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Oktoberfest em Blumenau: o Sul seria um antro de nazistas, se a cultura brasileira não fosse resistente ao trabalho de governos e de ideólogos.
Oktoberfest em Blumenau: o Sul seria um antro de nazistas, se a cultura brasileira não fosse resistente ao trabalho de governos e de ideólogos.| Foto: Pixabay

A seção de comentários desta coluna mostra leitores angustiados com a propaganda racial que o Brasil enfrenta. Para pôr sempre as coisas em perspectiva, conto-lhes que nos Estados Unidos a Penguin publicou um livro para os pais criarem bebês antirracistas. O New York Times achou o máximo e o livro foi um dos mais vendidos. Você aí, pai de recém-nascido, penando para fazer o seu filho torcer pelo seu time, nem imagina as preocupações do progressista. Para ter uma ideia do teor do livro, há este vídeo aqui, para quem entende inglês.

E é bem conforme os ensinamentos de Kabengele Munanga, ou dos europeus que deixam as filhas de imigrantes entregues ao estupro e à mutilação genital: não existem pessoas dotadas de alma individual, com alguma dignidade pelo mero fato de serem humanas. Em vez disso, existem culturas estanques, que são como que almas coletivas inerentes a grupos. Conheceu um “negro”, conheceu todos. Se Machado de Assis era uma pessoa singular, é porque havia algo de errado com ele – branquitude internalizada, algo assim.

Culturas devem ser respeitadas; pessoas, não. E uma vez que você aprenda a pensar em culturas que devem ser respeitadas, é muito fácil passar a pensar em culturas que não devem ser respeitadas. E se raça e cultura são uma coisa só, aí já viu: dá para pegar “a cultura” dos imprestáveis (fascistas, racistas etc.), botar “a cultura” na câmara de gás e cremar “a cultura”.

Tem disso no Brasil? Depende. Replica-se este mesmo modelo: editora grande lança autor racialista oficial, o jornal progressista bota nas alturas e os departamentos de RH compram de baciada, inflando as vendas. A mensagem do livro é que existe o racismo estrutural, de modo que todo branco é racista e tem que ficar ajoelhado no milho.

No Brasil, Djamila Ribeiro, editada pela Companhia das Letras, defende essa tese. Nos Estados Unidos, tem duas figuras oficiais: Ibrahim Kendi, negro, e Robin DiAngelo, branca. Eles têm um Djamilo preto para o público preto e uma Djamila branca para o público branco, ambos com a mesma mensagem. Lilia Schwarcz tentou ser a Djamila branca daqui, mas não colou. Entendo isso como um indicativo de que o progressista brasileiro, tal como um brasileiro comum, não acha que um negro é um bicho de sete cabeças e tem familiaridade suficiente com negros para ouvi-los diretamente, sem achar que precisam de um intermediário branco. De resto, como li Djamila, digo que ela junto desse Ibrahim Kendi é um poço de sutileza e bom-senso.

É difícil saber, em termos absolutos, a penetração que essas ideias têm entre os norte-americanos comuns. No entanto, se usarmos o Brasil numa comparação, podemos ter uma noção em termos relativos. O Black Lives Matter levou multidões às ruas e incendiou os Estados Unidos. Aqui, houve duas tentativas de replicar o movimento no Brasil e ambas deram chabu: a primeira foi com as torcidas organizadas e a segunda foi a do “marido errático” morto no Carrefour.

Dois apontamentos

Os Estados Unidos são um país importantíssimo na história do Ocidente. Surgiu no século XVIII, na Era das Luzes, e baseou-se numa série de ideias inovadoras que arrepiariam os cabelos dos medievais, tais como a igualdade de todos perante a lei ou a licitude do lucro. A estabilidade de sua república e de suas leis faz inveja ao resto do mundo. Os Estados Unidos ficaram independentes para ser a terra da liberdade, e cumpriram a promessa. A liberdade trouxe-lhes uma prosperidade sem precedentes e feitos nada desprezíveis nas ciências e nas artes.

