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O governador petista Rui Costa chora na TV.
O governador petista Rui Costa chora na TV.| Foto: Reprodução/ Twitter

“Foi, minha filha, o homem chorou por causa dos leitos!”, disse a compassiva velha na janela do casarão, e eu entendi se tratar do governador Rui Costa. Ao voltar para casa, tomei coragem e cliquei no vídeo divulgado pelo próprio PT, em que Rui Costa começava a chorar numa entrevista ao vivo para a TV Bahia, de ACM Jr. (O Jr. é o da Rede Bahia, o Neto é o político). Você pode clicar aqui e sentir um constrangimento palpável com a pieguice da cena: o governador chorando e a apresentadora o mandando chorar. Os leitores de Dalrymple vão se lembrar da crítica dele ao sentimentalismo.

Ouvi a velha no casarão porque me mudei para o interior, onde há bonitos casarões, construções históricas e onde o chão mais moderno é de paralelepípedo. E o mais importante: onde não há tuiteiros. Vejam bem: existe uma forma ideal d’O Tuiteiro no Mundo das Ideias descrito por Platão. Ter uma conta no Twitter não faz de você um tuiteiro. Até os traficantes têm conta no Twitter, mas os “coitados” usam essa rede social para oferecer seus produtos, divulgar suas festinhas pandêmicas e ameaçar os outros. Não para ficar aporrinhando todo mundo, como faz o abominável Tuiteiro.

O Tuiteiro é assim: ele não opina, pontifica. Opinião pode ser verdadeira ou falsa, ao passo que o Tuiteiro está pontificando Verdades Absolutas o tempo inteiro. Essas verdades não são nunca sobre coisas triviais, porque o Tuiteiro é superior demais para falar do cotidiano. Sua Verdade é toda relativa à política graúda. O prefeito, o governador (desde que sem pretensões de chegar à presidência), o parlamentar que cuida de coisas práticas: todos eles são formigas aos olhos do Tuiteiro, que vê a si próprio como Guia Genial dos Povos, aquele cujos pronunciamentos luminosos o mundo inteiro espera.

E, como tudo é político, não existem questões estritamente sanitárias. Vacina é de esquerda, tratamento é de direita. O médico tem que assistir à piora do paciente antes de entubá-lo, pois se tentar algo é de direita. Mesmo com o vírus completando um ano no Ocidente agora, o Tuiteiro já decidiu que nenhum tratamento pode ser descoberto ou confirmado, de modo que só resta esperar pela vacina de prata.

Agora é a medicina de esquerda, mas antes já inventaram biologia proletária para combater a biologia capitalista. Chamava-se lysenkoísmo e foi apoiada por Stálin, cognominado Guia Genial dos Povos. Por aí vocês veem que Stálin foi um tuiteiro antes do seu tempo.

Governador da Bahia é diferente do de São Paulo

Pois voltemos à velha na janela. A choradeira do governador se deu às vésperas da decretação fechamento do comércio e de toque de recolher, sendo este uma coisa inédita na Bahia. O governador parece ter ganhado pontos com a velha, que interpretou as lágrimas como uma real comoção de um governante humano. Pelo discurso, o prejuízo não era nada em comparação às vidas perdidas na UTI. Como Rui Costa foi sindicalista do polo petroquímico a vida inteira, é bem capaz de ele ter sido honesto mesmo, já que sindicalista costuma achar que dinheiro cai do céu.

Surgiram boatos de que o governador teria dito que não deveria reabrir as UTIs, pois assim o povo não se disciplina. Essa afirmação vinha acompanhada por uma imagem do governador no estúdio da GloboNews. Vi que ele realmente deu uma entrevista à GloboNews sobre as medidas para conter esta onda, mas a entrevista não foi no estúdio e ele, ao contrário, afirmava que se empenhava em reabrir todos os leitos criados no ano passado. De resto, é digno de nota que ele critica muito de leve o governo federal. Ponha o tucano Dória ao lado do petista Rui e compare.

Nisto, o Tuiteiro verá oportunidade para usar o termo “bolsopetista”. Eu, de minha parte, vou recomendar que puxe o histórico: quantas vezes você já viu um governador da Bahia em campanha aberta contra um presidente? Assim como Rui Costa não faz campanha contra Bolsonaro, ACM não fez campanha contra Lula – na verdade, chegou a fazer a favor, na reeleição. E quantos governadores de São Paulo em campanha aberta contra o presidente você já viu? Mais fácil perguntar quem não fez campanha, pois o cargo de governador de São Paulo, e até de prefeito da capital, é visto como um trampolim para a presidência da República desde quando há República. Só durante as ditaduras de Vargas e dos militares o governador de São Paulo não se sentia um candidato à presidência.

A entrevista de Rui Costa à GloboNews foi uma defesa perante o eleitorado dele. Em vez da pose de tiranete de Dória, jurava de pés juntos que abria tantos leitos quanto possível e dizia que combatia os paredões. A mulher da GloboNews nem deve saber o que é paredão. É a festa das periferias em que uma parede de caixas de som toca músicas lúbricas. Tem na Bahia, me disseram que a moda veio do Pará e meus parentes cariocas não conhecem o termo.

