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A Morte de Sócrates
‘A Morte de Sócrates’: pintura feita pelo francês Jacques-Louis David em 1787| Foto: Pixabay

Os interesses da coletividade justificam a morte daqueles que foram coagidos a tomar a vacina experimental e sofreram efeitos adversos letais. Também justificam que tais mortes não sejam mencionadas em público, para que todos se vacinem ignorando riscos. As piadas é que matam. E a democracia está ameaçada pelo discurso de ódio.

Este conjunto de proposições explicita a mentalidade que impera verticalmente no país e no mundo. Por um lado, não há nada de mais em morrer precocemente dentro de um percentual chancelado por uma burocracia anônima e poderosa. Por outro, insiste-se que o flatus vocis, o sopro da voz, pode fazer colapsar a sociedade e matar pessoas. A morte vinda de cima por coação, pode. O que não pode são as palavras anárquicas e irreverentes que brotam de todo lado. O planejado é bom em si mesmo; o que vai contra os planos é mau em si mesmo.

Assim, as piadas matam as “minorias” (que são mais da metade da população brasileira), a “milícia digital” mata a democracia, as “fake news” do tratamento precoce são nada menos que ge-no-cí-di-o. Vai todo mundo morrer de palavrite!! Por isso, devemos atirar algumas pessoas ao calabouço para impedir que falem. Vale botar na cadeia sem o devido processo legal, pedir cem mil de fiança, receber cem mil e deixar preso. Vale soltar quase um ano depois e impedi-lo de chegar perto das redes sociais. Vale, mesmo ele não usando as redes sociais, alegar que dar uma entrevista a um veículo de comunicação que usa as redes sociais é uma infração das ordens.

Ora, fica claro então que a meta é o fim de suas palavras. Fim este que só pode ser alcançado de um jeito: com a morte.

Sou uma completa ignorante em matéria jurídica

Desde 2017, quando as cotas raciais foram declaradas constitucionais, eu não tenho nenhuma pretensão de dizer que entendo Direito. Afinal, a Constituição diz no artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”; e, no artigo 7º, que está proibido o “critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. Aos olhos de um mero indivíduo alfabetizado que goze da luz natural da razão, a lei distinguir as pessoas pela cor viola o artigo 5º, e as cotas raciais no serviço público nada mais são do que um critério de admissão por cor.

Mas decisão judicial se cumpre. Se o STF decidir que a soma dos quadrados dos catetos é um pão de queijo, temos de aceitar; do contrário, estaríamos atacando as nossas sacrossantas instituições democráticas. Segundo o meu catecismo, a Constituição é o que onze indivíduos de notável saber jurídico dizem que é. Se o que eles dizem parecer absurdo, temos de declarar, com São Jerônimo, Credo quia absurdum. E quem questionar o notável saber jurídico usando apenas a luz natural da razão que Deus lhe deu, é porque evidentemente não tem o notável saber jurídico necessário.

Na minha ignorância, portanto, eu não ponho a minha mão no fogo pela inexistência de pena de morte legítima no Brasil de hoje. Diz o artigo 5º na alínea XLVIII que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Quem me garante que não há uma hermenêutica sagacíssima, muito superior às minhas capacidades mentais, segundo a qual um ministro do STF pode declarar guerra às fake news ou ao discurso de ódio e mandar para o cadafalso o meliante? Quem me garante que não vou acordar um dia com a notícia de que, segundo despacho do STF, o Sr. Fulano de Tal é doravante o servidor encarregado de executar a pena capital, a ser aplicada numa lista tal dos propagadores de fake news.

Como eu disse, eu mesma não sei de nada. Seria bom os nobres causídicos e os divulgadores de ciência (que divulgam de tudo, às vezes até ciência), bem como os autodeclarados liberais, darem uma mão para começarem a iluminar a sociedade nesse quesito. Sérgio Moro poderia dar as caras também e deixar mais claras as suas posições a esse respeito.

Cenário plausível

Ora, está plenamente estabelecido pelas autoridades morais e efetivas que um “bolsonarista” não é bem um ser humano. Pode até pertencer à espécie humana, mas sua dignidade é no mínimo questionável. Praticam discurso de ódio, que, como sabemos, mata.

Aprendemos que liberdade de expressão não é liberdade de opressão, de modo que a liberdade de expressão acaba quando a opressão começa. (Só categorias especiais podem se dizer oprimidas. Ser “bolsonarista” descredencia qualquer um da condição VIP de oprimido.) Se o direito à liberdade de expressão é assim tão perigoso quanto urânio enriquecido, devendo ser manuseado com aparato especial, por que o mesmo não se dá com o direito à vida? O direito à vida vai até um lugar aí que não sei bem qual é, vocês é quem vão me dizer. Afinal, como vocês tanto dizem, “nenhum direito é absoluto”. Se há limites tradicionais à liberdade de expressão – que vão se mostrando cada vez maiores –, por que não explorar os limites do direito à vida?

Numa hora se parte da incitação à violência ou da falsa comunicação de um incêndio para mostrar que há limites à liberdade de expressão. Daí se infere que não se pode desagradar a alguma minoria VIP nem para fazer uma afirmação que não passou pelo crivo dos verificadores de fato. Bem se pode partir do direito à legítima defesa, que desde sempre limita o direito à vida, para dizer que veja bem, olha só, a Democracia também tem o direito à legítima defesa, e os guardiões da Constituição são os guardiões da Democracia.

Oprimidos VIP também poderão acionar a Justiça para pedir um literal corte de cabeças. Liberdade de expressão não é liberdade de opressão, piadas matam, então o Judiciário pode aplicar a legítima defesa à coletividade das “minorias”, que são atacadas por piadas. As almas sensíveis desviarão os olhos da execução, que, segundo as autoridades, é muito humana. O carrasco libera um gás que mata de forma indolor. Além disso, cada extinção de vida humana bolsonarista significa menos carbono no meio ambiente, de modo que cada execução ajuda a salvar o planeta.

Funciona?

Mas voltemos ao propósito original, que é fechar uma boca e impedir que saiam dela palavras incômodas. O problema é que, uma vez saídas da boca ou do teclado, as palavras ganham vida própria. Não quer dizer que elas não morram. A causa mortis mais frequente das palavras é o esquecimento. As palavras de Cícero tiveram de ser muito vigorosas e sortudas para atravessar milênios e chegarem, impressas e lembradas, ao século XXI. Não acho que as palavras chulas de um deputado federal desconhecido tivessem muita chance de sobrevida.

Desde tempos bíblicos, perseguição e censura animam as palavras. O bom-senso ensina que a censura e martírio saem pela culatra. Em 2021, revelam-se sábias e proféticas as palavras da Sr.ª Dilma Rousseff: “Vai todo mundo perder”.

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