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Cidade da Música
Cidade da Música, em Salvador| Foto: Intagram/Prefeitura de Salvador

Na inauguração de um casarão todo azulejado em Salvador, ACM Neto declarou que o DEM, ex-PFL, estava a caminho de se tornar também ex-DEM, fundindo-se com o PSL. O Brasil atentou à declaração, sem nem saber do casarão. Mas na Bahia o casarão atraía a atenção. Qual era a história daquele prédio tão bonito?

Posso começar explicando por que ACM Neto estava fazendo declarações. Após décadas fechado, o casarão de quatro pavimentos ao pé do Elevador Lacerda e ao lado do Mercado Modelo se tornara o Museu da Música. Antes já se tinha falado em ele virar Hilton, mas não foi adiante. Falou-se tanto em descaracterização (pois o projeto incluía umas gambiarras modernistas) quanto em gentrificação (tem que deixar as coisas bonitas para os cracudos).

Que o casarão era bonito, todo mundo sabia. E lastimou-se muito quando o teto ruiu e o interior veio abaixo, deixando só a casca azulejada. A casca e as muitas janelas em ogiva.

Mas o curioso é que o prédio sempre teve esse amor todo apenas por sua beleza. Em Salvador, muitas coisas têm valor histórico. Aquele prédio estava lá sem nenhuma história por detrás, e, por muito tempo, sem nenhuma funcionalidade. Agora que ele está lá, todo pimpão e restaurado, a internet baiana encheu-se de Sherlock Holmes preocupando-se com sua história.

Prédio comercial do século XIX

O povo não deixou de inventar uma história nobre para o prédio bonito. Eu mesma cresci ouvindo que o prédio à Praça Cayru era do próprio Visconde de Cayru, e que o Tratado de Abertura dos Portos teria sido assinado bem ali. Eu não fui a única a conviver com essa história, então logo a versão começou a circular na internet e o desmentido não tardou a aparecer.

De fato, o principal argumento para aquilo não ter sido moradia de Cayru é que, pelo seu desenho, ele não fora moradia de ninguém: o casarão não tem quintal. Onde os moradores iriam lavar a roupa e secá-la? A típica casa lusitana tem quintal. Por outro lado, os edifícios comerciais lusitanos tradicionais têm um térreo cheio de portas, como tem o casarão azulejado. Era comum os comerciantes morarem em cima da loja, mas aquele prédio imenso não parece ter sido feito para habitação. Assim, sobra o caráter estritamente comercial.

E o ponto em que fica o prédio se justifica perfeitamente. O edifício que hoje é o Mercado Modelo já foi a Alfândega. O mar era muito mais avançado. Aquela fachada que o turista vê da terra era, noutros tempos, enxergada por quem vinha de barco. A embarcação era atracada ali e os produtos eram inspecionados. Nessa época, o Mercado ficava no local onde estava uma escultura abstrata de Mário Cravo que pegou fogo há poucos anos. O prédio original do mercado também pegou fogo. Isso foi na gestão de ACM, que encomendou a obra ao artista construir a obra. Eu não vou dizer o nome pelo qual a escultura é conhecida, porque este é um jornal de família. Seja como for, aquele pedaço foi de intenso comércio desde os tempos coloniais até meados do século XX, quando transporte rodoviário substituiu os demais. Antes as mercadorias chegavam a Salvador pela água: saveiros vinham do interior da Bahia; do mundo chegavam grandes embarcações.

Assim, naquele prédio junto ao mar e rente à Alfândega havia uma porção de escritórios comerciais. Foi construído em meados do século XIX.

Quando a beleza era trivial

Está explicado, então, por que um prédio imponente foi construído sem nenhuma memória específica: era uma construção banal para o contexto. Tem a mesma função que os espigões de área central. Mas com duas diferenças: é um retângulo deitado, não em pé; e é bonito. A primeira diferença se explica por motivos estritamente materiais. Mesmo que fosse possível construir um espigão, ele seria indesejável, antes da difusão dos elevadores movidos a eletricidade. Por isso esse prédio de escritórios do século XIX é um retângulo deitado em vez de em pé. Sem ar-condicionado, aquelas dezenas de janelas não eram mera escolha estética, embora fossem belas.

Mas para a outra diferença, não há explicação material. Quem vai olhar daqui a 200 anos para um prédio feito hoje e dizer: “Oh, que lindo prédio! Espero que restaurem e botem qualquer coisa dentro. O que importa é ele continuar de pé!”

Em algum momento do século XX, a humanidade passou a achar um despautério a ideia de fazer prédios que encantem pela beleza. Depois, inventou que só o que importava era uma beleza exclusiva dos arquitetos e passou a fazer coisas pomposas em que o povo bota apelido. Aí, se a mentalidade de antes botava janelas por causa da ventilação e se empenhava em fazê-las bonitas, a mentalidade de hoje faz qualquer trambolho num formato inusitado, quando é trabalho para rico, ou um caixote supostamente funcional, quando é pra não-rico. No primeiro caso, pode deixar o prédio sem janelas porque janela é feio (caso do Congresso), ou assar o pobre numa caixinha de concreto sem ventilação que o arquiteto viu numa revista de país frio.

O prédio-problema

Não muito depois de o prédio belo aparecer nos jornais, um outro, também em Salvador, ganhou uma reportagem. Trata-se de um arrojado projeto arquitetônico feito por um professor titular da USP. Eis o título e o subtítulo: “O segundo sol chegou: novo hospital de Salvador ‘cega’ e incomoda vizinhos. Hospital Mater Dei é criticado até por especialistas de trânsito: ‘É importante que a Transalvador faça uma intervenção’ ”. Trata-se de um cilindro gigante e espelhado com apenas alguns andares de janelas coloridas e não-espelhados. Pensem num dedo com um anel colorido e grosso enfiado: o dedo é de espelho e aponta para o céu da primavera de Salvador.

À medida que a obra foi avançando, uma vizinha passou a ter no seu apartamento o sol da nascente, real, e o sol do poente, reflexo do espigão.

Quem precisa de espelho do lado de fora do prédio? Ninguém. Quem acha uma boa ideia botar um espelhão gigante no meio da cidade? Arquiteto. Só arquiteto.

E o problema é global. Segundo informa a matéria, a moda dos espelhões em Nova Iorque foi detida por uma lei ambiental de proteção dos pássaros, que se esborracham e morrem. É sem dúvida uma preocupação legítima. Mas é interessante como precisa botar um animalzinho no meio para parar com uma coisa estúpida dessas; os incômodos causados ao homem não movem alteração nenhuma nas leis. Por causa dos passarinhos – e não dos acidentes de trânsito, e não da moradora com dois sóis no apartamento – é preciso que o poder público faça alguma coisa para deter a insensatez dos arquitetos.

A moda dos prédios espelhados já chegou a derreter parte de um Jaguar em Londres e, ainda assim, há uma coleção de prédios-problema no mundo rico. E, como diria Millôr Fernandes, quando uma ideia fica bem velhinha, ela vem para o Brasil. Para os nossos arquitetos, importa copiar; não importa pensar.

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