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Singer fomenta a guerra de todos contra todos. Assim, não há sociedade que dure
| Foto: Bigstock

Peter Singer não quer fazer abstrações. Ao mesmo tempo, quer basear a ética na noção de igualdade. Assim, é contra considerarmos que todos os homens são iguais, porque uns têm um QI mais alto do que outros, e uns têm agressividade maior que a de outros. De todas as qualidades do mundo, Singer escolheu estas duas – QI e agressividade – como grandes obstáculos morais à igualdade entre os homens. Por quê? O QI não é de surpreender, já que a tradição ocidental, muito antes do cristianismo, considerava a alma racional a característica distintiva do homem. Uma diferença na sofisticação da racionalidade pode ser impactante para quem considere a racionalidade distintiva. No entanto, nem os gregos, nem os cristãos empreenderam uma categorização de níveis de humanidade, em que uns homens fossem inerentemente mais humanos do que outros. “Humano” era usado pelos romanos como um elogio àqueles cuja conduta se distanciasse mais da selvageria animalesca, e não como uma superioridade intrínseca. Quando os pagãos queriam atribuir esse tipo de superioridade a alguém (um herói, por exemplo), atribuíam-lhe um quinhão de divindade – ser um semideus filho de Zeus, por exemplo. Com o cristianismo, todo homem batizado passou a ser filho de Deus. De todo modo, vale notar que essa hierarquização pagã pensava no sobre-humano, não no infra-humano. O infra-humano – junto com a “eugenia” (esterilização forçada) e a “eutanásia” (execução massiva) – é invenção do cientificismo. É na valorização da agressividade, portanto, que está a novidade. Ele valoriza a agressividade porque esta é a causa de maiores salários. Tal como os menores salários dos negros nos EUA poderiam ser explicados por genes que transmitem baixo QI, os menores salários das mulheres seriam explicados por meio das características sexuais que diminuem a agressividade das fêmeas. No fim das contas, a igualdade humana que interessa é a igualdade salarial. Bom, também aqui se poderia argumentar que os salários variam – e que inclusive variam muito mais do que o QI e agressividade. Mas o fato é que, segundo a crença de Singer, o QI das populações e a agressividade das mulheres é um fato inalterável da natureza (na edição mais recente do livro, porém, ele talvez considere a testosterona aplicada às fêmeas da espécie como uma solução para o “problema” da falta de agressividade. De todo modo, isso faria das fêmeas “homens trans” ou “pessoas não-binárias”, categorias distintas da de “mulher”. O problema das mulheres permaneceria, portanto). Singer reconhece que a agressividade é boa e má. Os homens teriam maiores salários graças à agressividade, mas também é ela que explica a predominância dos homens entre os criminosos violentos. Ao fim e ao cabo, salário é realmente o que importa.

Que igualdade é essa, afinal?

Ele não vai dizer que é igualdade de salário, mas é igualdade de salário, ou, no mínimo, de posses. Nas palavras dele, “ao fazer um juízo ético, devo ir além de um ponto de vista pessoal ou grupal, e levar em consideração os interesses de todos os que forem por ele afetados. Isso significa que refletimos sobre os interesses, considerados simplesmente como interesses, e não como meus interesses, ou como interesses dos australianos ou de pessoas de origem europeia. Isso proporciona um princípio básico de igualdade: o princípio da igual consideração dos interesses. A essência do princípio de igual consideração significa que, em nossas deliberações morais, atribuímos o mesmo peso aos interesses semelhantes de todos os que são atingidos pelos nossos atos” (p. 30). Como os interesses das pessoas com QI baixo e pouca agressividade devem ser tão considerados quanto os de muito QI e muita agressividade, precisamos, como vimos no penúltimo texto, dar cotas para elas. E como vimos no texto anterior sobre Singer, ele presume que a raça negra tenha um QI especialmente baixo.

