí que esse ciclo vicioso encontra o que talvez seja o pior dos problemas: o tempo exíguo para entender de fato um fato, perceber pontos de vista diferentes, exercitar empatia, construir, aprender. Nos tristes trópicos, então, isso se acentua, e a carência de conhecimento parece até uma virtude. Dá menos trabalho lacrar.
No
fim, para fechar esse ciclo da inutilidade e superficialidade disparamos uma
metralhadora feudal e nos engajamos em muito mais coisas de forma mais fácil.
Os golpes, agora, são likes, retuítes, comentários que escalam milhares a
partir da ponta dos dedos da armadura sem impressão digital. Esses golpes
acertam em cheio o fígado e o ego de uma sociedade que só olha para baixo – e
nem mais para o umbigo, mas para o smartphone. Pobre mundo feudal-digital.
O ponto é que tempos hiperpolarizados envoltos em um turbilhão de memórias que não se apagam nos brindam com o mesmo problema: estamos todos hiperexpostos. Uns mais e outros menos, é verdade, mas todos muito mais expostos do que já estivemos. Não dá mais tempo de checar nada; nem mesmo o vice-presidente de uma das maiores potências mundiais sabia direito o tamanho da asneira que estava falando.
Políticos de qualquer espectro, nossas empresas, jornalistas, o "tio da padoca”, eu e você... Estamos todos com uma armadura medieval. Nela, sentimos que somos mais fortes, imbatíveis e até anônimos, por vezes; agora, reforçados por levantes hiperconectados. No fundo, apenas parecemos mais fortes.
Se repararmos bem, dentro da armadura nossos movimentos são limitados, nossa visão é reduzida. Estamos isolados, mais pesados, fazemos muito mais esforço para embates inúteis a todo o tempo – independentemente do tempo e das circunstâncias em que ocorreram. Mesmo assim, saímos lutando, destemidos. Só que nos esquecemos que são outras oito bilhões de armaduras digitais e, invariavelmente, ficamos cansados e cansamos uns aos outros. Cansados, no fim do dia, acabamos nos tornando um alvo fácil. Em vez de utilizarmos ferro para afiar o ferro e silício para o bem, caminhamos todos para a ferrugem.

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