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Concentração de usuários de drogas na Cracolândia, em São Paulo.
Concentração de usuários de drogas na Cracolândia, em São Paulo.| Foto: Allan White/ Fotos Publicas

O crack é o lixo da cocaína, que vem da coca. A coca é uma planta que nasce na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Se há crack no Brasil, isso implica um trabalhoso esquema para trazê-la desses países estrangeiros ao noroeste deste subcontinente. A rota mais tradicional transfere a coca da Bolívia para o Paraguai e do Paraguai para o Brasil. Desde tempos coloniais existe uma ligação comercial muito grande entre o Paraguai e São Paulo, hoje a segunda maior megalópole da Américas. De São Paulo, não falta infraestrutura para transportar derivados de coca para os demais núcleos urbanos brasileiros. Lucra o PCC.

Com os fatos passados na Venezuela, surgiu uma nova rota. Dos guerrilheiros das FARC, a coca passa à mão dos militares venezuelanos, que criaram o Cartel de los Soles, hoje o maior exportador de cocaína do mundo. (Quem se interessar por esse assunto pode ler Hugo Chávez: O Espectro, de Leonardo Coutinho, que escreve para esta Gazeta do Povo). Do Cartel de los Soles, a droga vai para a FDN, uma facção amazonense que se aliou ao carioca CV para brigar com o PCC na distribuição de drogas pelo Brasil. Mas a aliança não foi duradoura e agora os nortistas vivem se matando para controlar as rotas amazônicas. Um monte de pardo morre, esse monte de pardos engrossa as estatísticas de negros mortos, o movimento negro fica feliz e depois ganha cota pra trainee no Magalu.

Seja como for, fato é que hoje, em cada cidadezinha brasileira, há crack. Da megalópole paulistana até o interior do Nordeste. A novidade para mim, que me mudei para um interior próximo da capital, é que o cracudo da capital é diferente do cracudo do interior.

O saci de Salvador

Saci foi o primeiro nome que conheci se referir ao viciado em crack. É gíria de Salvador que já mostra bem o comportamento do cracudo local: usa cachimbo e faz maldades. O garçom, o atendente e o caixa de Salvador estão sempre em alerta contra os sacis, que espantam clientes e desvalorizam o ponto. Que eu me lembre, os sacis começaram a aparecer no fim dos anos 2000.

O saci é reconhecido com uma olhadela. Esquálido, sem bochechas, de olhos fundos, veste andrajos. Se o seu olhar cruza com o dele, ele se fixa e vem pedir dinheiro para “inteirar um lanche”. Eu nunca dou. Em Salvador, conheci duas pessoas que dão, mesmo sabendo que era para comprar drogas. Os dois são homens católicos de meia-idade com boa condição financeira e que andam de carro. Entendem que aquelas pessoas já sofrem muito e seria cruel privá-las do seu único prazer, que é o crack. A mulher de um deles frequenta a igreja para fazer caridade, então ele soube por meio dela que os sacis em geral sabem identificar o último dia da vida de um deles. É o dia em que nada lhes é negado, e eles devem curtir à vontade.

Por outro lado, a única pessoa que conhecia todos os mendigos da minha rua, e lhes negava esmola, tinha o mesmo perfil desses dois, exceto pelo fato de ser mulher. Essa católica praticante sabia o nome de cada cracudo, conhecia as suas famílias e sabia por onde andavam quando não estavam mendigando. Aproveitei para perguntar por um menino que vi crescer sentado e inerte defronte de um Centro de Puericultura público fechado. Como ele estava sempre na mesma posição, com as pernas abertas estendidas na calçada, o cóccix no chão, as costas na parede e os braços abertos, eu achava que ele era aleijado.

Descobri que não era quando ele começou a andar, todo troncho, com uma barra de ferro na mão e um olhar irrequieto, cheio de maldade. Antes de conversar com a senhora católica, tinha pedido ao meu porteiro informações sobre ele. O porteiro disse que outro dia o rapaz tinha puxado uma faca na frente de todo mundo para uma mulher que tinha dado pouca esmola. Segundo o porteiro, não demorava muito para sumirem com ele. De fato, ele sumiu (ou foi sumido) sem deixar rastros.

Ouvindo isso, a senhora católica disse que já tinha conversado com ele e explicado que não daria dinheiro, e sim vaga em abrigo. Quando ela conseguiu, ele recusou. Ela disse ainda que a mãe dele é uma mulher bem bonita e arrumada, ninguém diria que tem filho na rua. Já as famílias de outros dois mendigos (um homem e uma mulher) conseguiam segurar as pontas. Ambos dormiam em suas casas, e a família da mendiga criava os dois filhos dela.

Mas (digo eu, não a senhora) tudo o que podem é segurar as pontas, já que a legislação antimanicomial é feita para deixar as famílias impotentes perante o vício de outrem, e a polícia impotente perante a bomba da segurança pública. Depois o drogado apronta e “some”. É ruim para todo mundo: para o drogado, para a família do drogado e para o pedestre. É bom para traficante, que tem seu estoque de fregueses garantido.

