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Nunes Marques e André Mendonça reconhecem ilegalidade das medidas contra Daniel Silveira
| Foto: Reprodução

Durante as últimas semanas, o Min. Alexandre de Moraes foi novamente protagonista de polêmicas. Em ação penal movida contra o Deputado Daniel Silveira, ação essa que tem sido pesadamente criticada por juristas de escol – inclusive de grupos ideologicamente contrários ao parlamentar –, o magistrado impôs novas e pesadas restrições ao mandatário.

Conforme noticiou o jornal Gazeta do Povo:

  • “O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou nesta sexta-feira (25) que o deputado federal Daniel Silveira (União Brasil-RJ) volte a usar tornozeleira eletrônica e proibiu o político de participar de qualquer evento público em território nacional. A Seap (Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro) ‘deverá fornecer informações semanais’ de ‘todos os dados pertinentes à referida monitoração’.
  • No despacho, Moraes também proíbe Silveira de ‘se ausentar da Comarca em que reside, salvo para Brasília/DF, com a finalidade de assegurar o pleno exercício do mandato parlamentar’. Se descumprir as ordens, o deputado será preso novamente.”

No mesmo processo, o magistrado já havia proibido o Daniel Silveira de acessar as redes sociais.

Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo corretamente concluíram que algumas das restrições impostas configuram censura prévia.

A defesa do Deputado Federal requereu que as imposições fossem submetidas ao Plenário da Câmara, conforme decidido pelo próprio Supremo na ADIn 5.526. Consoante precedente fixado naquela ação, ficou assentado que medidas cautelares que direta ou indiretamente inviabilizassem o regular exercício do mandato deveriam ser examinadas pela respectiva Casa Legislativa, em virtude do disposto no art. 53, § 2º, da Constituição Federal.

Assombrosamente, os ministros do STF alegaram que o regular exercício do mandato parlamentar não ficaria direta ou indiretamente inviabilizado, mesmo com as draconianas restrições impostas à capacidade de comunicação do parlamentar, uma vez que ficou ele impedido de acessar redes sociais, dar entrevistas ou frequentar quaisquer eventos públicos, bem como ficou autorizado a transitar apenas entre a cidade de domicílio e Brasília. Com base nessa alegação, indeferiram a necessidade de submissão das medidas à Câmara dos Deputados.

O parlamentar, então, noticiou que passaria a morar na Câmara a fim de se proteger das imposições que alegava serem ilegais, até que a Casa Legislativa deliberasse sobre o pedido de sustação da ação penal contra ele em curso.

A Polícia Federal chegou a se dirigir à Casa de representação popular para tentar cumprir a decisão contra Silveira, mas sem sucesso.

Em vista desse fato, o ministro Alexandre de Moraes impôs sobre o parlamentar novas restrições, as quais não contam com previsão legal no CPP. O ministro determinou a aplicação de uma inusualmente pesada multa no valor de R$ 15.000,00 e o bloqueio de todas as contas do deputado.

A esposa de Silveira chegou a gravar um vídeo em que alegou que ele teria sido reduzido a uma situação humilhante em que mesmo suas contas salarias teriam sido confiscados. Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo consideraram as medidas ilegais e inconstitucionais e mais de mil advogados subscreveram duríssima nota contra a decisão, na qual afirmam “que o parlamentar está sofrendo ‘perseguição política-judicial e ideológica’ em um inquérito ‘inconstitucional e ilegal’. O texto condena ainda as violações ao exercício da profissão do advogado de defesa de Silveira, Paulo Faria”. Senadores se mobilizaram para que o ministro seja convidado a comparecer perante o Senado para dar explicações.

De todo modo, o Plenário do STF referendou a decisão por 9 votos a 2.

Gostaria aqui, no entanto, de me deter não na decisão majoritária, mas no voto vencido, com o qual comungo, redigido pelo ministro Kássio Nunes Marques e acompanhado pelo ministro André Mendonça. Isso porque ele pode ser lido como indício de uma inicial renovação benéfica no STF. De fato, o voto é humanista, técnico e ponderado, consistindo em motivo de grande esperança quanto ao futuro da Corte, caso as vagas do Tribunal sigam sendo preenchidas com juristas com esse perfil.

