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Endividados e infelizes: a classe média sofre achatamento
Endividados e infelizes: a classe média sofre achatamento| Foto: BigStock

Um assunto pouco comentado que, não obstante, salta às vistas, é a queda do padrão de vida da classe média entre as gerações. Um médico, um professor, um advogado, um engenheiro, não só encontravam trabalho com facilidade, como não precisavam se matar de trabalhar para manter uma casa. E o próprio significado de “manter uma casa” vem se tornando cada vez mais modesto. Na geração nascida até a década de quarenta, “manter uma casa” significava manter uma dona de casa e filhos. Na classe média alta brasileira, incluía com certeza uma empregada doméstica.

Com o ingresso maciço das mulheres de classe média no mercado de trabalho, “manter uma casa” se tornou algo de significado mais vago. Talvez possamos traduzir como “dar conforto à crianças enquanto pai e mãe cortam um dobrado”. (Não é de admirar, portanto, que a geração criada por esses pais ausentes seja diferente das anteriores.) Hoje, para alguém de minha geração, “manter uma casa” significa pagar as contas para não ser despejado do cubículo em que leva uma vida de solteiro.

Causas – inflação de diploma

Podemos apontar uma série de causas que concorrem para essa degradação. A classe média costuma ter em sua composição uma quantidade grande de diplomados. A degradação do valor dos diplomas tem que ter um impacto negativo sobre a classe média, portanto. E isso conduz o pensamento à propaganda petista, segundo a qual a classe média odeia os pobres, e só com a graça de São Lula o filho do pobre virou doutor. A propaganda não menciona que o pobre agora tem um filho doutor desempregado, mas tudo bem. Lembrar da propaganda petista vale a pena porque ela omite que o principal vetor de expansão dos diplomas não foi a multiplicação de universidades federais, mas sim a transferência do dinheiro dos impostos dos brasileiros para o ensino privado.

Agora peço ao leitor que se lembre de como eram as universidades privadas antes da era petista. Os alunos conheciam os donos da faculdade, que eram pessoas de carne e osso que moravam na mesma cidade. Essas faculdades foram todas compradas por grandes conglomerados estrangeiros. Hoje a faculdade privada da sua cidade pode até ter o mesmo nome na fachada, mas abaixo da logo antiga terá um nome como “DeVry” ou “Adtalem”.

Foquei na DeVry por ter em mente Salvador. A porção de faculdades privadas que havia no Centro iam ganhando o mesmo nome embaixo. Se antes havia uma porção de donos próximos, agora estava tudo centralizado nas mãos de investidores distantes. Mas estou desatualizada, pois vejo que DeVry, Inc mundou de nome para “Adtalem Global Education”. Você pode clicar no site oficial deles e, se souber inglês, verá que eles festejam novas aquisições de universidades pelo mundo e divulgam que as ações da empresa estão em queda. (Não é propaganda negativa, é propaganda para você comprar.) Na aba Sustentabilidade, vocês verão que ela está toda alinhada com a ESG, isto é, com o capitalismo lacrador.

O PT tirou dinheiro dos pequenos e médios empresários brasileiros e alocou na mão de monopolistas estrangeiros. No mesmo passo, inundou o mercado de trabalho com diplomas que não valiam nada e destruiu as federais com o Reuni (do qual já falei noutras tantas ocasiões). Por mais que desgostemos das federais hoje, o leitor há de lembrar que essa reputação das federais é posterior à era petista. Antes, por mais defeitos que tivesse, o ensino superior público servia como parâmetro de qualidade. Esse referencial foi para as cucuias.

Causas – tendência geral à concentração em monopólios

A classe média está, como diz o nome, no meio. Acima estão os ricaços e abaixo estão os pobres. Por conseguinte, se os de cima crescerem demais, a consequência natural é o achatamento da classe média.

A pandemia aprofundou isso. O comerciante paulista foi obrigado a fechar suas lojas, mas as pessoas continuam com necessidade de comprar. Onde elas vão comprar? Na Amazon. No Magazine Luiza. Numa palavra, na turma da ESG, que sempre é monopolista.

O comerciante de bairro não vai conseguir, num solavanco, competir com o monopolista global. Este poderá passar um bom tempo vendendo com prejuízo só para quebrar a concorrência. A clientela ficará feliz por um tempo, vestirá uma camisa roxinha do Livres e dirá que capitalismo (de monopolista) é muito bom. Defenderá que o Estado pegue o imposto dele para dar ao monopolista que vende modess. Na quarta-feira de cinzas, porém, o monopolista solitário jogará os preços lá para cima. Restará alugar em vez de comprar, talvez?

