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O locutor Galvão Bueno.
O locutor Galvão Bueno.| Foto: Divulgação

A piada de papagaio é uma instituição nacional. O primeiro trote de proporções globais envolvendo um louro deu-se ainda no século XVII, quando estas terras nem tinham dois séculos de descoberta. Foi parar no Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke, livro I, capítulo 27, a possibilidade de o homem não ser o único animal racional, já que Sir William Temple, em Memoirs of what passed in Christendom from 1672 to 1679, relatou a existência de um velho papagaio racional no Brasil. Maurício de Nassau conheceu o bicho e não confirmava nem negava a história, mas uma testemunha judiciosa conseguiu uma entrevista com o papagaio, que relatou ter nascido no Maranhão, criado por um português e trabalhar vigiando as galinhas. O detalhe é que o papagaio não falava inglês nem francês, de modo que a entrevista só foi possível com um intérprete.

Séculos depois, no ano de 2010, outro trote de brasileiro com papagaio tomara proporções globais: a campanha para salvar os galvao birds se tornara trending topics em todo o Twitter. Era ano de Copa, o Twitter ainda não era muito usado por brasileiros, mas os poucos que usavam tuitavam muito “CALA BOCA GALVAO”, inconformados com aquele locutor exaltado que narrava a plenos pulmões todos os sentimentos dos jogadores mais famosos ou que acabavam de virar pais. Se você nasceu ontem, explico que ele narrava com a mesma afobação de locutor de rádio (toda partida de série Z narrada no rádio é agitadíssima, mesmo que dê em zero a zero), só não identificava ninguém e dizia coisas como “o Brasil avança”, sem especificar o jogador. Todo o entusiasmo de radialista ficava para as emoções em campo, a vida privada dos jogadores, o clima, o país adversário etc. Em suma: para boa parte dos telespectadores, um chato de galochas. Mudar de canal não era uma opção na TV aberta. Como o 7 a 1 ainda não tinha traumatizado a nação, os brasileiros estavam no Twitter xingando muito o locutor. Tamanha xingação fez a frase ir subindo nos trending topics e, nisso, acabou intrigando os gringos, que estão sempre muito a sério e queriam saber que causa era aquela que movia os brasileiros.

Salvem os galvões!

Os brasileiros davam respostas falsas, nas quais os gringos iam acreditando. É difícil crer que ninguém tenha tuitado que Galvão era o locutor chato da TV que comprou os direitos da Copa. Seja como for, conforme explica o New York Times, uma explicação bem recebida afirmava que o galvão era um pássaro em extinção. Paulo Coelho entrou na brincadeira, mas com menos sucesso, afirmando que “Cala Boca Galvão” era uma tradução de “silentium galvanum”, um remédio homeopático.

Humoristas do finado site Não Salvo deram corpo à versão, elaboraram um vídeo com texto em inglês e contrataram um locutor britânico para ler a seguinte mensagem: “Ajude-nos a salvar os galvões. ‘Cala Boca Galvão’ é uma campanha no Twitter focada em espalhar a palavra sobre o galvão, uma ave de espécie raríssima, nativa do Brasil. A cada ano, mais de 300.000 são mortos durante os desfiles de carnaval. Suas penas coloridas são vendidas no mercado negro, e se essa carnificina não parar, eles vão se extinguir mais rápido do que você imagina: os últimos casais de galvões vivem na Floresta Amazônica, mas estão morrendo por causa das mudanças climáticas. Agora o cientista brasileiro Frei Galvão está trabalhando numa cápsula para proteger as aves desses efeitos, então precisamos da sua doação por tuíte. Todo tuíte com ‘Cala Boca Galvao’ gera uma doação de U$0,10 para a Galvão Birds Foundation. Um segundo para tuitar. Um segundo para salvar uma vida. Ajude o Brasil. Ajude nossas aves mais raras”. A locução se encerra com o close no olhar inocente de um papagaio.