No entanto, todo o seu maquinário institucional, toda a sua prosperidade, todo o seu letramento e toda a sua ciência não foram capazes de dar a eles uma coisa que nós, um país antiquado, patrimonialista, surgido no fim da Idade Média, onde as leis newtonianas da física eram proibidas até o fim do séc. XVIII, onde a escravidão quase chega ao séc. XX, temos de graça. Temos uma cultura arracial (para usar o termo de Peter Fry, antropólogo naturalizado brasileiro). Uma cultura não é coisa que se compre com dinheiro, nem que se projete com ciência, nem que decorra simplesmente de boas instituições políticas.

Outra coisa digna de nota é que o Estado não é o único grande algoz coletivista possível. Desde a queda de Dilma Rousseff, nós, brasileiros, estamos encantados com o liberalismo econômico. Mas nós não podemos enxergar a sociedade como uma luta pecuniária entre o dragão Estado e o São Jorge empresário. Empresários monopolistas são um perigo para as liberdades, inclusive porque podem comprar um Estado – vide a própria simbiose entre o cartel de empreiteiras e o governo petista.

O desenho institucional dos Estados Unidos é tão bom justamente por impedir isso, já que tem leis antitruste. Mas hoje as Big Techs as desrespeitam. Além disso, as paraestatais do Partido Comunista Chinês compram a opinião dos jornais e universidades. E o liberal brasileiro, abobado, olha deslumbrado para a Amazon e para o “investimento chinês” como maravilhas do capitalismo e da liberdade.

Agora, voltemos às editoras, pois elas revelam uma curiosa coincidência histórica. A brasileira Companhia das Letras, propagandista de identitarismo, foi comprada pela britânica Penguin, que publicou o insólito livro para bebês antirracistas. A Penguin sempre foi uma editora muito boa, sem histórico de envolvimentos espúrios com ideologias. Mas acontece que ela foi comprada há onze meses pela Bertelsmann, uma editora alemã fundada no XIX e que cresceu no nazismo, tornando-se a editora paraoficial do Reich III.

E é essa editora que nos olha de cima para baixo, pretendendo ensinar brasileiros a não serem racistas.

Tentáculos mundiais no Sul

Penguin, Companhia das Letras, Bertelsmann, Amazon: toda essa propaganda racial e identitária é global e o Brasil está ótimo em comparação ao mundo rico.

A propaganda racial não está entre nós pela primeira vez. Tal como o comunismo, o nazismo foi um movimento internacional que implantou seus tentáculos na América do Sul. Se os racistas de hoje correm para a Bahia para posar de reis da negritude, nas décadas de 1940 e 1950 o Sul do Brasil era o alvo favorito dos racistas. Afinal, o racismo da moda era o alemão.

Para complicar ainda mais a trama, no Rio Grande do Sul, as colônias de europeus constituíam uma pedra no sapato dos castilhistas. Os castilhistas eram seguidores do político positivista Júlio de Castilhos, que manteve o Rio Grande do Sul numa espécie de ditadura estadual por toda a República Velha. Assim, quando Getúlio Vargas dá um golpe de Estado e se torna chefe do Executivo, ele tem todo o interesse em pintar seus antigos inimigos políticos como racistas.

O ruído alemão sem dúvida foi pior do que o negro. A existência de nazistas no Sul se converteu num verdadeiro inferno para a maioria dos imigrantes e descendentes, e isso por todo o Brasil. Até na Bahia, onde existiam empresários alemães de origem judaica, as expropriações xenofóbicas de Getúlio acabaram com o fumo no Recôncavo.

Antropólogos nordestinos investigam a questão

Em virtude do ruído, ao menos dois antropólogos nordestinos foram ao Sul investigar a questão da brasilidade entre os colonos. O primeiro trabalho de etnografia de Thales de Azevedo, baiano, consistiu em ir para o Sul observar gaúchos. Daí saiu seu trabalho “Italianos e gaúchos” (esgotado, porém fácil de achar em sebo), no qual considera que sejam de todo infundadas as afirmações de que os italianos não se integraram à cultura brasileira e queriam constituir um Estado à parte.