O Fórum Econômico Mundial, de Klaus Schwab, criou o slogan “You will own nothing and be happy”, isto é, “Você não vai ser dono de nada e será feliz”. Nessa utopia, todo mundo vai alugar as coisas, que serão entregues por um drone. Ora, se serão alugados, e se o Fórum é de empresários e não de chefes de Estado, isso significa que um punhado de monopolistas globais será o dono.

A pandemia foi um passo largo nesse processo de concentração de renda cujo pináculo seria o fim da classe média. É de nos questionarmos se o processo não está em andamento há mais tempo. Averiguar os pormenores disso está completamente fora da minha alçada.

Causas – duplicação da mão de obra não-braçal

Uma causa cultural fácil de intuir é o próprio ingresso compulsório da mulher de classe média no mercado de trabalho. Entre os pobres, a mulher sempre trabalhou. Mas existe trabalho de homem e trabalho de mulher: os pedreiros e as domésticas continuaram onde estavam. Na classe média, não: tanto faz se a pessoa que redige petições, ensina química ou prescreve um anti-inflamatório é macho ou fêmea. O trabalho é mais intelectualizado e, por isso, é indiferente ao corpo.

Os casais de classe média começaram a imitar os casais pobres, mas o efeito foi oposto. Faz sentido a mulher pobre ir trabalhar fora para aumentar a renda da casa, já que ela não é uma concorrente do marido. Quando um casal de advogados decide que um deles deve ir trabalhar fora, porém, o que ocorre é a duplicação da oferta de advogados, e um escritório pode, no frigir dos ovos, contratar dois ao preço de um. O trabalho do casal aumenta sem que aumente a renda. Enquanto isso, há os filhos. A família pode ficar com a renda estagnada e ainda vai ter que acrescentar a despesa com escola de tempo integral ou empregada doméstica. E há também a culpa, que leva pais a compensarem ausência comprando um monte de tranqueira pra filho.

Endividados e infelizes, não é de admirar que esse arranjo doméstico não perdure por mais de uma geração. E também não é de admirar que a geração seguinte, sem esteio, viva uma guerra de todos contra todos, com varas de família fazendo a festa em cima de pensões e políticos vendendo misandria.

Causas – habitação mais cara

Voltando ao começo, “manter uma casa” também designava um espaço físico diferente no começo. Uma casa era de fato uma casa, não um apartamento. As pessoas construíam casas porque havia espaço nas ruas das metrópoles para isso – até mesmo em São Paulo, capital. Para construir uma casa, você, sozinho, não contratava uma grande empreiteira que faz milhares de habitações; você era o freguês de um engenheiro e de um arquiteto, ambos de classe média. Uma vez dono de sua casa, a despesa fixa que você ia ter para morar se chamava IPTU.

Hoje não há mais espaço nas metrópoles para construir casa. O preço do terreno tem em vista o lucro potencial que uma grande corporação tiraria dali com prédio. A construção de apartamento é cara demais para alguém de classe média bancar; logo, resta aos grandes levar a empreitada adiante. A própria configuração espacial da metrópole favorece a centralização do dinheiro.

Uma vez que você compre não um terreno, mas um apartamento, você tem que estar sempre em dia com uma taxa de valor variável e imprevisível no longo prazo chamada condomínio. Se você ficar desempregado, o condomínio estará lá para consumir suas reservas.

O mero fato de você ter comprado um apartamento já pronto, e só conhecer pessoas que compram apartamentos prontos, faz com que você não tenha o mínimo discernimento sobre quanto custa material de construção. Isso o torna, sem saber, alvo de cartéis. É verdade que a demanda faz o preço, mas também é verdade que a mente humana não é assim tão simples e matemática, e que, caso se sinta ultrajada por uma margem de lucro exorbitante, irá chiar e buscar soluções.

Os preços altos de um possível cartel fazem também com que seja impossível simplesmente juntar o dinheiro e comprar uma casa. Assim, o cidadão vai em busca de crédito -- não raro subsidiado. E eis que mais uma vez temos transferência de dinheiro público para os bolsos de monopolistas.

Por fim, há a questão energética. Vemos a Europa se lascar toda com a pauta ambiental e o desligamento de usinas nucleares. Se não choveu, a conta sobe. A Europa está, numa palavra, como o Brasil. É de nos perguntarmos, portanto, quanto da agenda ambientalista não é feito com o simples propósito de achatar a classe média.

No caso brasileiro há ainda outro problema importante: gato. A falta de empenho do poder público em combater o gato apenas transfere o ônus para a classe média. Temos mais matriz natural de energia do que a Europa, deveríamos ter mais energia nuclear, mas também não dá para ignorar a quantidade de gato que tem nas metrópoles brasileiras.

Last, but not least, o próprio fato de haver mais solteiros implica (se eles não morarem todos com a mãe) o aumento da demanda por habitações. Assim, homem e mulher podem ter parado de morar juntos para comprar cada qual um cubículo exorbitante.

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