Vejamos o teor do voto, cujo inteiro teor pode ser baixado clicando aqui.

Inicialmente, ele expõe que as medidas aplicadas não possuem previsão legal. Com efeito, as chamadas cautelares alternativas à prisão estão dispostas no art. 319 do CPP, inexistindo lá previsão de aplicação de multa. Ainda, como existe dispositivo expresso sobre quais as medidas cabíveis no Código de Processo Penal, o ministro argumentou que não seria possível tomar emprestada a imposição de multa prevista na legislação do processo civil, o que só é viável quando a lei processual penal é silente sobre o tema. Realmente, é lição assentada em nossa tradição jurídica e na própria jurisprudência do STF que a chamada aplicação analógica (grosso modo, aplicação emprestada de um dispositivo de outra lei) só é cabível em caso de lacuna (isto é, silêncio sobre o ponto na legislação, a princípio, incindível). Logo, inexistindo silêncio na legislação processual penal, onde o tema é tratado no mencionado art. 319, afastada estaria a possibilidade de uso de instituto do Código de Processo Civil.

No jargão jurídico, esse tema é muito comumente tratado sob o rótulo de cautelares atípicas. Medidas cautelares são aquelas impostas visando a garantir o cumprimento de uma outra decisão. Quando elas estão previstas expressamente na legislação são ditas cautelares típicas, enquanto que do contrário são descritas como atípicas.

Pois bem, o voto vencido registrou: “Não é cabível, pois, com a devida vênia, a criação de medidas não explicitadas no artigo 319 do Código de Processo Penal”. Ou seja, os ministros se posicionaram pela inviabilidade da imposição de cautelares atípicas.

Como fundamento dessa posição, o Ministro utilizou ainda a doutrina do jurista Rodrigo Capez, na obra “Prisão e Medidas Cautelares Diversas: A Individualização da Medida Cautelar no Processo Penal” (2017), p. 416/424. Confira um trecho:

  • "O princípio da legalidade incide no processo penal, enquanto ‘legalidade da repressão’, como exigência de tipicidade (‘nulla coactio sine lege’) das medidas cautelares, a implicar o princípio da taxatividade: medidas cautelares pessoais são apenas aquelas legalmente previstas e nas hipóteses estritas que a lei autoriza. O juiz, no processo penal, está rigorosamente vinculado às previsões legislativas, razão por que somente pode decretar as medidas coercitivas previstas em lei e nas condições por ela estabelecidas, não se admitindo medidas cautelares atípicas (isto é, não previstas em lei) nem o recurso à analogia com o processo civil. No processo penal, portanto, não existe o poder geral de cautela.
  • (…) Em suma, as medidas cautelares limitadoras da liberdade reduzem-se a um número fechado de hipóteses, ‘sem espaço para aplicações analógicas ou outras intervenções (mais ou menos criativas)’ do juiz, ainda que a pretexto de favorecer o imputado. Trata-se de uma enumeração exaustiva (‘numerus clausus’), e não de uma lista aberta, meramente exemplificativa (‘numerus apertus’).”

Frise-se que essa posição já havia sido aceita no próprio Supremo em outras oportunidades. Confira o seguinte julgado, a título de exemplo:

