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Morte trágica de policial baiano deu origem a uma onda de boatos que se espalharam pelas redes sociais, mas sem chegar ao povo do interior.
Morte trágica de policial baiano deu origem a uma onda de boatos que se espalharam pelas redes sociais, mas sem chegar ao povo do interior.| Foto: Reprodução/ Twitter

Ao acordar, por volta das 6 da manhã, pego o celular e vejo que lá estão as notificações do amigo colono gaúcho, que nunca esteve na Bahia, querendo saber do policial morto pelos colegas. Foi assim que tomei conhecimento da morte do policial em Salvador.

Em seguida, recebi dois vídeos: um fortemente editado, interpretando o fato como uma ação de um herói que não queria prender trabalhador e teria dado tiros para o alto, e outro que parecia ser uma live de Instagram gravada.

A live tinha o título “Policial tem surto na Barra” e foi transmitida pela conta privada im.galvao, de um fotógrafo. Reconheci perfeitamente o local. À direita, atrás de onde está o letreiro com o nome da cidade, fica o Farol da Barra. Salvador tem dois circuitos carnavalescos de trio elétrico: um na Barra e outro no Campo Grande. A esquerda sempre fez manifestações no Campo Grande, com direito a minitrio. Durante as mobilizações pelo impeachment, os antipetistas adotaram o outro circuito, da Barra, para fazer manifestações, também com trio e minitrio. A moda pegou direita afora, e até na Av. Paulista tem trio elétrico. Os habitantes da Barra têm um perfil parecido com os de Copacabana: área cara, turística, cheia de bares e velhinhos.

O meu amigo recebeu ainda a informação de que os policiais estavam revoltados com a morte do colega e logo haveria uma greve. Ameaça de greve é notícia velha por aqui. Tem nome, sobrenome e patente: Soldado Marco Prisco. Mas, como os não-baianos não conhecem esse indivíduo, podem cair na narrativa da revolução popular contra as medidas autoritárias impostas pelo governador petista.

“Rui Costa genocida”

Comecemos pelo assunto greve. Nos idos de 2001, houve uma terrível greve de polícia na Bahia, então governada pelos carlistas. Foi um terror: as pessoas não saíam nem para comprar pão, de tão perigosa que ficou a rua. Houve inúmeros arrastões e “acertos de contas”, isto é, chacinas. Segundo Reinaldo Azevedo, os petistas apoiaram a greve. O nome do Soldado Prisco emergiu como a de detestável líder dos sindicalistas achacadores.

Desde então, as ameaças de greve têm sido muitas, sempre vindas dele. A última greve memorável aconteceu no governo Dilma, com o petista Jaques Wagner como governador. No fim das contas, o governo federal mandou tanques do Exército para as ruas, porque outra vez ninguém queria pôr o pé na rua nem para comprar pão.

Dessa vez, Wagner fez boa figura e ganhou o respeito da população baiana quando apareceu no Jornal Nacional uma interceptação de mensagens telefônicas entre o Soldado Prisco, na Bahia, e o Cabo Daciolo, no Rio de Janeiro. Juntos, eles armavam uma ação para “tocar fogo na BR” às vésperas do Carnaval e achacar ambos os governos estaduais. Não é só greve (já ilegal) de cruzar os braços. É greve de parar de trabalhar na polícia para sair armado com capuz tocando o terror.

Prisco acabou preso em Tremembé, mas, sabe Deus como, está solto e vem se elegendo para o legislativo. De lá para cá, o Espírito Santo, meio de caminho entre os dois estados amotinados, teve de aturar achaques de policiais sindicalistas.

Prisco continua um sindicalista achacador. Vocês podem clicar aqui e ver que ele usa contra Rui Costa as mesmas hipérboles que os esquerdistas usam contra Bolsonaro. Chama Rui Costa de genocida porque põe os policiais para trabalhar durante pandemia. Ora, a pandemia foi ocasião para funcionário público ficar sem trabalhar, mas não para os policiais. A Covid era, para ele, pretexto para greve. Quando o policial em surto psicótico foi morto, aí estava mais uma prova de que o governador era genocida.

Depois, bolsonaristas inventaram que o PM estava revoltado por causa das medidas restritivas e o zap-zap se incendiou com uma história tão trágica. Os baianos estariam revoltados e prontos para acabar com o governador.

Mas os baianos estão revoltados?

O baiano da capital fica tão revoltado com fechamento de comércio quanto o paulistano, o carioca, o belo-horizontino, porque todas as capitais têm uma intensa atividade econômica em horário amplo, além de uma grande variedade de setores comerciais. Nas cidades do Rio de Janeiro, de Salvador e de São Paulo, as pessoas ouvem “política” e pensam no Palácio do Planalto.

