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Mausoléu de Mao Tsé-Tung na praça Tiananmen, em Pequim, em 2006.| Foto: Adrian Bradshaw/ EFE

Existe uma faixa etária bem específica que pegou uma internet completamente diferente da de hoje: são os que estão entre os 30 e os 60 anos, e aprenderam a navegar usando um computador de mesa em vez de um celular. Quem tem mais idade do que isso via o computador, lá nos anos 2000, como uma ferramenta de escritório, e não tinha o ânimo de usar a conexão discada à noite para entrar em salas de bate papo ou ler coisas escritas em inglês por caras comuns do outro lado do mundo. Assim, tanto entre os mais velhos como entre os mais novos, a internet começou a ser usada para lazer só na palma da mão, e de um jeito bem fácil. Já falei sobre a diminuição do conhecimento de informática dos usuários aqui.

O primeiro smartphone foi lançado em 2007, um iPhone. Pela minha memória, smartphone deixou de ser artigo de luxo no Brasil cerca de 10 anos depois disso, e hoje a gente anota o WhatsApp da faxineira. Toda essa mudança ocorre sem que as pessoas se deem ao trabalho de documentá-la em pormenores.

Uma mudança que eu queria documentar hoje é a da liberdade na internet.

A liberdade na virada dos anos 00 para os 10

Esta deve ter sido a época de ouro da Wikipédia. A enciclopédia foi lançada em 2001 com o propósito de permitir a qualquer pessoa de qualquer canto do mundo partilhar conhecimento e vigiar os artigos. Nenhuma enciclopédia dirigida de maneira centralizada teria a capacidade de conter informação sobre coisas tão diferentes quanto a família Romanov e bandas de rock da Mongólia. Sendo multilíngue, a Wikipédia permite aos poliglotas encontrar informação sobre todo tipo de coisa num único site, de modo que aprender a organização da Wikipédia dava um poder muito grande a quem quisesse obter conhecimento. Quem não sabe usar a Wikipédia acha que a informação se resume ao corpo do texto. Nada mais falso: o que torna um artigo bom ou ruim é a qualidade das referências listadas nas notas de rodapé.

Nos anos 00, eu gostava de ler sobre assuntos variados e de comparar os verbetes de línguas diferentes. Os artigos quase nunca eram iguais. Só eram quando algum preguiçoso, querendo aumentar o número de artigos criados para melhorar a própria pontuação, jogava algum artigo em inglês no Google Tradutor e criava uma coisa horrorosa em português.

Com a idade, deixei de ficar navegando pela Wikipédia por lazer, mas nunca deixei de usá-la como ferramenta (o lazer ficou por conta da edição, e, com o smartphone, tirar fotos de coisas a serem catalogadas pode ser um passatempo legal). O viés politicamente correto foi se tornando mais evidente, mas sua função de catálogo de fontes não se perdeu.

No entanto, foi no ano passado que me dei conta de uma coisa escabrosa e uniforme por todas as línguas: o verbete “Massacre da Praça da Paz Celestial” tinha mudado de nome em todas as línguas que sou capaz de decifrar. Tinha sido rebatizado como “Protestos de Tiananmen”. Você digitava o nome antigo e era redirecionado para esse verbete, com o aviso de que este era o título atual. Tiananmen é o nome da praça em chinês, e o massacre foi precedido por protestos de universitários que exigiam eleições livres e democracia na China. O Partido Comunista Chinês promoveu uma carnificina e milhares de jovens foram assassinados. A imagem do homem sozinho parando uma fileira de tanques é desse evento.

Como a Wikipédia é descentralizada, isso só podia significar uma coisa: o Partido Comunista Chinês estava financiando editores em várias línguas – inclusive o português – para empurrar uma versão oficial, negacionista do massacre, em uma ferramenta que faz parte do cotidiano ocidental desde que a internet está disseminada. E se eles fizeram isso com o notório Massacre da Praça da Paz Celestial, quantas coisas mais eles não estarão fazendo? Nós não entendemos de China nem sabemos mandarim, então podemos ser enganados com facilidade.

Agora, escrevendo este texto, abri outra vez os verbetes da Wikipédia. Em português voltou o nome de “Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989”; em inglês, inventaram um terceiro nome para agradar gregos e troianos: “Protestos e Massacre na Praça Tiananmen em 1989”. Mas o português é a única língua latina em que isto foi corrigido: em italiano, francês, espanhol e romeno temos “Manifestação” ou “Protesto” na Praça Tiananmen. Ao menos o alemão manteve “Massacre” e não incluiu “Protesto” no título.