A linha da imprensa progressista nunca é cobrar pela abertura de leitos, mas sim por arrocho e mais arrocho. Já o povo reclama que o trabalhador não pode trabalhar, enquanto o paredão (ou o baile funk, a depender da região) está correndo solto. E xinga o governador por causa das medidas, não das mortes.

A opinião distante do Tuiteiro

Comendo acarajé na praça, fiquei ouvindo as conversas. As opiniões diziam todas respeito ao uso das máscaras (desconfortabilíssima, mas usam), aos cidadãos comuns (tem gente ruim que sabe que tem Covid e vai para a rua), a quanto tempo a Covid está entre nós (há anos, porque esta é a Covid-19 e houve várias antes, segundo explicou um médico num áudio do WhatsApp) e à conduta da prefeita e do governador quanto ao povo da roça. O povo da roça – comentavam elas – não sabia de loquidau nenhum e estava fulo porque ia perder a produção. O povo da roça chiou, disse que o governador era um incompetente, que deveria ter proibido o carnaval de Salvador ano passado. No fim, a prefeita transigiu. Como o povo da roça não foi avisado com antecedência, ia ter feira no sábado.

Estado agrário

Por aqui, é difícil se inteirar das medidas da prefeita. A cidade não tem jornal, nem site noticioso. Para eu descobrir se vai ter feira este sábado, tenho que ou perguntar a alguém, ou ir para alguma praça, onde alto-falantes emitem a Web Rádio Pititinga. (Pititinga é um peixinho miúdo que se come frito). Não consigo ouvir a Web Rádio pela web. Indo à praça, tenho que contar com a sorte, porque posso sair e estar passando a conversa entre o radialista e o frade.

O “povo da roça” são os pequenos produtores rurais que habitam o município. O município tem uma sede, que é a cidade propriamente dita, e tem os distritos. Todo sábado, o povo da roça vem de madrugada, montado a cavalo com cestões chamados “cofas”, cheio de produtos rurais, para serem vendidos na feira livre, que fica na sede do município. Eu os vejo voltando com as cofas vazias no começo da tarde. Se tem toque de recolher, eles não podem trazer seus produtos à venda.

Tudo isso se passa a duas horas e meia de Salvador e a 40 minutos da segunda maior cidade da Bahia, que é Feira de Santana. (A noção de distância no Nordeste é diferente de sul e sudeste. Duas horas e meia de viagem é inquestionavelmente perto. Feira de Santana não é longe de Salvador; longe é Barreiras e Vitória da Conquista, que passam de dez horas de viagem. Na porta da minha nova casa, passa o mesmo carro do ovo que eu ouvia em Salvador).

Segundo o IBGE, com dados de 2020, o rendimento domiciliar per capita da Bahia é de 965 reais. Aqui no interior, eles falam de Salvador como um lugar para juntar dinheiro, porque lá se paga a incrível quantia de 2 mil reais. A meta do cidadão local, até onde entendi, costuma ser a de juntar dinheiro para comprar uma terra e se tornar um pequeno produtor rural subsistente, com um dinheirinho extra que dê para pagar a manicure da mulher e a cerveja do final de semana. Os que escolhem ficar aqui, mesmo sem a perspectiva de comprar terras, não gostam de cidade grande e têm uma ocupação fixa, também voltada para a subsistência. Algo digno de nota é que quase toda essa movimentação financeira se dá com dinheiro vivo, invisível ao burocrata. Então não sei se dá para confiar no IBGE.

Mas vamos à demografia. A Bahia tem 14.930.634 habitantes. Seus três maiores municípios, que são, respectivamente, Salvador, Feira de Santana e Vitória da Conquista, têm, somados, 3.847.425 habitantes. Você conhece o músico Elomar? Aqui está ele apresentando a casa dele. Fica no terceiro município mais populoso da Bahia. No próprio núcleo urbano de Feira de Santana, se você se afastar do centro e chegar mais para perto de uma favelinha, pode aparecer um pastor cavalgando para tanger os bodes.

Vamos fazer de conta que todos os habitantes de Salvador, Feira e Conquista são urbanos e que todos os demais municípios têm uma população toda rural com esse perfil. Isso dá 11.083.209, ou 74% de população rural de subsistência. É claro que fiz um chute grosseiro aqui. Por isso, registro que no extremo oeste baiano – aquele da Operação Faroeste – há uma porção de gaúchos e japas com um perfil diferente do típico roceiro baiano aqui descrito. Mas é gente que conta infinitamente mais em cálculos econômicos do que demográficos.

É uma população que só se inteira do governo federal para saber de auxílio e de projetos para região. Gente que está mais interessada no prefeito e no governador, que são mais próximos do que no presidente. Gente que não está nem aí para polêmicas da internet, e não faz a mais tênue ideia de como funciona a cabeça d’O Tuiteiro – e, quando faz, é graças ao programa de Sikêra Jr.

Pois bem: falei aqui da Bahia, que é o estado mais populoso da região Nordeste. Agora imagine como não é o Rio Grande do Norte, Sergipe, Paraíba, Piauí, Alagoas, Maranhão, Ceará, Pernambuco. E lembre que essa é a segunda região mais populosa do Brasil.

Quão desconectados da realidade os acadêmicos e jornalistas não estão?

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