Agora saia da capital de um estado agrário e vá para um município de 30 mil habitantes não muito longe, onde estou. Aqui, quem sofre é bar do centro. Em áreas irregulares, como de costume, o Estado não interfere, então tem paredão (coisa parecida com baile funk). Quanto ao comércio, a vida da cidade é quase toda diurna. Os roceiros vêm dos distritos de manhã cedinho em ônibus da prefeitura ou a cavalo e voltam no começo da tarde. As coisas abrem às 5 da manhã e às 16h30 o pequeno comércio já começa a fechar. Os supermercados que vão até mais tarde fecham às 20h. Assim, para boa parte da população baiana, o toque de recolher do governador, das 18 às 5h, é para inglês ver. Só enfurece a população de Salvador e de Feira de Santana, que não chegam nem a um quarto da população da Bahia. Quem está interessado nos votos do estado da Bahia pode dar um pontapé na população urbana.

Como os baianos do interior se informam? TV e rádio. Veem pelo menos um dos três jornais diários da Rede Bahia, afiliada da Globo e propriedade de ACM Jr. A rádio é municipal e, se bem entendi, vinculada ao ex-prefeito que não conseguiu se reeleger. As caixas de som ficam penduradas nos postes da praça e o comércio fica ouvindo o radialista tagarelando. Pois bem: fui ao bar sexta à tardinha e fiquei conversando com o dono. Ele, que ouve a rádio, estava apavorado porque a prefeitura ia fechar absolutamente tudo durante a Semana Santa. No dia seguinte, converso com uma funcionária municipal situacionista, que nega e fica assustada com o boato. Diz que, se a prefeita e o governador fechassem tudo, matavam eles.

Não creio que seja força de expressão, dado que em interior e em favela o povo mata mesmo. Quanto ao governador, ele, como todo governador baiano, se elegeu com apoio de coronéis do interior. Se Rui Costa dá a louca e resolve fechar tudo a sério, atrapalhando até o pessoal da roça, os coronéis vão ficar com cara de tacho perante seus redutos. Aí, se ele achar que precisa tomar alguma medida incômoda, que fazer? Chorar como um órfão na televisão e torcer para as pessoas terem pena. Nada de arroubos de tiranetes, como o governador de São Paulo.

A rua hoje

Depois de dar uma olhada no site do principal jornal de Salvador, onde se mencionava lá embaixo o surto de um policial, vou ao correio da cidade vizinha, que dizem ser mais vazio que o da minha. Nessa altura, Polzonoff também queria saber se era verdade a coisa do policial herói. Pouco depois, também o nosso chefe: eu tinha em meus cômputos três sulistas me perguntando, e nada na cidade ainda.

Passo num ponto de mototáxi. O papo não tem nada a ver com greve de polícia. Saio do correio, paro no verdureiro e resolvo perguntar se ele sabe de boato de greve de polícia. Ele não sabe e pede explicações. Quando explico que polícia matou polícia, a verdureira lá atrás diz que viu isso na TV.

Deu errado o correio da outra cidade por uma questão da matrícula do concursado que estava operando e não podia enviar livros pelo registro módico. Ou o sistema. Ou uma conjunção de matrícula e sistema. Enfrento então uma gostosa fila de uma hora e meia na minha cidade. Essa fila toda é de gente querendo pegar correspondência porque o correio não vai até o endereço delas. Nessa hora e meia, só um falou que recebeu pelo celular a história do policial herói. Esperava chegar em casa a tempo para ver o jornal do meio-dia.

Na fila, reclamavam das medidas que reduzem o tempo de atendimento para não aglomerar, mas aglomeram. Essa, sim, é uma queixa recorrente. A rádio diz que é culpa do governo federal, pois não vacinou os concursados do correio.

E o policial?

Ao que consta, ele nem sequer fez o discurso contra o lockdown. Estava com uma metralhadora na mão, já tinha atirado contra os colegas e estava fazendo uma contagem regressiva para disparar mais. Houve tentativa de negociação e ele foi atendido depois dos tiros. Quem quiser maiores detalhes pode revirar o site de Bocão, voltado para casos policiais.

A maior manchete, quando o leio, é que há boatos espalhados por bolsonaristas. O nome de Bia Kicis vem ao lado do infame Soldado Prisco. Duvido que ela apoiaria motins como o de 2001 e que acredita com excessiva facilidade em boatos. Falta muito preparo aos deputados bolsonaristas.

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