A objeção naturalíssima é: se o direto continua sendo formulado em termos individualistas, o branco que perde uma vaga na faculdade para um negro por causa de sua cor poderia dizer que ambos têm igual interesse em entrar no curso. Daí Singer dá o pulo do gato: “Como já afirmei, a maior inteligência não traz consigo nenhuma pretensão correta ou justificável de um maior desfrute das coisas boas que a nossa sociedade tem a oferecer. Se uma universidade admite alunos de maior inteligência, ela não o faz em consideração ao maior interesse que eles têm em ser admitidos, nem em reconhecimento ao seu direito de ser admitidos, mas porque, com isso, favorece objetivos que, acredita, serão propiciados por esse novo processo de admissão” (p. 58). De repente, a universidade tem direitos individuais também, e escolher algo que privilegia a inteligência é arbitrário. Os candidatos “não tinham nenhum reclamo especial para serem admitidos; eram os felizes beneficiários da velha política da universidade. Agora que essa política mudou, outros se beneficiam, não eles. Se isso parece injusto, é só porque estávamos habituados à velha política” (p. 58). Nesse caso, Singer tem em mente a decisão da Suprema Corte dos EUA que permitiu as “ações afirmativas”, isto é, cota racial em universidade. Não se trata de uma mera mudança de critérios, mas da adoção de um critério racial. Os EUA sempre permitiram que candidatos com notas meeiras no SAT (o Enem deles) entrassem em cursos de elite. Tais alunos ou são excelentes nos esportes, ou fizeram grandes doações à instituição. O problema é o critério racial – que inclusive viola os direitos humanos.

Com Singer, não há direitos humanos. Uma instituição pode escolher violar os direitos humanos, que são individuais, em prol dos critérios mais arbitrários. Defender animais é só uma das suas maneiras de acabar com os direitos humanos. Notemos, por fim, que Singer lança a humanidade no arbítrio. Ele é quem sabe quais interesses são legítimos e quais não são.

Mais justificativas estropiadas

Singer diz que a universidade não poderia ter os valores da KKK e deixar os negros de fora, por causa dos interesses e tal. Não é justo discriminar alguém por ter menos QI. Mas é justo discriminar pela raça – como no caso das cotas –, desde que os interesses da universidade sejam éticos. É ético o interesse de dar vagas aos negros em testes que exigem QI alto; do mesmo jeito, é justo dar vagas de trabalhos e aumentos a mulheres, às quais falta agressividade. Caso nada disso seja feito, talvez viesse um colapso social, pois a ação afirmativa “atenua o sentimento de irremediável [sic] inferioridade que pode existir quando membros de uma raça ou de um sexo estão sempre em posição de inferioridade diante de membros de outra raça ou de outro sexo, e porque a extrema desigualdade entre as raças significa uma comunidade dividida, com a tensão racial consequente” (p. 59). Como um negro vai se sentir bem consigo mesmo se ele aprender que precisa de cotas para entrar? Para piorar, Singer diz que é preciso recompensar esforço em detrimento da inteligência, porque a inteligência seria inata (o que é uma meia verdade) e portanto depende de sorte. Seria ético premiar um burro esforçado. Mas ora, dar cotas fomenta justamente a falta de esforço, já que os militantes identitários – sejam negros, mulheres ou gays – muitas vezes se sentem no direito a ganhar as coisas em função de sua cor da pele ou sexo biológico. Ora, dá para aprimorar o próprio desempenho numa prova, mas não a própria “raça” ou o próprio sexo (no Brasil dá para pegar uma cor. Nos EUA, ou se é negro, ou não se é).