Bastava um pouco de ceticismo para não cair no trote. O “galvão” apresentado é um papagaio. As penas do desfile de escola de samba, artificiais, são imensas, maiores que uma porção de papagaios, e de um verde de tom bastante diferente da do bicho. Ademais, como é possível que mais de 300.000 galvões sejam mortos a cada ano, se só restam uns poucos casais de galvões perdidos na floresta? Nesse ponto, a causa da extinção passa subitamente das escolas de samba às mudanças climáticas. A redenção vem pela Ciência. O cientista Frei Galvão, além de ter o nome de um santo, tem a imagem de Chico Xavier. As falas do médium sobre sua missão, retiradas do filme biográfico, são atribuídas ao salvador dos galvões – que precisa de dinheiro para fazer as cápsulas em que os bichinhos vão viver à parte do clima (reproduzir-se-ão via inseminação artificial, providenciadas pela Galvão Foundation?). Com um tuíte, “uma doação será gerada” assim, num fiat. Fato é que o gringo nem sequer precisa tirar 0,10 do bolso para fazer essa boa ação.

O negócio bombou e foi considerado o maior trote virtual da história da internet. É claro que não colaria, se não estivesse de acordo com as expectativas do tuiteiro gringo médio.

Narrativa atualíssima

Em pouco mais de um minuto, o trote conseguiu capturar o padrão da “opinião esclarecida” do primeiro mundo. A natureza está em perigo por causa das mudanças climáticas, mas por meio da Ciência a humanidade conseguirá uma solução para o problema. A mistificação da Ciência já estava evidente em 2010, pois Chico Xavier não se parece com um cientista e, no filme, se parece com um religioso importante.

Em meio a essa catástrofe climática que ameaça vidas, a opinião esclarecida tem uma prioridade: o papagaio, digo, o galvão. Salvar espécies de animaizinhos inocentes é mais importante do que ajudar crianças pobres ou escravos chineses. Pra resolver o problema das crianças pobres, o certo é promover aborto; e, em vez de se preocupar com os escravos de verdade, o certo é antropomorfizar bichos e defender a “liberação animal”.

O homem, apresentado sob a forma do brasileiro, é uma espécie maléfica que persegue os galvões por causa de suas penas. De fato, o mal só existe – o aquecimento global, a extinção dos galvões – por causa do homem, que não é esclarecido como o tuiteiro gringo médio. Homens de cor aparecem sambando com as penas dos galvões e vendendo no mercado negro as suas plumas. As mudanças climáticas são ilustradas com uma fábrica soltando fumacinha no meio de uma floresta. Ah!, esses brasileiros! Eles vêm aprontando muito antes de eleger Bolsonaro!

No fim da locução, a cereja do bolo: você, sentadinho no seu sofá, poderá resolver essa grande trama do mundo. Com um tuíte, você vira mocinho e, ao mesmo tempo, mostra para todo mundo que você é mocinho. A formulação apassivadora do palavreado faz com que a agência não seja questionada. Se a doação “será gerada”, não há por que perguntar quem vai doar. A doação será gerada como as abóboras são geradas, sem perguntarmos quem faz as abóboras.

Não podemos deixar de notar que uma locução em inglês com sotaque britânico perfeito depõe a favor da veracidade de uma campanha passada no Brasil: quem dita o que é Civilização é a Europa rica. Se agora é feio ser eurocêntrico, é só porque uns americanos que citam uns franceses diz que é.

Morais da história

É uma marca da gente educada e instruída considerar que gente vale mais do que bicho. É na vasta classe média europeia de IDH nos alpes, e não entre os porteiros nordestinos analfabetos, que vamos encontrar essas crenças. Brasileiros de classe média e alta fazem isso também, porque são chiques e tratam de imitar os povos avançados da Europa. Se forem pés-rapados e entrarem numa federal, farão a mesma coisa, porque entraram na federal e precisam ascender nesse meio.

