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A autosseleção pode explicar a crise de credibilidade da imprensa tradicional
| Foto: Bigstock

Com esta pandemia, a combalida credibilidade da imprensa tradicional leva mais um golpe. Um jeito fácil de notar isso é olhar os comentários das notícias de mortes por mal súbito, infarto e coágulos no cérebro: sempre haverá quem escreva, jocosamente, que esse é o novo normal. Dado que a maior parte da imprensa tradicional ficou batendo o bumbo dizendo, a despeito das bulas, que vacinas inovadoras feitas em meses são seguras e eficazes, o comentarista de portal usa as frequentes notícias de mortes de jovens para dar uma espezinhada nos jornalistas.

Devo aqui vestir a camisa de comentarista de portal. Abro esse tipo de notícia para ver se alguém já comentou que esse é o novo normal e dar o meu joinha. Como vesti a camisa de comentarista de portal, devo também dizer que acredito que deve haver gente poderosa mancomunada para ganhar muito dinheiro com essas vacinas.

Assim, devo dizer também que acredito em conspiração. Basta ver que parte da imprensa tradicional perdeu o pudor e faz eventos de divulgação científica patrocinado por laboratório, o que, para mim, é um claro conflito ético: estamos num ambiente propício para a corrupção generalizada. Preferem que eu fale de corrupção em vez de conspiração? Paciência. O megaesquema de corrupção sul-americano voltado a encher os bolsos de ditaduras vermelhas era uma conspiração secreta. Conspirações existem, e grandes esquemas de corrupção requerem conspirações para serem levados a cabo.

Daí não se segue, porém, que cada matéria boba se explique porque cada jornalista recebeu uma caixa de uísque cheia de cédulas, ou que cada jornalista é um agente ideológico cônscio de querer jogar a água no chope do leitor. Agora eu tiro a minha camisa de comentarista de portal: conspirações são insuficientes para explicar a conduta dos jornalistas bobos que repetem narrativas.

A autosseleção

Eu poderia começar falando das faculdades de jornalismo, e o comentarista de portal, talvez versado nas teorias de Olavo de Carvalho, diria que as universidades obrigam os alunos a serem militantes de esquerda. Verdade, verdade. Ou verdade no mais das vezes, já que qualquer um pode fingir que é um adepto dos dogmas progressistas e enganar o professor até pegar o diploma. Mas tem algo ainda anterior, que é a autosseleção. É algo bem intuitivo até para quem está de fora da universidade pública: os cursos têm vestibulandos de perfis diferentes, e, por conseguinte, as turmas de calouros têm perfis diferentes que variam conforme o curso. O rapaz que quer fazer Ciências Sociais é igual ao que quer fazer Direito? Ambos são de humanas. Eu, que fui professora universitária e dava umas matérias chamadas “de balcão” pelo departamento de filosofia da UFBA, fui uma observadora privilegiada desse tipo de diferença. Filosofia é um departamento que dá muita aula para calouro de outros cursos. Por isso, os colegiados dos outros cursos chegam ao balcão do departamento de Filosofia e pedem as disciplinas: Introdução à Filosofia, Estética I, Lógica I e Filosofia da História. Eu fugi de Estética; o resto, eu dei.

Algumas diferenças eram explicáveis em função da concorrência. Os calouros de Direito tinham um português muito melhor do que todos os outros cursos. A minha explicação para isso era a concorrência alta no vestibular. No entanto, História e Economia eram muito menos concorridos do que Administração, e ainda assim o alunado dava de dez a zero em escrita. A explicação que pude dar para isso é conforme ao que eu via em sala na condição de aluna: gente que quer um curso teórico de humanas em específico me parecia mais dedicada a atividades intelectuais do que o vestibulando de administração, que, para mim, era o cara que não sabe o que quer fazer, não tem nenhuma aspiração intelectual e entra na universidade por vetor inercial. Dizer “vou prestar vestibular para Economia” era um mecanismo de seleção melhor para a escrita do que a concorrência mais alta do vestibular de Administração.

