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Quando, tardiamente, iniciei a minha vida intelectual jamais senti a tentação pelo isolamento no mundo das ideias. Não era do meu feitio enclausurar-me. Ao descobrir o gosto e o valor da leitura, fiz do novo hábito uma possibilidade de abrir janelas, não de fechar portas.

A partir do momento em que comecei a estudar filosofia, política, economia, o que eu não conseguia compreender – e até hoje, confesso, não consigo em sua plenitude – era a escolha daqueles que convertiam o mundo real numa ideia. Melhor dizendo: que tentavam enquadrar a vida num esquema teórico que julgavam o melhor em qualquer circunstância e não o melhor de acordo com as circunstâncias, como observou o filósofo político Michael Oakeshott ao definir o racionalismo na política e contrapor a política de fé à política de ceticismo.

Quero dizer com isso que, mesmo depois de haver descoberto o amor pelo conhecimento e iniciar a busca pela verdade, eu jamais dei as costas para o mundo tal qual existe para enquadrá-lo na visão dos autores que eu lia, ou na minha própria. Mais do que isso: nunca me afastei da realidade por considerá-la um estorvo, um obstáculo à criação de um mundo perfeito. Ser um intelectual de gabinete nunca foi um desejo, uma pretensão, um objetivo – pelo contrário.

Não acredito, portanto, que haja uma dicotomia entre o exercício do intelecto e vida concreta. São dimensões complementares que se potencializam. Essa, porém, não é a visão majoritária. Por hábito irrefletido, o senso comum está preso ao chavão “na teoria, a prática é outra” ou à sua variação “na prática, a teoria é outra”. A conclusão de ambas as expressões é uma só: são dois planos inconciliáveis por natureza.

Essa percepção tem origem. Baseia-se, em parte, na ignorância sobre o que é a vida intelectual e, em outra parte, na atitude daqueles que submergem na arrogância à medida que leem e acumulam certo conhecimento. Para certos intelectuais e membros da intelligentsia, as pessoas e a realidade que não se enquadram em seus esquemas mentais devem ser menosprezadas ou são um problema a ser resolvido.

Desde que iniciei a vida intelectual, decidi tentar melhorar quem eu era a partir do que eu aprendia, não desprezar a humanidade e realizar um autoexperimento de engenharia social para fazer de mim um homem novo.

Conversar com pessoas de realidades, formações, interesses e classes sociais distintas sempre fez parte da minha vida e, quanto mais eu lia, mais interessantes eram esses contatos. Desconheço método mais adequado para saber o que acontece e conhecer a sociedade onde se vive do que estar permanentemente interessado no diálogo com todos os que estão à nossa volta. É uma lição diuturna de humildade e de humanidade – uma posição conservadora, portanto.

Nos lugares onde trabalhei e residi, mantive conversas recorrentes com as pessoas que trabalhavam em funções muito diferentes da minha. Do pessoal da gráfica aos entregadores do jornal do interior onde iniciei a carreira de jornalista aos porteiros e funcionários da limpeza dos prédios onde morei, havia mútuo interesse no bate-papo.

Assim eu ficava sabendo o que eles pensavam acerca de assuntos distintos e, por extensão, tinha uma ideia – mesmo pálida – de qual era a opinião dominante nas comunidades onde viviam. Ao mesmo tempo, eu podia compartilhar com eles informações e reflexões.

Por essa razão, durante a paralisação da Polícia Militar no Espírito Santo em 2016, eu tinha acesso diário a informações privilegiadas sobre o que acontecia na periferia do município onde moro. E o resumo do drama era o seguinte: a violência que acometeu todos os capixabas por uma semana era – e continuou a ser – a rotina de quem vive nos bairros mais pobres e violentos da Grande Vitória.

Para o meu trabalho, esses contatos são extremamente benéficos. Quando vou ao barbeiro, quando visito amigos em comunidades, quando estou no táxi ou no Uber, quando estou na boleia de um caminhão, sempre puxo conversa e consigo perceber como e quais informações políticas, por exemplo, chegam às pessoas, e quais são as suas opiniões sobre os assuntos em voga e sobre os candidatos.

Na semana passada, na conversa com dois motoristas do Uber (no Espírito Santo e em Goiás), aprendi como cada um deles lidou com dificuldades profissionais e viu no aplicativo uma saída econômica. Os dois lamentaram a atual situação do país – estávamos de acordo –, mas lembrei-lhes que, até ontem, eles não teriam acesso a essa alternativa profissional porque o país, até o início da década de 1990, era muito fechado e mais pobre do que hoje.

Vendo os problemas atuais do Brasil a partir da perspectiva de como o país era no passado recente, ambos reconheceram que há aspectos positivos a serem considerados. É o primeiro passo – sugeri e eles concordaram – para sentir-se estimulado a melhorar e a ver a nossa nação com outros olhos: sem ignorar os seus problemas e desafios profundos nem usá-los como justificativas para a inação e eterna lamentação.

Um aspecto interessante dessa minha experiência de anos é constatar diuturnamente o quão interessadas as pessoas ficam – de motorista a vendedor de picolé, de atendente de loja a pedreiro – diante de informações, relatos, ideias, exemplos, autores, de percepções conjunturais a que elas nunca tiveram acesso.

Quando, por exemplo, eu falo da forma mais didática e simples possível de assuntos diferentes como correlações e causalidades econômicas e políticas; a história do nosso Império no século 19; de que maneira somos treinados a odiar o Brasil – o que nos impede de perceber quando e o quanto melhoramos –; todos ficam interessados e querem saber mais. As redes sociais têm permitido que eu faça isso numa escala muito mais ampla e que tenha contato com uma pluralidade fabulosa de realidades diversas.

Ao estar aberto ao diálogo com todos, consigo ter uma perspectiva distinta, porque positiva, sobre o povo brasileiro, grupo no qual me incluo, pois não associo o país aos políticos e aos governos que tivemos e temos. Já tive a minha fase de achar que “o brasileiro é sempre o outro”, uma entidade abstrata, coletiva, negativa. Graças a Deus, superei. Isso me fez ficar ainda mais interessado nas pessoas, na nossa culturam na nossa história, gatilho que foi acionado quando da pesquisa para o meu livro Pare de Acreditar no Governo.

Não sou ingênuo: sei que há uma parcela de brasileiros que nos envergonha pelo que pensa e pelo que faz. É ela a grande beneficiada pelo ódio que nutrimos contra o Brasil, pois essa parte da sociedade é elevada à natureza e à imagem pública do brasileiro médio. Ou seja, somos, eu e você, igualados ao que de pior temos.

Por isso mesmo é que, quando ouço ou leio que “o problema do Brasil é o brasileiro”, que “o Brasil não tem jeito”, recebo como um ataque contra mim e contra as pessoas corretas que eu conheço, não contra os infames a quem a crítica é dirigida. Se eu me colocar de fora – atitude bastante comum -, como assumirei a responsabilidade de ajudar a melhorar?

Se é verdade que os incentivos políticos e econômicos perversos nos condenam a sermos um país menor do que poderíamos ser, o desafio mais difícil a ser enfrentado e superado é individual: não nos deixarmos reduzir à dimensão espiritual, ética e moral do que há de mais rasteiro na cultura do país.

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