O outro antropólogo é ninguém menos que o Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre. Conta ele num texto de 1940, presente em “O mundo que o português criou” (que a É Realizações não deixou esgotar):

“[...] a primeira impressão que se tem de Blumenau, ainda mais do que de Joinville ou de Santa Cruz, é esta: uma cidade alemã [por causa da arquitetura e dos biotipos]. Mas quem se fixar no ritmo do andar das pessoas não hesitará em se sentir no Brasil. O andar da gente de Blumenau já não é alemão: é brasileiro. O andar, o gesto, o ritmo. Sente-se nessas exterioridades outro sentido de vida. Sente-se o Brasil adoçando nos descendentes de homens do Norte o que seus pais, seus avós, seus bisavós trouxeram para cá de anguloso, de duro, de hirto. Fora a gente trabalhada por agentes políticos ou culturais (empenhados, até há pouco ostensivamente, agora por processos sutis, em dissolver ou desprestigiar as tradições luso-brasileiras do Sul do Brasil), quase todo o homem de Blumenau ou de Santa Cruz, de Joinville ou de São Leopoldo, se já não é um meio-convertido ao que há de essencial no brasileirismo, pela prática, senão de muitos, de alguns pequenos atos tradicionalmente brasileiros, é, mesmo contra a sua vontade individual ou sua mística política, um indivíduo a caminho dessa conversão. […] O alemão se integrará na tradição luso-brasileira, sem deixar, é claro, de trazer para essa tradição alguma coisa de novo e dos seus antepassados. […] Ao voltar […], um jornalista perguntou-me, em Santos, que impressão eu trazia das chamadas ‘populações coloniais’ do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul. Respondi-lhe que, ao meu ver, devíamos separar muito bem separadas essas populações – os grupos de boa gente de origem europeia desejosa de se fixar entre nós – dos agentes políticos, ou, antes, ‘culturais’, que procuram explorá-la, desenvolvendo uma atividade contra a ‘cultura luso-brasileira’ que é, afinal, uma atividade contra nós: contra o Brasil.”

De 1940 para cá, os agentes “culturais” puseram ainda mais as manguinhas para fora, pois falam abertamente contra o Brasil. Antes eram os “teuto-brasileiros” que depreciavam os “luso-brasileiros”. Hoje são os “afro-brasileiros” que dizem à “branquitude” que o Brasil é horrível.

E o Sul está aí, brasileiro. O Sul não é um antro de nazistas. Mas seria um antro de nazistas, se a cultura brasileira não fosse resistente ao trabalho de governos e de ideólogos.

De volta à Idade Média

“Mas tem a legislação racial!”, dirão alguns. Também isso, por incrível que pareça, tem precedentes.

No Portugal medieval, existiu um racismo avant la lettre restrito às elites. Se você tinha sangue de judeu, de mouro ou de protestante, estava impedido de ter cargos na burocracia do Santo Ofício. Acesso às cátedras universitárias também era algo complicado e existia essa figura racialmente pura do cristão velho de quatro costados, que não contava com nenhum avô de fé errada. Não interessava se você era um bom católico honesto. Para a burocracia, valia o sangue dos seus avós. Curiosamente, o sangue tupi estava liberado. A razão teológica para isso é que a Boa Nova não tinha chegado aos índios. A razão política é que, sem o auxílio dos índios e dos seus descendentes, não havia colonização no Brasil. Então era preciso dar a eles cargos, títulos e prebendas.

A discriminação racial burocrática no Brasil hoje é, de novo, de elite. Se você ficar na base da pirâmide social, pode nascer e morrer aqui sem ter contato com coisa de raça. Se for atrás de uma prebenda, a coisa já muda de figura e vai aparecer o novo tribunal de limpeza de sangue. O genocídio não está em questão; o que interessa é a prebenda.

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