Mas voltemos ao ecossistema de Salvador. O saci (depois chamado também de sacizeiro e cracudo) é identificável como uma figura bem agressiva. Quando uma mulher ou um velho dão uma esmola que não julgam adequada, eles surtam, dizem desaforos ou ameaçam (como o rapaz que sumiu). Achacam pequenos comerciantes, como mencionei aqui. É provável que a fragilidade das mulheres faça com que não vejamos os cracudos como coitados, senão como ameaça. Homens de meia-idade tampouco sentirão pena dos cracudos, se seu trabalho depender de ponto comercial em área pública. Por fim, acho – e esse é um assunto que sociólogos deveriam pesquisar – que ser evangélico é outro fator que impede de dar esmola ao cracudo, porque as igrejas evangélicas constituem, nas periferias, uma reação ao uso de drogas ilícitas e ao alcoolismo.

O cracudo do interior

Antes de me mudar para o interior, procurei me inteirar sobre os cracudos daqui. Passeei pelo Rio Paraguaçu e o barqueiro apontou as ruínas de um engenho de cana-de-açúcar isolado como sendo o local aonde os cracudos iam ficar altos. Não incomodavam ninguém e, se acontecesse de invadirem uma casa, já sabiam que iam pagar por isso. Meses depois, ao procurar informações sobre casas, aproveitei para perguntar a outra pessoa pelos cracudos do engenho. O local já havia sido “limpo” e não há cracudos atacando ninguém nas ruas.

Já devidamente mudada para a cidade, sem que os briosos nativos se preocupassem em esconder a bagunça, enfim ouvi história de cracudo. Alguns velhos lamentavam a situação do ex-amigo, que tinha uma vida profissional toda organizada e hoje vive pelas ruas pedindo dinheiro. Tal como os homens da capital, eles ficavam com pena e davam dinheiro. Também conheci um senhorzinho no bar que, mesmo morando em área governada por traficante, se gabava muito de dar esmolas a quem quer que pedisse, porque dar esmolas é o correto. Ademais, ele próprio é alcoólatra, então não vai julgar o vício do outro.

Dada toda a minha preocupação com cracudos, qual não foi a minha surpresa ao descobrir que pediria informação a uma cracuda e que passaria meia hora sentada ao lado da cracuda, inclusive pegando o celular de vez em quando?

Foi assim: saí para procurar um salão de beleza feminino e, como toda cidade histórica de colonização portuguesa, as ruas são tortuosas, em obediência ao relevo. As indicações que peguei para o salão me levaram à rua errada. Vi uma moça bem preta com um vestido bem amarelo vindo sozinha em direção contrária à minha, então resolvi pedir informação. Ela riu e me indicou o caminho. Quase tropecei e ela riu do meu quase tropeço. Atravessamos a rua e ela riu de novo, até chegarmos ao lugar com uma placa com nome e telefone do cabeleireiro. Gentil, bateu à porta para mim, mas nada. Resolvi telefonar. O cabeleireiro tinha acabado de sair, mas prometia estar de volta em dez minutos.

Só que demorou meia hora. Enquanto isso, a moça ora olhava para um lado, ora para o outro, ora me media de baixo para cima. Se eu olhava para o rosto dela, ela olhava para o chão. A pele era retinta e brilhosa, as pernas eram bem feitas, cintura fina, e eu diria que era bonita, se não fossem a postura recurva e umas cicatrizes em um lado do rosto. Na rua havia um pouco de movimento por causa de uma oficina de reparo de bicicleta, que os velhos procuravam. (A cidade tem muitos velhos, mulheres e crianças).

A moça não ficou calada o tempo inteiro. Com quinze minutos de espera, disse que ele não vinha. Que, se eu ia esperar, que marcasse com ele na praça. Que ela mesma ia embora. Ela foi, caminhou mais duas esquinas de uma rua reta e ficou olhando para um lado, para o outro e para mim.

Quando o cabeleireiro chegou, apontei-a. Aí ele disse que ela era “usuária”, que sempre passa no salão dele para pedir cinquenta centavos (sempre cinquenta centavos). Que era uma mulher lindíssima, um deslumbre. Que teve dois filhos e teve de dá-los por não largar o crack. Que agora está mais quieta porque a cidade está vazia com a pandemia, então tem menos gente dando esmola, mas que a família de vez em quando fica doida quando ela some e já a acharam até em outra cidade com namorado. Expliquei para ele que jamais suporia que ela fosse cracuda, porque os cracudos de Salvador são diferentes: são agressivos e não têm bochechas. Aqui no interior, os nativos sequer conhecem a gíria “saci”. Chamam só de cracudo, que é gíria nacional.

Dúvidas

Acho que os cracudos do interior não são agressivos porque não há anonimato. Uma coisa é puxar a faca para quem você nunca viu na vida e outra é puxar para um conhecido. Em Salvador, eles sabem que puxar a faca diminui drasticamente a expectativa de vida deles, mas eles não ligam muito para isso, ou não seriam cracudos.

Por outro lado, no interior há menos riqueza, o que implica menos esmolas e, por fim, cracudos menos consumidos, ainda com bochechas. O maior consumo de crack deve estar relacionado à agressividade observada em Salvador.

O ingresso do crack no Brasil é recente. Nos anos 1990, droga de moleque era cola de sapateiro. O que terá levado ao maior consumo de crack no Brasil? Política chavista? Enriquecimento do país? As duas coisas e mais outras, que um bom cientista social deveria descobrir? E os “divulgadores de ciência”, por que não se importam em divulgar os malefícios do crack?

A Igreja católica não tem o que aprender com aqueles para os quais perde o seu rebanho?  Podemos ver no trabalho de um Júlio Lancellotti algo que desestimule o uso de crack? Se ele só fizer a vida na Cracolândia menos desconfortável, a ação da Igreja se parece mais para suicídio assistido, já que os cracudos vão dali para a terra.

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