Desde pelo menos os anos 80 Sowell critica as ações afirmativas. Sowell é ignorado no livro. Singer faz um monte de afirmações que não prova – sendo a mais duvidosa, ao meu ver, a de que cotas raciais fazem bem à unidade nacional. Mas uma das objeções de Sowell é que as cotas raciais são ruins para os negros, que são transformados nos mais burros da turma. A presunção de que os negros sejam mais burros do que os brancos acaba se tornando verdadeira artificialmente. É assim: o SAT é um teste feito para medir o QI e admitir os alunos mais inteligentes. As universidades de elite selecionam por cota os negros que não teriam condições de entrar lá – por conseguinte, são os piores da turma. Estes estariam nivelados numa universidade boa que não é de elite. Em vez de eles entrarem aí, entram os negros que precisaram de cotas – e vão ser, outra vez, os mais burros da turma. Com as cotas raciais, o negro nunca é o melhor aluno da turma, a menos que seja o melhor aluno da melhor universidade de todas. Isso, sim, abala negativamente o moral do negro. E não custa frisar que essa visão do negro como social e academicamente inferior é provinciana; no Brasil imperial tivemos uma elite intelectual mulata.

Obsessão por QI

A obsessão por QI nos EUA é tamanha que pais ricos passaram a corromper as aplicações de provas. Os alunos poderiam entrar como doadores, mas os pais preferiam trapacear a expor a não-genialidade dos seus filhos. O escândalo motivou o filósofo progressista Michael Sandel a escrever A tirania do mérito, que resenhei aqui. De fato, por mais que discordemos de suas soluções, a crítica oferecida por ele é reveladora: os pais dos EUA criam filhos como potros de competição e eles vivem chapados com drogas lícitas ou ilícitas, cheios de doenças mentais.

Singer presume que as pessoas queiram muito dinheiro, que esse é o seu interesse a ser provido por instituições – que podem ter os interesses mais arbitrários e violadores dos direitos humanos. Mas um caso típico – do qual Sowell tratou à exaustão há décadas – é o das mulheres que passam a trabalhar menos, ou param de trabalhar, após a maternidade. A diferença entre os salários se explica, em grande medida, por isso: mulheres fazem menos trabalhos exigentes e bem remunerados porque querem cuidar dos filhos. Não se trata somente da agressividade necessária para negociar um aumento; trata-se do interesse muito sensato de cuidar dos filhos. Singer não tem o direito de dizer que conhece os interesses das mulheres. Ele está objetivamente errado ao reduzir tudo a salário.

Eles são também deterministas quanto ao QI. Os orientais têm um QI médio superior ao dos brancos. Ainda assim, a ciência moderna não surgiu na China, nem no Japão: surgiu entre os “burrinhos”. Por aí se vê a importância da cultura e dos valores.

Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, tem um QI colossal. Se a vida fosse tão simples quanto diz Singer, ele seria um bilionário, um grande cientista ou um grande filósofo. Mas ninguém perguntou a Roger se ele queria ser outra coisa que não um roqueiro. Se tivesse nascido nos EUA filho de pais ricos, talvez considerasse humilhante ser músico. Talvez enchesse a cara de remédio psiquiátrico e talvez fosse um acadêmico medíocre morto de overdose. Quem disse que QI é garantia de sucesso?

As pessoas são diferentes e têm projetos de vida diferentes. Um homem de inteligência mediana pode ser um porteiro, um pai de família e um bom amigo numa turma de amigos. Sua vida não é medida por um salário, e ele não tem por que olhar com rancor para o próprio médico pensando no salário dele.

A visão de Singer fomenta a guerra de todos contra todos. Assim, não há sociedade que dure.

Um adendo

Antes de Haddad introduzir o Enem, o Brasil tinha vestibulares “decoreba”. A ideia do Enem era qualquer pessoa inteligente e bem alfabetizada conseguir entrar. É o SAT e premia QI, portanto. Com o velho decoreba, exigia-se do aluno o conhecimento tradicional do local. Vestibulandos da Bahia estudavam história da Bahia e liam literatura afim ao estado. Nos demais estados do Brasil, idem. Com a substituição do vestibular pelo Enem, sagrou-se portanto a valorização do pensamento abstrato em detrimento da experiência. Sinal dos tempos.

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