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Till Lindemann, da banda Rammstein, é uma mistura ideológica assustadora que atiça o furor do Estado censor despreparado para entender os desejos do povo.
Till Lindemann, da banda Rammstein, é uma mistura ideológica assustadora que atiça o furor do Estado censor despreparado para entender os desejos do povo.| Foto: Reprodução/ YouTube

Como vimos ontem, no dia 10 de dezembro de 2020, em Avignon, o francês HK subia um vídeo com sua canção de protesto contra o lockdown, sem imaginar que a canção seria traduzida para várias línguas e entoada em flashmobs por toda a Europa. Foi uma canção feita por impulso, por um compositor pouco conhecido.

No dia 11 de dezembro, quem subia vídeo de música para o Youtube era o alemão Till Lindemann, que por sua vez é bem famoso no próprio país e um bocado conhecido no mundo por causa de sua banda Rammstein. Em 2020, ele apareceu nas páginas de jornal alemãs e no noticiário musical por quase bater as botas com Covid. Lindemann já um senhor de 58 anos, que nasceu e cresceu na Alemanha Oriental. Tal como HK, ele subiu uma música na Internet motivado pela pandemia.

A música é “Alle Tage ist Kein Sonntag”, ou “Todo dia não é domingo”. Famosa na voz de Marlene Dietrich, tem como refrão os versos: “E quando eu estiver morto/ Você deve pensar em mim/ Até à noite, antes de dormir/ Mas sem chorar”. Era uma canção ouvida pelos alemães nos natais da Segunda Guerra Mundial.

Dança entre os mortos

E o cenário do clipe é esse. Ferido, Lindemann entra numa taberna com sua marionete (o violinista David Garrett, outro alemão), injeta droga na veia, toma uísque e começa a cantar com seu bonequinho. Ele canta diante uma plateia de pés pendurados e de gente enforcada, até que o próprio Lindemann se enforca, estrebucha e morre. Então rompem-se as cordas da marionete, que ganha vida e sorri. Rompe-se a corda da qual pendia o corpo do cantor. Em seguida, caem todos os corpos enforcados do salão, que se levantam com vida. Todos ficam prostrados com o milagre, até que começam a festejar, dançar, se abraçar e beijar.

Lindemann está feliz confraternizando com os mortos, até que sai do salão e acaba a música. O clipe volta no tempo; mostra o músico ainda vivo e sóbrio entrando no salão ao som de metralhadoras e explosões. As mulheres e os velhos jogam as cordas nas vigas e se preparam para pular. O cenário, claro está, é o fim da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha foi derrotada e houve uma onda de suicídios.

Mas é um clipe sobre Covid. A capa do single, o desenho do vírus, não deixa dúvidas sobre isso. E aqui já sabemos o que diria um alienado padrão: o próprio cantor quase foi uma vítima letal da Covid; trata-se de uma guerra contra o vírus, de uma homenagem aos mortos.

Acontece, porém, que é evidente o caráter libertador da morte no clipe, com as cordas partidas e a festa. Retrata o suicídio cometido numa situação insuportável de derrota, que tornou, para alguns, a morte preferível à vida. E não deixa de ser uma coincidência impressionante que nesse vídeo lúgubre de Till Lindemann os mortos alegres estejam fazendo a mesma coisa que HK et Les Saltimbanks em Avingon, e que seria repetida nos flashmobs pela Europa: as pessoas estavam dançando, cantando, se beijando e se abraçando. O clipe retrata a morte como libertação. É um clipe de protesto.

Lembremos que no lockdown “de verdade” que tantos queriam aqui (e que Araraquara imitou direito), o europeu presta contas ao guarda quando sai de casa para ir à padaria mais próxima comprar “itens essenciais”. Ele fica sem ver vivalma, caso more sozinho. Nessas circunstâncias, os suicídios disparam por razões compreensíveis, pois há quem ache melhor morrer a viver daquele jeito.

Por óbvio, o clipe retrata o cantor no lado nazista da Segunda Guerra Mundial. Ainda por cima, a música ouvida pelos alemães no Natal foi relançada às vésperas do Natal. E a guerra perdida, qual será?

Problemas com censura

Isso traz a teoria batida de se ele é um neonazista ou não. No canal do YouTube dele, podemos ver que Lindemann anda fazendo shows na Rússia, que seu último clipe se passa atrás da Cortina de Ferro (com direito a um busto de Lênin chorando, como se fosse imagem sacra) e que ele gravou em russo uma canção soviética no Palácio de Inverno de São Petersburgo – o que não deve ser coisa pra qualquer um.

Mas daí não se segue que seja um comunista, puro e simples. Na verdade, a banda dele tem um longo histórico de acusações de neonazismo e supremacismo racial que nos dão uma ideia de como é ser um roqueiro alemão rebelde na Alemanha e por que a Rússia pode acabar parecendo um lugar legal até para quem teve a experiência de crescer sob o comunismo.

Till Lindemann era um atleta da Alemanha Oriental que acabou contundido e virou trabalhador braçal. Quando peão, ele fazia parte de uma banda punk de garagem tocando bateria. Só bem tarde, com a Alemanha aberta, acharam que a voz grave dele era boa para cantar e, além disso, ele resolveu começar a escrever letras de música. Quando punk, misturava uma porção de remédios para se drogar (conforme disse ao explicar o título do seu CD “Skills in Pills”).

