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Barata inseto
Escolhemos o desenho de uma barata e não a imagem de uma barata verdadeira para não assustar nenhuma alma sensível| Foto: Pixabay

Embora seja usado por todo tipo de gente, o Twitter é uma casinha confortável apenas para um tipo de gente: o lacrador. O lacrador fala o que quer e, quando ouve o que não quer, chama o tio Jack Dorsey para punir o feio e bobo que lhe disse coisas desagradáveis. Os não-lacradores pisamos em ovos para driblar censura; os lacradores se refestelam como se estivessem no sofá favorito e reclamam da liberdade dos outros.

Por isso, o Twitter é um bom lugar para nos inteirarmos da bolha lacradora. Há quem confunda o Twitter com a população geral. Faz isto quem é lacrador ou vive em ambiente cheio de lacradores. Neste último caso, o Twitter faz mal e abala o senso de realidade. E creio que isso ajude a explicar o fenômeno de jornais tradicionais e o ambiente acadêmico irem se tornando indiscerníveis do parquinho virtual de Jack Dorsey.

Essa indiscernibilidade se fez visível esta semana, no dia 29 de setembro, quando o Twitter amanheceu com os lacradores dando chiliques contra Leandro Narloch. Imagine que uma barata voadora apareceu num salão de beleza. A dinâmica do Twitter no trato de questões intelectuais é a mesma, trocando-se o dissidente pela barata.

Primeiro há disseminação de pânico voltada contra uma pessoa: em vez de “Oh meu deus, uma barata!”, temos “Oh meu Deus, um racista!”. Depois há a pressão para que alguma autoridade faça a pessoa desaparecer — a famigerada campanha de cancelamento. Por fim, o fulano desaparece do ambiente, tipo Trump, pego pelas anteninhas por Jack Dorsey e jogado pela janela.

O que Narloch disse lá na Folha de São Paulo não vinha ao caso. O que importava era que a autoridade responsável o demitisse já. E a autoridade dessa vez já não era o tio Jack, mas sim a Folha de S. Paulo.

Mas o que ele disse?

Narloch disse que Risério lançara um excelente livro com o título “As Sinhás Pretas da Bahia: Suas escravas, suas joias” (Topbooks, 2021), sobre a elite escravocrata preta que floresceu na Bahia após acumular riqueza, comprar a própria liberdade e se tornar proprietária de joias e escravos. Risério, da esquerda contracultural, é um notório crítico da esquerda progressista. Narloch, notório liberal desde a época em que isso era xingamento, aspeia e subscreve a conclusão antiprogressista do antropólogo: “A teoria crítica racial, em voga hoje nas faculdades de humanas, enxerga o mundo pela lente das relações coletivas de poder. Nessa visão, houve na história uma divisão nítida entre opressores e oprimidos, nitidez que persistiria hoje. No entanto, como diz Risério, na história da Bahia ‘esse dualismo esquemático não encontra correspondência factual’.” Quem tiver um problema com isso, mostre que as pretas do livro não existiram. Trata-se de fato.

O recém-falecido historiador Manolo Florentino, da UFRJ, assinou o prefácio ao livro e também foi lembrado por Narloch: “O costume de tratar negros somente na voz passiva (‘escravizados, humilhados, exterminados’) acaba por menosprezar o protagonismo deles na história do Brasil. Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que assina a apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante, para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas de seu destino.”

Manolo Florentino, junto com os antropólogos Peter Fry e Yvonne Maggie, eram, dentro da UFRJ, notórios opositores das classificação dos brasileiros por raça. Escreveram juntos o livro “Divisões Perigosas”, uma coleção de artigos contra as cotas raciais. Como o clima era outro, Lilia Moritz Scwarcz chegou a assinar um abaixo-assinado contra as cotas raciais. Manolo Florentino se manteve firme, porém.

Narloch nem sequer teve a pretensão de originalidade no texto dele. No entanto, Narloch era uma barata solitária voando livremente no território dos lacradores. Tudo bem Risério escrever livros, desde que ninguém os leia. Tudo bem Manolo Florentino, Peter Fry, Yvonne Maggie terem se oposto às cotas raciais, desde que ninguém lembre. Para lacrador só existe o aqui e o agora. Por isso o único problema é as autoridades não terem dado um sumiço em Narloch.

“Demite ele, Folha!!”

O leitor da Folha teve a satisfação de saber tintim por tintim a cor, o “gênero” e a orientação sexual dos membros do conselho editorial do jornal. Um dos novos conselheiros, que anda com os crachás de “negro” e de “gay”, comemorou a própria escolha para esse conselho tão “diverso”. “Quando criado, há 43 anos, o conselho era formado por nove homens brancos”, diz o jornal, atingindo o pináculo da impertinência.

Assim, recém empoderado, o conselheiro negro-gay Thiago Amparo teve o seu perfil no Twitter convertido em muro de lamentações de gente que queria a cabeça de Leandro Narloch. Um acadêmico de comunicação comenta: “Alô Sleeping Giants talvez seja hora de começar a pressionar os anunciantes da Folha”. De tochas na mão, um professor com o qual tive aulas na UFBa conclama: “O texto merece um desligamento sumário do jornalista, isso sim. E um pedido de desculpas da folha. Espero que o conselho da folha se pronuncie, Thiago, e não apenas você. Tudo tem limite.”

A bolha Twitter-Folha transbordou para a academia e eu recebi primeiro pelo zap-zap a manifestação de Risério, que não tem zap-zap, nem Twitter, nem Instagram, mas já mencionava do comentário feito por “Lilia Beyoncé Schwarcz” no Instagram. Eu também não tenho Instagram, e ainda assim acabei recebendo pelo zap-zap um print do texto dela contra a coluna de Narloch.

“Buááááá”

Até o presente momento, a cabeça de Narloch está sobre o seu pescoço. Desempoderado, o conselheiro Thiago Amparo tomou duas providências. A primeira foi tuitar: “Passei o dia todo mal. Ânsia de vômito. Mãos tremendo. Tristeza. Falta de acolhida fora e dentro do Twitter. Vou desligar um pouco.” O que ele quer com isso? Incitar o máximo de pessoas a se manifestar a seu favor, para em seguida mostrar sua coleção de likes ilustres para alguém mais importante do que ele na Folha.

A segunda providência foi fazer uma coluna-chilique clamando pela cabeça de Narloch. “Ao terminar de ler o texto,” diz o coitadinho, “eu senti ânsia de vômito, literalmente; um misto de repugnância e desânimo. […] Folha, por que ainda precisamos nos masturbar coletivamente com a relativização da dor preta?” A criatura chega a acusar Narloch de “legitimar a escravidão”. Termina dizendo que “O que está em jogo é se a pluralidade que este jornal preza inclui racismo. Jornais são documentos históricos: eu me reservo a dignidade derradeira de dizer com todas as letras que a coluna de Leandro Narloch é racista; que publicá-la faz do jornal conivente; e que em algum momento a corda do pluralismo esticou a tal ponto que nos enforcará.”

E de resto? Seguiram-se artigos na Folha falando sobre como Narloch é mau como um pica-pau, devidamente retuitados pelo desamparado Amparo. E só. Ao que parece, Narloch fica, por mais que o conselheiro lacrador e sua claque queiram que ele saia.

Mas quem consegue as coisas usando a cor da pele e dando carteirada de vítima não pode esperar ser respeitado, não é mesmo?

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