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Mais vale um país onde políticos são malandros atrás de sombra e água fresca do que outro onde políticos são sérios devotos de alguma engenharia social.
Mais vale um país onde políticos são malandros atrás de sombra e água fresca do que outro onde políticos são sérios devotos de alguma engenharia social.| Foto: Bigstock

Há uma frase feita, repassada de pais para filhos, que é bastante verdadeira: “A educação é a coisa mais valiosa, porque ninguém pode lhe roubar.” De fato, nenhuma caneta pode expropriar conhecimento, ainda que possa anular diplomas. Conhecimento tem valor, e uma inteligência treinada terá mais facilidade em se recompor após um tombo.

Mas há um artigo, outrora abundante, que vem se escasseando, e por isso vale ressaltar: sanidade mental. Vá lá que seja possível roubar a sanidade alheia na marra – os uigures que o digam, nos campos de reeducação em Xinjiang. Mas o Estado brasileiro, felizmente, é desorganizado demais para montar algo parecido. Uma máquina estatal ineficiente tem esse lado positivo de valor inestimável: ela nunca vai conseguir atingir a perfeição da máquina totalitária.

No Ocidente, jamais um povo latino conseguiu. A Coreia do Norte faz Cuba e até a União Soviética parecerem oceanos de liberdade. Para um registro do êxito que aquele país tem em transformar seres humanos em robôs, leia-se a “Viagem aos confins do comunismo, de Theodore Dalrymple. A passagem do shopping norte-coreano é impressionante: é tudo uma cenografia imposta pelos burocratas aos coreanos para fazer uma boa imagem para os turistas. E, para um comparativo com a União Soviética, vejam-se entrevistas com o documentarista de “Under the Sun”, o ucraniano Vitaliy Manskiy.

Há quem sonhe com o modelo de um país europeu rico, cheio de serviços estatais eficientes. Eu prefiro um lugar desorganizado o bastante para o Estado não conseguir ser totalitário. Mais vale um lugar onde os políticos sejam malandros atrás de sombra e água fresca do que um outro onde os políticos sejam sérios devotos de alguma engenharia social.

Comendo pelas beiradas

Se campos de reeducação eficazes e massivos estão fora de cogitação neste oba-oba, isso não quer dizer que estejamos todos a salvo de mazelas totalitárias. Ninguém vai bater à sua porta, arrancá-lo de casa, metê-lo num vagão e discipliná-lo em meticulosos experimentos sociais como os de Auschwitz ou Xinjiang. Mas vão tentar comê-lo pelas beiradas, até fazê-lo achar que não vale nada e que bom mesmo é se entregar às autoridades, tidas por sabidas e benevolentes.

Quantos brasileiros aparentemente sensatos não sonham com autoridades sabidas que vão resolver problemas de ordem moral e dar um jeito nesse povinho que não vale nada? Uma hora a autoridade pode ser Átila Iamarino, para prender todo mundo em casa. Outra hora a autoridade pode ser Abdias do Nascimento, para impedir os brasileiros de se miscigenarem. Noutra hora pode ser algum economista da Unicamp, que imporá uma tabela de preços para coibir a ganância dos empresários e acabar com a hiperinflação. Pensam assim: “Tem que aparecer uma mão de ferro para mandar nesse povinho chinfrim, do qual por acaso faço parte.”

Nisso, já andaram meio caminho para abdicar do livre arbítrio e se tornar um robô nos planos de um burocrata. Mesmo que o burocrata não apareça (porque talvez esteja em Paris de férias, coordenando uma greve pelo iPhone), o liberticida age com uma iniciativa que lhe falta em todos os outros aspectos de sua vida. Assim, em cada interação humana, tenta falar de ideologia e soltar os mesmos slogans e frases feitas bolados não por um burocrata (que agora deve estar saboreando lagostas), mas por um marqueteiro (que tem que ganhar a vida).

Sabe aquele parente chato, provavelmente jovem, incapaz apreciar uma refeição em família porque tem que soltar algum slogan do momento e na certa acha que está num antro de fascistas? Friso “refeição” porque, ainda que haja parentes chatos, é pouco provável que todos sejam chatos e ainda por cima que a comida seja ruim, de modo que não haja absolutamente nada a se apreciar.

Imagine como não é uma conversa dessa pessoa com os amigos: um oceano de previsibilidade. Quando estão nas redes sociais, bem poderiam ser substituídos por robôs, porque não dá para notar a diferença. A previsibilidade desses tipos é tamanha que os piadistas da internet já inventaram geradores automatizados de problematizações. Vide este gerador de falas idênticas às da BBB Lumena Araújo, mestre em Psicologia Social pela UFRJ. (Um dia a originalidade foi uma aspiração de quem ingressava na universidade, mas hoje a coisa está assim.)

