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O conservador é um erudito que serve à sociedade, ao passo que o radical é um intelectual que manda na sociedade.
O conservador é um erudito que serve à sociedade, ao passo que o radical é um intelectual que manda na sociedade.| Foto: Bigstock

Russell Kirk, em “A mentalidade conservadora”, considera que a figura do intelectual é oposta à do conservadorismo. O conservador é um erudito que serve à sociedade, ao passo que o radical é um intelectual que manda na sociedade. A contraposição com certeza é interessante, sobretudo para quem está inteirado do jargão da USP: “jornalista” e “ensaísta” são xingamentos, enquanto que “acadêmico” e “intelectual” são elogios. Gilberto Freyre e Merquior, não obstantes suas qualificações acadêmicas, não passariam de reles ensaístas, enquanto que um Giannotti e uma Chaui, mais conhecidos por suas posições políticas do que por suas ideias originais (existem?), são intelectuais por excelência.

Mas isto é uma questão baseada em definições que têm um grau de arbitrariedade e podem ser preteridas caso encontremos uma mais útil. Em “Os intelectuais e a sociedade”, Thomas Sowell dá uma definição de intelectual que julgo útil: aquele cujo trabalho começa e termina em ideias. Esta definição nos municia para apontarmos a estranheza de nosso tempo, quando qualquer semiletrado com diplominha se considera um intelectual por saber repetir slogans – coisa que um papagaio, com suas parcas capacidades cognitivas, consegue fazer. O passo seguinte é dar ordens: isso é ofensivo, censura aquilo. Com essa definição de Sowell, uma Djamila é uma intelectual. Mas joga-se na mesma vala do intelectual o erudito de Kirk ou o ensaísta dos uspianos.

Sem cair num jogo de palavras, que tal concordarmos quanto a duas coisas evidenciadas por Sowell e Kirk? A primeira: o trabalho que começa e acaba em ideias é exercido por um conjunto díspar de gente; inclui tapados ignorantes e por eruditos sagazes. A segunda: existem duas maneiras bem distintas de um homem de letras se portar perante a sociedade, pois uns pretendem comandá-la e outros apenas oferecer seus escritos ao público.

O intelectual para o historiador

Grande autoridade em história da cristandade medieval ocidental, Jacques Le Goff pretende que o intelectual tenha surgido na Idade Média. Sua concepção de intelectual, curiosamente, é parecida com a de Kirk, já que ele opõe o intelectual ao humanista. O substantivo intelectual não existia na Idade Média, e aqueles que Le Goff chama de intelectual se chamavam de “filósofos” com f minúsculo, pois Filósofo era Aristóteles.

Le Goff define o intelectual como aquele que vive do ensino e da pesquisa. O intelectual número 1 é Abelardo, par romântico e trágico de Heloísa. Ambos viveram no século XII e morreram antes de São Tomás de Aquino nascer. São Tomás é do século seguinte, e o humanista (tenham em mente Petrarca, Erasmo) surge no século XIV como um concorrente e opositor do intelectual.

Vamos ao intelectual número 1: Abelardo sai do meio rural, migra para uma área urbana e se torna um tremendo polemista. Se há algum sábio ilustre, ele discute em público, com plateia, e reduz seus argumentos a pó. Os jovens, maravilhados, pagam para ter aulas com ele. Que ele ensina? A filosofia que ele próprio criou e acredita ser verdadeira. Primeiro, ensina lógica; depois, teologia. Imbatível e entediado, resolve seduzir a bela poliglota Heloísa, passando-se por tutor – e o desenrolar está em sua autobiografia “História das minhas calamidades”.

No fim das contas, Abelardo acaba virando monge e tendo que ensinar dentro de mosteiros. Os monges de então não queriam saber de Platão, nem de Aristóteles: estes nada mais eram que pagãos adorados pelos sarracenos. Abelardo vai sendo expulso de mosteiro em mosteiro, seus livros são queimados, vive maltratado pela Igreja e ainda assim uma turba de estudantes nunca deixa de perturbar o retiro dos monges, clamando por aulas com Abelardo. Ao cabo, ele passa a ensinar num local isolado que deixa de ser isolado. Local no qual se fundaria depois a Sorbonne.

Abelardo foi um pioneiro, um rebelde bem diferente dos escolásticos. Por que Le Goff resolve colocá-los na mesma classificação? Por causa da união entre ensino e pesquisa. O livro em que Le Goff faz isso, “Os intelectuais na Idade Média”, trata de um perfil socioeconômico que surge no século XII e sofre alterações nos séculos subsequentes.