  • PROCESSO PENAL – PODER GERAL DE CAUTELA – INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE ESTRITA E DA TIPICIDADE PROCESSUAL – CONSEQUENTE INADMISSIBILIDADE DA ADOÇÃO, PELO MAGISTRADO, DE MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS, INESPECÍFICAS OU INOMINADAS EM DETRIMENTO DO “STATUS LIBERTATIS” E DA ESFERA JURÍDICA DO INVESTIGADO, DO ACUSADO OU DO RÉU – O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DA LIBERDADE JURÍDICA DAS PESSOAS SOB PERSECUÇÃO CRIMINAL. – Inexiste, em nosso sistema jurídico, em matéria processual penal, o poder geral de cautela dos Juízes, notadamente em tema de privação e/ou de restrição da liberdade das pessoas, vedada, em consequência, em face dos postulados constitucionais da tipicidade processual e da legalidade estrita, a adoção, em detrimento do investigado, do acusado ou do réu, de provimentos cautelares inominados ou atípicos. O processo penal como instrumento de salvaguarda da liberdade jurídica das pessoas sob persecução criminal. Doutrina. Precedentes: HC 173.791/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 173.800/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 186.209- -MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. (HC 186490, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21-10-2020 PUBLIC 22-10-2020)

Além da impossibilidade da imposição da multa, o ministro salientou a desproporção de seu valor: “a fixação de multa, no valor de 15 mil reais por dia, a qual em dois dias alcançaria toda a remuneração líquida mensal do acusado, como também o bloqueio de suas contas bancárias para cumprimento das cautelares fixadas, não tem qualquer arrimo no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de forma transversa em confisco dos bens do réu em processo penal por decisão monocrática e cautelar do relator em ação penal originária, sem o devido processo legal, claramente incompatível com a Constituição da República. Afinal, vivemos em uma democracia, onde o estado de direito vige, não sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer medida privativa e/ou restritiva de direito não prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo constitucional.”

O magistrado ainda salientou que algumas das restrições impostas, particularmente, a censura sobre o uso das redes sociais deveriam cessar, uma vez que excessivas, visto que “estão a restringir o pleno exercício do mandato parlamentar, principalmente considerando que estamos em ano eleitoral e as eleições se avizinham, devendo o pleito ocorrer daqui a pouco mais de 6 meses.”

As palavras do magistrado são de enorme bom senso e sentido de responsabilidade diante da representação popular do parlamentar, o que foi ignorado pelos demais membros da Corte. Disse o ministro Nunes Marques, acompanhado por André Mendonça:

  • Como poderá o acusado fazer campanha e prestar contas a seu eleitor de forma plena com essas restrições? Encontrará ainda que involuntariamente em sua campanha com vários investigados nos inquéritos acima referidos e, se for privado de suas redes sociais, ficará em imensa desvantagem em relação aos outros candidatos seus eventuais concorrentes.
  • Se o acusado não puder atualmente usar suas redes sociais para ouvir seu eleitor e prestar contas de seu mandato e, tampouco em futuro próximo, caso se candidate ao mesmo ou outro cargo, ficará em séria desvantagem, uma vez que é fato notório hoje a importância das redes sociais para essas duas atividades (ouvir e prestar contas ao eleitor e eventual campanha eleitoral cuja época se avizinha), e que a primeira, ouvir e prestar contas ao eleitor é essencial ao exercício pleno da atividade parlamentar e que essa já se encontra consideravelmente prejudicada atualmente.”

Ambos os ministros ainda entenderam que caso as cautelares fossem mantidas, elas deveriam ser submetidas ao Plenário da Câmara dos Deputados, porquanto obviamente impactam no exercício do mandato parlamentar.

Por fim, como o Min. Alexandre de Moraes também determinou a abertura de nova investigação por suposto crime de desobediência, o voto divergente requereu que se determine a livre distribuição de novas investigações, vedando-se que elas fossem distribuídas por dependência ao próprio ministro cuja decisão foi supostamente desobedecida.

Frise-se que a violação à livre distribuição das investigações heterodoxas levadas a cabo pelo STF têm sido uma tônica – muito preocupante! – do modo como o Tribunal tem tratado tais feitos.

Analisando o caso, portanto, embora a decisão que me parece equivocada e ilegal tenha sido mantida, é relevante que tenha havido dois votos divergentes. Mormente, porque sua fundamentação me parece muito mais robusta e mais fiel à legislação brasileira e aos princípios constitucionais envolvidos.

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