Digamos, então, que o totalitarismo, se não tem máquina pra prender e adestrar, vai comendo pelas beiradas o cérebro dos fracos, que clamam por uma autoridade providencial para mandar no mundo.

Os doidos no nosso telhado

O credo totalitário da moda afirma que ser homem ou mulher não tem absolutamente nada a ver com a genitália, de modo que os médicos e os pais só olham para uma recém-nascida e dizem que é menina por serem malvados conspiradores patriarcais. E lá vai o STF e chancela esse negócio.

O credo totalitário da moda afirma que ser negro é o mesmo que ser uma eterna vítima histórica, de modo que os brasileiros doentes por falta de saneamento básico se dividem entre vítimas históricas e opressores históricos. Umas vítimas moram em apartamentos de luxo e querem cota em concurso; outras moram num buraco e nem sabem da existência de todos os cargos e profissões com cotas. E lá vai o STF e chancela esse negócio.

O credo totalitário da moda afirma que uma Constituição deve ser interpretada por juízes iluminados segundo as crenças progressistas, ainda que seja cristalina quanto ao seu significado e seja atribuição do Legislativo – não do Judiciário – ajustar as leis às mudanças de uma sociedade. O STF chancela esse negócio a cada vez que aprova coisas como casamento gay, aborto de anencéfalos ou equiparação de homofobia ao racismo. Nos Estados Unidos, os progressistas têm um verniz de plausibilidade ao alegar que a mentalidade mudou muito desde a Constituição deles, porque a Constituição deles data de 1787. A nossa é de 1988, mas a desculpa é dada sem a menor pretensão de convencer, porque o STF manda, e quem tem juízo obedece.

Pelo menos o STF não decidiu que amante tem direito à herança. Ou melhor: que suposto amante, de qualquer sexo, tem direito à herança. Já pensou quanto ex-amante não ia aparecer em enterro de rico? Rico não ia poder morrer em paz, pois apareciam trocentos michês atrás da viúva.

O STF resolveu até que Felipe Neto é uma pessoa séria.

A última do STF é que Lula está descondenado (inventemos uma palavra) e desimpedido concorrer à presidência, enquanto Moro está cheio de pendenga com a Justiça. A próxima bem poderia ser a revogação da Lei da Gravidade ou a interpretação constitucional de que os cães doravante serão mordidos pelos carteiros historicamente oprimidos. “Está bem, senhores juízes”, é o que diremos. Não obstante, homem continua sendo homem, mulher continua sendo mulher, os brasileiros continuam não sendo racistas, a lei da gravidade continua funcionando, os carteiros não morderão os cães. E quem disse que Lula se elege?

Lula está livre há um bom tempo. Se houvesse comoção quando ele põe o pé na rua, como há com Bolsonaro, a imprensa não teria coberto? Reparem que, na entrevista dada na quarta-feira (10), após a decisão de Fachin, ele usou um fundo com a imagem de povo atrás. O artigo original deve estar em falta.

Ser fraco é muito aflitivo

Pois bem: listar as presepadas dos juízes em situação de STF já serve para delinear um campo político. O progressismo está assim-assim com quem acha que Lula é não só uma opção viável, como uma ótima opção.

Agora imagine o que não é estar na pele de quem não sabe se é homem ou mulher. Ou de quem acha que indivíduos têm uma personalidade coletiva por pertencerem a uma “raça”. Ou – o pior de tudo – no lugar de quem vê Toffoli, Lewandowski ou Gilmar Mendes como únicas pessoas capazes de dar ordem a um mundo decadente, onde todos são fascistas menos eu e meus clones.

A onda totalitária que varreu a Europa foi precedida por uma onda de suicídios, no fin de siècle. Só desequilibrado dá trela a essas ideias malucas. E, sem desequilibrado, sem gente para bater palma, a vida dos déspotas fica muito mais difícil.

Assim, se não está ao nosso alcance mandar na cúpula não-eleita do país, sigamos fazendo uma coisa importante, que está ao nosso alcance: manter a cabeça no lugar. E procuremos coisas boas para enxergar também. Grande empresário continua preso, peemedebistas continuam presos. Como eles vão se meter em esquema com o PT de novo, se sabem que as benesses judiciárias são privativas? Fato não menos importante é os pobres terem descoberto que não precisa votar no PT para ter Bolsa Família.

Fora que gente doida, mais cedo ou mais tarde, mete os pés pelas mãos. No longo prazo, não é páreo para gente forte com a cabeça no lugar.

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