Mas o trote deveria ter servido para mostrar como é ridiculamente fácil enganar esse tipo de letrado. Provou que essa gente acredita em qualquer coisa, desde que caiba na narrativa da Salvação do Apocalipse Antropogênico via Ciência e cumpra uma pequena série de requisitos que não têm nada a ver com argumentação ou ciência. O vídeo aparentava ser do primeiro mundo e ter muito dinheiro envolvido; se fosse um vídeo menos produzido e com sotaque de brasileiro, não colava tanto. Outra coisa importante é saber mexer com a emoção. A locução é emocionada, o pianinho ao fundo é tristonho, o foco no olhar do papagaio-vítima faz rir qualquer brasileiro, mas mostra que existem truques de cenografia capazes de dar ar de inocência até a papagaio.

Por aí se vê, em suma, como é fácil um gringo criar uma ONG e arrancar dinheiro dos seus compatriotas trouxas. Não vá você, com seu sotaque de brasileiro, querer competir com o gringo que tem montanhas de euros ou dólares e um network de primeiro mundo.

Esse crescimento da influência de ONGs se dá pari passu com a sinalização de virtudes fomentada pelas redes sociais. Veja-se que, dada a natureza da campanha, era impossível ajudar os galvões em privado. Bem ao contrário da moral cristã tradicional, que não recomendava a ostensão da caridade, essa nova moralidade presume que tudo seja ostensivo. Tuitar é fazer o bem e o custo é zero. Ora, se a doação fosse “gerada” com uma quantia significativa de dinheiro saindo do bolso do doador, será que ele não teria o ímpeto de ir ao Google ver se a Galvão Foundation existe mesmo? Quando a moralidade se dá a custo zero, as pessoas têm mais motivos para serem levianas. Não é à toa, portanto, que se sentem à vontade para ter uma opinião formada sobre qualquer assunto espinhoso que vire hashtag.

Papagaio ontem e hoje

Como no mundo rico há essa obsessão por raça, devemos dar uma chance a eles e levar em conta o fato de os gringos ilustrados poderem ser motivados por racismo. Primeiro, observamos que papagaio é melhor para comovê-los do que criança pobre remelenta ou escravo morto a fome. Os Brazilians são uns colored insensíveis que matam animaizinhos e poluem o meio-ambiente. O galvao bird, do qual tomaram ciência agora, é “nosso” (deles) e precisa de ajuda internacional para ser salvo. Salvo de quem? Dos brasileiros, responsáveis até pelas mudanças climáticas. Aqui só tem preto tacando fogo em tudo e matando animaizinhos.

Qual é o papel digno que um colored pode desempenhar nessa trama? O de bom selvagem ou místico exótico. Daí tome-lhe mocinha morena de cocar para falar coisas românticas (stricto sensu, do romantismo) na ONU e derreter corações nórdicos. A expressão “peito de índia” não é conhecida por eles, que acham muito normais essas “índias” bonitonas de biquíni em manifestação. Por outro lado, quando os índios apresentam a necessidade muito humana de conseguir o sustento da própria terra, não têm esperanças de conseguir tanta empatia quanto uma mocinha de cocar que conversa com animais e árvores.

De vez em quando eles resolvem desafiar a técnica ocidental e abraçar um sábio exótico qualquer. Pode ser Gandhi ou João de Deus. Por isso veio a calhar a imagem de um religioso como cientista – talvez os cientistas sejam mais místicos por essas bandas e usem de muita reza na cápsula protetora de galvões. Não dá para crer que os cientistas de lá (isto é, cá) sejam gente como a gente (isto é, eles).

Outra vez, é a unidade da natureza humana que está em questão. O letrado médio do mundo rico que caiu no trote não é uma pessoa mais sensata do que o ambulante carioca que aparece no vídeo. Brasileiros não são vilões caricatos que querem destruir o planeta por deficiência cognitiva. Eles fariam melhor se olhassem para nós e pensassem: “são gente como a gente”.

Curiosamente, o trote seiscentista, que pegou Locke, se dava justamente numa época em que parte da humanidade tentava definir a natureza humana e, vendo tanta gente esquisita nos trópicos, se perguntava se aquela gente era mesmo gente como a gente. O papagaio racional seria uma prova de que daria para divorciar a humanidade da racionalidade. Se os gringos fossem mais sensatos e entendessem que um homem é um homem, não seriam tão suscetíveis a trotes com papagaio.

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