YouTube exige identidade para exibir vídeos que contrariam regime chinês

A mão da China se faz visível também no YouTube, site que sabemos há tempos ser favorável ao politicamente correto. Por uma questão de privacidade, não costumo navegar logada no Google. Assim, acabei descobrindo que existem vídeos não-pornográficos e sem violência descomunal que são censurados para menores de idade. Na prática, essa censura consiste na exigência de que você revele a sua identidade para assistir a um determinado vídeo. A primeira vez que notei isto foi este mês, quando quis indicar um documentário da estatal norueguesa crítico da teoria de gênero e vi que o login é exigido para assistir o filme. Aqui está. Que as Big Techs tomem a teoria de gênero como uma espécie de doutrina oficial, não é novidade. A novidade, para mim, veio pouco depois, quando quis assistir a este vídeo aqui, cujo título significa: “Protestos de massa emergem na China continental”. O autor do vídeo, chamado Matthew Tye, informa que este fora desmonetizado pelo YouTube. O título é autoexplicativo, e cabe explicar que Matthew Tye é um norte-americano casado com uma chinesa, e que morou por 10 anos na China até ter que fugir do país por entrevistar pessoas sem ter uma licença de jornalista. Também é bom eu mencionar que soube da existência desse canal quando Eli Vieira traduziu um vídeo dele que revelava, pela primeira vez desde a pandemia, a existência de um laboratório de virologia em Wuhan que estudava vírus sars-cov em morcego (procurando o vídeo traduzido para pôr neste texto, notei que também é considerado impróprio para menores).

Ou seja, o YouTube também está afinado de alguma maneira com os interesses da China.

Proibições na internet da China passaram a valer desde 2017

Se você entende inglês, vou recomendar fortemente o canal de Matthew Tye. Pelo noticiário comum, acabamos tendo uma percepção atemporal da China. Por exemplo: levante a mão quem souber dizer rápido desde quando Xi Jinping é o líder máximo da China.

O início do governo dele foi em 2013. Sabemos de cor que Trump foi eleito em 2016 e que Biden foi eleito em 2020, mas ignoramos o que se passa na China. A crermos em Matthew Tye, a China florescente e rica é anterior a Xi Jinping, que tem o projeto de perseguir os bilionários chineses, controlar toda a sociedade, extinguir minorias étnicas e fazer a sociedade acreditar que toda a prosperidade chinesa se deve ao Partido Comunista em vez do capitalismo.

Vejamos a internet chinesa: sabemos que existe o Grande Firewall da China, e que para acessar as redes sociais do Ocidente é preciso ter um VPN. Pois bem: apesar de o Grande Firewall ser anterior à difusão da internet, as proibições eram inócuas até 2016. Em 2017, passa a valer a lei de cybersegurança decretada por Xi Jinping que excluía da China as Big Techs ocidentais. Para poder substituir o Google ou o WhatsApp, a China teria suas campeãs nacionais – no caso, o Baidu e o WeChat. Para cada aplicativo ocidental, um análogo chinês. A diferença crucial é que as campeãs nacionais estariam sujeitas ao governo chinês e abasteceriam a polícia.

O mercado chinês é a menina dos olhos de qualquer gigante. Entre esse mercado e as Big Techs, há o governo chinês. Resta saber o que elas são ou foram capazes de fazer para acessar esse mercado, e até que ponto essas concessões não misturam a nossa política com a deles.

Por fim, registro que a China começou oficialmente só em 2014 o seu sistema de crédito social que, segundo explica Matthew Tye, basicamente premia delatores e pune gente que faça as coisas mais aleatórias (como dançar na rua) sem permissão do Partido. Esse sistema só foi possível graças aos avanços tecnológicos chineses, a uma intensa digitalização da burocracia e a uma grande implementação de câmeras em espaços públicos. As torres com reconhecimento facial, vendidas como suprassumo da segurança pública, têm na China a função de discriminar, vigiar e punir cidadãos. Tendo em vista os chineses, qualquer parte interessada pode vislumbrar no Ocidente a discriminação de cidadãos por meio de aplicativos, ora iniciada com o passaporte sanitário.

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