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Auxílio Brasil começou a ser pago em 17 de novembro em substituição ao Bolsa Família
Auxílio Brasil começou a ser pago em 17 de novembro em substituição ao Bolsa Família| Foto: Reprodução

Hoje eu queria contar a ideia que tive sobre as nefastas consequências não intencionais que o Auxílio Brasil deverá trazer para o Nordeste. Eu poderia procurar planilhas e dados nos sites do governo ou das ONGs para embasar minhas afirmações. Na certa encontraria planilhas pró e contra a minha ideia; mas, como esse processo prévio não está sob holofotes, eu teria liberdade para escolher as planilhas mais convenientes para a minha hipótese. Aí, pronto: cheia de números, eu poderia posar de especialista e anunciar a catástrofe vindoura, com direito a muitas manchetes. Quem discordasse era na melhor das hipóteses um simplório; na pior, um abominável negacionista que precisa ser detido pelo STF. De todo modo, os checadores de fato pinçariam as mesmas tabelas que eu para provar qualquer coisa.

Mas como eu não quero ser especialista e sou capaz de promover o Movimento do Orgulho Generalista e Anedotário, não vou fazer nada disso. Vou é contar como cheguei à hipótese enunciada no começo do texto. Foi conversando com um motorista de aplicativo em Curitiba.

Presença nordestina em Curitiba

Fiquei pouco tempo em Curitiba e almocei dois dias lá. No primeiro dia, saí à cata de vinas num restaurante indicado. Vina é a coisa mais sem graça do mundo; é só uma salsicha de diâmetro grande. No segundo dia, resolvi usar a experiência adquirida no Rio Grande do Sul e entrar em algum restaurante com nome italiano, certa de que lá estaria um bufê cheio de comida gostosa e muita polenta. Era isso mesmo, mas uma coisa me saltou aos olhos: enquanto em Porto Alegre eu tinha notado um certo domínio dos colonos italianos no setor alimentício, com o interior dos restaurantes cheio de trabalhadores bem branquelos, no de Curitiba os garçons eram todos pardos. Deu para perceber que falam as vogais anasalando igual a mim. (Em vez das vogais abertas, para pegar a origem nordestina, repare no anasalamento. Se é da região Nordeste, diz ãmigo e bãnãna em vez de á-migo e bá-nana.)

Talvez Curitiba tenha uma economia muito mais aquecida do que Porto Alegre e isso a torne um polo de atração de nordestinos trabalhadeiros. Porto Alegre, por outro lado, seria abastecida por excedente da mão de obra rural, explicando-se assim o contingente de garçons oriundos das colônias europeias rurais.

Na hora de chamar um motorista de aplicativo para a rodoviária, aparece mais um jovem pardo e uns olhos puxados comuns em descendentes de índio. Chuto que seja nordestino de área sem muita presença histórica da cana-de-açúcar – porque onde há cana há negro.

Resulta que era um alagoano de Maceió que se mudara com a família inteira havia mais de dez anos e adora a Curitiba. Adorou a minha ideia de sair de Porto Alegre e ir subindo pelas capitais até chegar ao Rio de Janeiro e pensa em imitá-la, mas queria fazer outra coisa antes: pôr os pés em Maceió pela primeira vez desde quando emigrou. Planeja fazer isso com a família, comprando um pacote de viagens parcelado em várias vezes.

Os primos preguiçosos, filhos da tia igualmente preguiçosa, porém, vão realizar esse sonho antes dele, e de uma maneira imprudente: vão largar Curitiba e voltar a morar em Maceió. A tia vive de pensão por ter filhos e não trabalha. Os filhos também são dois desempregados e vivem de auxílio. Segundo o motorista de aplicativo, se você conseguir ficar desempregado em Curitiba, é porque você tem algum problema. Se eles não conseguiam arranjar emprego em Curitiba, como iriam encontrar em Maceió? Argumentei que, se eles vivem de auxílio e de fato não querem trabalhar, voltar para Maceió faz perfeito sentido, porque o custo de vida é mais baixo. O motorista pensou e concordou. R$1.200,00 não são nada em Curitiba, mas na periferia de Maceió se vive.

Infelizmente o DataBruna não possui um cadastro de nordestinos autodeclarados vagabundos para saber se o causo é exceção ou tendência geral. Eu posso esperar sentada a tecnocracia se mexer para levantar estudos que corram o risco de concluir que talvez o auxílio, tão bom para ganhar voto, esteja fomentando uma migração de ociosos convictos.

Chegando ao Nordeste, o ocioso não preencherá um formulário do DataBruna constando de de duas opções: (  ) Vim para ficar de boa com o auxílio, jogando dominó. (  ) Vou entrar no bonde e pegar um monte de mulher vendendo droga, porque é mais fácil ser um garanhão rico aqui.

Pensamento independente de burocracia

Eu não tenho números, nem tenho como ter números, já que sou apenas uma escritora munida de um computador e alguns livros. Não sou dona de instituto de pesquisa, nem burocrata, nem recebo dinheiro da CAPES. E isso não pode implicar que eu – e quase toda a população brasileira – tenhamos de ficar sentados esperando que as autoridades e seus “especialistas” pensem por nós.

No caso particular, tomo a liberdade de achar que isso reflete uma tendência geral porque a decisão do primo do motorista é perfeitamente racional. Não é razoável imaginar que ele tenha descoberto que o valor do auxílio rende mais no Nordeste do que no Sul e no Sudeste. Não se trata de pegar um caso e generalizar, mas sim de raciocinar com base no que vejo com os meus próprios olhos. Quando as pessoas deixam de pensar sobre o que veem para ficar acreditando em autoridade, não dá em boa coisa.

Meu editor não acredita em mim

Aí se pode perguntar pela falseabilidade. Como dizer que estou errada, caso esteja? Nesse caso particular, acompanhando o Nordeste. Tem havido, desde a pandemia, um surto de violência em Salvador. Antes eu achava que era por causa da soltura dos presos; hoje já penso que o retorno dos ociosos pode ser um fator que ajuda a explicar. Se eu estiver correta, virá uma alta de violência no Nordeste desproporcional, em comparação à população brasileira. É pouco, mas é o que consigo pensar. Se eu fosse uma burocrata, poderia implementar medidas práticas baseadas em minhas hipóteses e testá-las.

Não peço que ninguém leia minhas hipóteses passivamente, prostrado diante da tela, e acredite ato contínuo. Não sou autoridade. Espero apenas levantar umas lebres e dar assunto para as pessoas pensarem e discutirem.

No entanto, às vezes eu escrevo algumas coisas que podem ser verificadas com facilidade. Afirmo que há um espécie de cracolândia de classe média universitária em Florianópolis, Avenida Hercílio Luz, que pode ser vista nos fins de semana a partir de umas sete da noite. Quem é de lá pode estar acostumado; para mim, foi um choque cultural tanto a existência de uma cracolândia de classe média quanto a disposição dos meus amigos de se misturarem com aquele tipo de gente.

Por “cracolândia de classe média” entendo um ambiente tenso em que as pessoas estão alteradas, com um aspecto físico degradado, misturadas com traficantes. E acho que o fato de os endinheirados se prestarem a isso é algo digno de suscitar reflexões morais.

Não estou dizendo que na Bahia não existam drogados de classe média e alta; o que importa é que na minha cultura eles disfarçam, enquanto que em Florianópolis eles são normais.

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