Escolhi a escrita como parâmetro porque é objetivo. Se fosse pelo interesse dos alunos, colocaria os de Economia e História no topo, sem os de Direito. Pelo que vi, estes, no mais das vezes, estavam na matéria só para cumprir tabela e pegar o diploma. Professor nenhum gosta de dar aula nesse clima; assim, é natural que a minha identificação seja maior com os alunos que se decidiram por cursos teóricos como o meu.

Ainda sobre a qualidade das turmas, fiquei positivamente surpresa com Secretariado Executivo, que tinha aulas de lógica. O alunado tinha um perfil bem específico: era 100% feminino, composto, no mais das vezes, por moças do interior diligentes e estudiosas. O português delas dava de dez a zero nos alunos da capital e não eram propensas a colar. Eu gostava de dar aula para elas. Pesava o fato de eu gostar de dar lógica, mas, se fosse algo meramente burocrático para elas, não seria bom para mim.

As humanas, os cirandeiros e os jornalistas

Digamos agora que você, leitor, gostava das aulas do professor de História e saiu do ensino médio querendo mudar o mundo. O seu curso poderia ser ou História, já que você gostava muito do seu professor vermelho, ou Ciências Sociais, o curso por assim dizer mais nobre, voltado quase exclusivamente para a Academia. O seu curso dificilmente será Filosofia – aquela coisa lá de grego antigo. Daí resulta que no meu campus as moscas mortas eram todas de Filosofia e Museologia, enquanto que o povo de Ciências Sociais e História ficava tentando fazer la revolución em eleição de DA, ou virar vereador pelo PSTU.

Agora digamos que você, leitor, terminou o ensino médio e quer salvar o planeta não pela revolución, mas abraçando árvore, comendo quinoa, fazendo ciranda e usando ecobags artesanais feitas por povos originários do Xingu. O seu curso provavelmente será Biologia, Agroecologia – outra coisa, e que nem é de humanas. Não estou dizendo que todo biólogo é cirandeiro abraçador de árvore. Estou dizendo que Eli Vieira, que fez biologia, deve ter tido uma porção de colega cirandeiro abraçador de árvore; eu não tive.

Assim, a pergunta de um milhão de dólares para entender cabeça de jornalista é: qual é o alunado de comunicação e jornalismo? Ao menos tirando pela minha experiência na UFBA, o estudante de jornalismo não está nem aí para la revolución. Em vez disso, quer ficar fumando maconha (o apelido da Facom, Faculdade de Comunicação, é Faconha) e acasalar. Os homens pegam mulher conforme sua fluência no beletrismo da moda; as mulheres selecionam o barbudinho de óculos de aros grossos e camisa florida conforme sua capacidade para fazer poemas ruins como AMAR ELO CURA. Numa palavra, se o sujeito quiser saber escrever o bastante para pegar mulher com base no papo, ele em geral não vai se aprofundar e fazer Letras; vai fazer Jornalismo. Aliás, se ele não quiser se aprofundar em absolutamente nada e ficar assim meio por dentro de tudo, ele pode fazer Jornalismo. Jornalismo é o curso ideal para quem quer afetar profundidade mesmo que seja superficial (o que não quer dizer que todo mundo que escolha fazer jornalismo tenha esse perfil).

Creio que o melhor jeito de se atestar isso é a maldita moda da cultura nerd. Cultura nerd serve para posar de gênio incompreendido só por ser um adolescente tardio com hobbies infantis. É muito investimento em aparência acompanhado de zero, necas, nadinha de nada, em conteúdo. Pois bem: os cursos de Jornalismo legitimaram essa frivolidade sob a chave de “cultura pop” ou contemporânea e tratam-na como especialidade legítima.

Assim, tomo o grupo dos formados em Jornalismo como um grupo especialmente propenso a seguir manadas para ficar bem na fita. Não precisa dar dinheiro, nem chamar numa salinha. Não precisa nem ter uma ideologia. Para repetir propaganda, basta o desejo de ser antenado.

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