Vamos então ao aspecto mais abrangente: o intelectual é fruto do desenvolvimento do meio urbano. As cidades começam a crescer na Cristandade ocidental (que antes era um amontoado rural de feudos) e nelas surgem as corporações de artífices. No antigo mundo rural, os homens eram nobreza guerreira, plebe camponesa ou clero. Com o crescimento das cidades, o camponês migra das terras do nobre, torna-se artesão e vende a obra do seu trabalho. Os artesãos terminam por se organizar em corporações ou guildas, uma mistura de sindicato com clube e escola técnica.

O intelectual, para Le Goff, começa sendo um tipo de artesão, uma novidade do meio urbano. E, tal como os demais artesãos tinham as suas guildas, os intelectuais tinham a sua, que eram as escolas ou colégios, que depois evoluíram para universidades. Tanto Abelardo quanto o professor doutor do século XV viviam da comunhão entre ensino e pesquisa.

Sapatos e ideias na economia

O olhar econômico é bom. Uma guilda de sapateiros tem uma clientela óbvia: todos os que usam sapatos. Clientes inteiros são melhores que pernetas. Mas quem será o cliente do intelectual?

Uma guilda de sapateiros pode chegar a acordos quanto ao preço e aos modelos do sapato, sem abalar os cânones do pensamento ocidental. Mas quem disse que uma corporação de intelectuais pode fazer a mesma coisa? Preço pode ser manipulado e inventado. A verdade, não. E, no entanto, a intenção de Abelardo, ao desenvolver seus estudos de lógica e teologia, era encontrar a verdade. Fazendo isso, esteve muito longe de chegar a qualquer acordo: era um brigão e um polemista em tempo integral.

Le Goff relata uma tensão, no século XIII, entre os professores “artesãos” e os professores de ordens mendicantes. Os professores universitários eram uma corporação e, como tal, arrancaram privilégios ao papado: tinham direito à greve, não se sujeitavam à justiça comum e podiam eleger o chefe da universidade. Os mendicantes entraram em cena para furar greve e dar aulas mesmo quando os alunos não pagavam. Concorrência desleal, reclamava a guilda.

O papado tivera uma interferência de dois gumes sobre os professores “artesãos”. Por um lado, a Igreja passou a pagar mensalidade para todos os alunos e a dar uma prebenda (uma remuneração fixa) aos professores. Isso fazia com que houvesse sempre fonte de renda. Por outro lado, a Igreja passou a considerar que a educação filosófica ou teológica deveria ser sempre gratuita, sob pena de simonia. Isso tirava dos professores a liberdade de ensinar fora de uma guilda. Não haveria espaço para alguém como Abelardo começar sua carreira.

De resto, se a fonte pagadora do intelectual passa a ser uma só, a verdade passa a ser também uma concertação de um clube que presta contas à fonte pagadora. Para alguém se tornar doutor, precisava passar muito tempo na universidade se submetendo aos mestres, e no fim fazer um comentário de texto clássico na frente de pares. É ou não é um clube?

Não à toa, no fim da escolástica os doutores (intelectuais) emulavam os nobres e havia até cotas de cátedra e isenções de custo para descendente de doutor. A cerimônia do doutoramento enfatizava as novas vestimentas e alguns lugares os autorizavam a portar armas, o que era privilégio restrito aos nobres.

De volta a Kirk

Russell Kirk parecia achar que o intelectual a dar ordens à sociedade é uma invenção moderna. Não é. O próprio Le Goff mostra que existia nessa corporação a intenção de construir uma tecnocracia avant la lettre para mandar na cristandade.

Le Goff diminui o papel do humanista, o homem que encontra um mecenas e separa a pesquisa do ensino (ele só pesquisa). Enquanto o intelectual universitário fica numa situação complicada – obedece à Igreja, mas quer mandar na Cristandade –, o humanista ficaria numa posição de subserviência perante o mecenas.

No entanto, talvez aqui seja melhor o olhar de Kirk: o humanista (ou o erudito) não vai querer mandar no mecenas. Possivelmente, nem vai querer tratar de política. Ele está mais preocupado com a recuperação dos clássicos e com a beleza da escrita. De fato, todo humanista é um erudito, enquanto que é possível ser um intelectual mandão ignorante.

Olhemos para ambos os contextos, a Idade Média e a atualidade. Tanto a Universidade medieval quanto a atual são capazes de criar uma ortodoxia do pensamento. Numa hora não se pode dizer que a Terra dá voltas ao redor do Sol. Noutra, não se pode dizer que há diferenças entre os sexos. Antes não se podia dizer que os átomos existem. Hoje, não se pode dizer que o racismo estrutural não existe. Ontem e hoje a universidade produz bacharéis com fome de mando e de prebenda.

Então fiquemos assim: Não importa se é a Igreja na Idade Média, a União Soviética no século XX ou um cartel ocidental favorável ao Partido Comunista Chinês. Concentrem-se os homens de letras em clubes com uma única fonte pagadora e o resultado é uma ortodoxia censória.

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