Não sei se há uma história relevante de punks na Alemanha comunista, mas sei que em Cuba era proibido ouvir essas músicas ianques e que os punks cubanos se infectaram com AIDS para viverem em paz no lugar onde os doentes esperavam a morte. Dizer que um punk ou um roqueiro num país comunista é um rebelde antissistema não é fazer nenhuma suposição extravagante.

Já integrando o mundo livre, a banda Rammstein, de alemães orientais, começou a ter problemas com difamação politicamente correta ainda em 1995. Na capa do primeiro CD, os membros musculosos da banda aparecem sem camisa, escondendo o tecladista magricela. Se isso é normal para qualquer pagodeiro baiano, na Alemanha a imagem foi logo interpretada pela imprensa como uma apologia da superioridade da raça ariana. Hoje é normal sair acusando todo mundo de supremacista branco nos EUA; mas em 1995 Stallone e Schwarzenegger podiam exibir seus músculos em paz. De todo modo, para evitar dores de cabeça, o CD teve a capa substituída ao ser relançado três anos mais tarde.

Outro episódio digno de nota é a censura estatal sofrida em 2008. Depois de lançar o CD “Liebe ist für alle da”, o (respire fundo antes de ler) “Bundesprüfstelle für jugendgefährdende Medien”, ou “Departamento Federal de Mídia Perigosa para a Juventude”, colocou o CD “Liebe ist für alle da” na sua lista de mídia perigosa. O CD encorajaria práticas sexuais sadomasoquistas. Uma vez listada pelo “Bundesprüfstelle für jugendgefährdende Medien”, torna-se crime não só vendê-la para os jovens, como também torná-la acessível ou mesmo estocá-la, de modo que, na prática, nem os macacos velhos conseguem ter acesso. Assim as lojas ficam com medo de ter o CD da banda e por isso a produção encalhou. Anos depois, o CD saiu da lista, mas o prejuízo ficou. Esse órgão maluco existe desde 1954.

Pisando em ovos

Com tanta censura e difamação, a banda pisa em ovos para expor suas convicções políticas. Tendo ouvido as músicas, não diria que são neonazistas nem comunistas; diria apenas que são nacionalistas sofridos e simpatizantes da Rússia; que não digeriram bem nem a derrota na Segunda Guerra, nem a adesão ao mundo livre.

Perante a cobrança de posicionamento político, a banda lançou, ainda em 2001, a música “Links 2 3 4”, ou “Esquerda 2 3 4”, bem militarista, cujo refrão diz que o coração bate à esquerda e a contagem dá o tom de marcha. O clipe da música retrata formiguinhas desordenadas que ganham consciência (graças a uma formiga líder discursando no púlpito) e vencem o invasor externo. Esquerda à parte, tudo isso poderia servir para propaganda nazista, mas direita e esquerda europeias são assim mesmo: troque o judaísmo internacional pelo capitalismo e a conversa é a mesma. Se os capitalistas e os judeus fossem 100% coincidentes, não daria para diferenciar esquerda de direita na Europa. Como os judeus vivem à vontade nos EUA, não é de admirar que a direita europeia também seja antiamericana.

Dada a globalização da Alemanha, é evidente que os membros da banda (ou ao menos o compositor) estão chateados com o país. Para expressar isso, só pisando em ovos para driblar a censura. Para fazer uma música (“Deutschland”) declarando amor e ódio à Alemanha ao mesmo tempo, faça-se um clipe com uma modelo negra representando Germânia, a personificação da Alemanha. Para fazer uma música (“Ausländer”) retratando os estrangeiros como gente frívola e promíscua que não tem apego a nada, faça-se um clipe onde os membros da banda interpretam exploradores coloniais chegando à África e esculhambando tudo. E para fazer uma música (“Mein Land”) com um refrão furioso “Minha terra/ Minha terra/ Você está aqui na minha terra”, nada como pôr outra vez os próprios membros da banda como estrangeiros frívolos e promíscuos, curtindo as praias e as mulheres dos Estados Unidos.

E nessa música o eu-lírico, que fica admirado com essa gente que corre para todas as direções sem parar em lugar nenhum, se queixa de que ninguém o convida para ficar. Isto pode traduzir muito bem o sentimento do alemão pobre, sempre tachado como um rebelde indesejável, que deve engolir quieto a enxurrada de estrangeiros vindos de todas as partes do mundo com costumes diferentes.

Uma hipótese

Vendo essas coisas, tenho a seguinte hipótese: surgiu na Alemanha do pós-guerra, com bons motivos, o costume da elite de olhar o povo como um problema. O peão não pode tirar uma foto sem camisa em paz, pois haverá uma madame que o chame de supremacista branco. Com o crescimento da Alemanha na União Europeia, essa conduta da repressão do povo pela elite foi exportada para os demais países e infectou também os EUA.

Desde a eleição de Trump, todo branco é um white supremacist – e, bem, os EUA são um país de maioria branca, então dá na mesma dizer que o povo é racista. Aqui no Brasil, sem comentários. Dos EUA a coisa chega aqui fácil e agora aprendemos que os evangélicos são supremacistas brancos, mesmo que sejam mulatos da favela. De repente, todos os povos do Ocidente começam a ser tratados como alemães nazistas no pós-guerra e precisam ficar jurando que não são racistas e malvados.

Assim, a Europa é um bom lugar para observar quando queremos nos inteirar da repressão do povo pela elite política.

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