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Foto: Yousuf Karsh/Library and Archives Canada
Foto: Yousuf Karsh/Library and Archives Canada| Foto:

Um conservador não tem ilusões a respeito da democracia porque não idealiza a política nem os instrumentos que a materializam. Toda vez que se decreta uma crise democrática em razão de turbulências políticas e da fragilização de instrumentos institucionais de um país ou de uma região, e até mesmo da ascensão ao poder dos inimigos da liberdade, um conservador busca nesses movimentos de mudança ou de ruptura as origens que lhes deram causa, não para alimentar o mito da democracia como expressão perfeita de um modelo que sobreviveu aos testes do tempo, mas para perceber que mesmo o sistema mais adequado de ordem política até agora testado não é infalível.

Da mesma forma, o conservador tenta identificar se certas denúncias de ameaça à democracia são reais e legítimas ou se não passam de cortina de fumaça para atacar adversários em campanha ou para desestabilizar a atuação de políticos da direita. Tem sido assim, por exemplo, com Donald Trump e Jair Bolsonaro.

A frase mais célebre sobre democracia foi proferida há pouco mais de 70 anos. Num discurso proferido no dia 11 de novembro de 1947 na Câmara dos Comuns do parlamento britânico, Winston Churchill sentenciou: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Essa frase solta, porém, tem um sentido um tanto restrito do intento original do discurso. Na ocasião, Churchill era o líder da oposição do Partido Conservador ao governo do primeiro-ministro Clement Attlee, do Partido Trabalhista, e no parlamento se discutia uma proposta de lei que pretendia aumentar os poderes do governo de esquerda. Vendo naquilo um risco para as liberdades do povo britânico, Churchill reagiu com vigor e cunhou a frase que entraria para a história.

Desconhecido por quase todos que citam a frase, o discurso de Churchill é revelador da maneira como um conservador entende a função e os limites da democracia. Esses excertos são reveladores:

“Democracia não é uma convenção partidária na qual se conquista um mandato por tempo determinado mediante promessas e depois faz-se com o povo o que lhe convém. Consideramos que deve haver uma relação constante entre os governantes e o povo. O ‘governo do povo, pelo povo, para o povo’ ainda se mantém como a definição soberana de democracia.”

“Nenhum governo em tempos de paz jamais teve tamanho poder arbitrário sobre as vidas e ações do povo britânico, e nenhum governo jamais fracassou tanto em enfrentar diuturnamente as suas dificuldades práticas. No entanto, o honorável cavalheiro [o primeiro-ministro] e os seus colegas estão ávidos por mais poder. Nenhum outro governo jamais aliou desejo tão apaixonado pelo poder com uma impotência incurável ao exercê-lo. Toda a história deste país mostra um instinto britânico – e, creio poder afirmar, uma força de espírito – pela divisão de poder. A Constituição americana, com seus freios e contrapesos combinados com seus apelos frequentes ao povo, encarnou grande parte da antiga sabedoria desta ilha.”

“Naturalmente, deve haver em qualquer governo um Poder Executivo adequado, mas a nossa ideia britânica, inglesa num sentido especial, tem sido sempre um sistema de direitos equilibrados e de autoridade partilhada com muitos outros indivíduos e grupos organizados que devem ser respeitados da mesma forma que o são o governo de turno e os seus funcionários. Incorporada por muitas Constituições estrangeiras que, estando de fora do universo totalitário, seguiram o exemplo do nosso sistema parlamentarista, a sabedoria britânica nunca foi tão necessária em nosso país, que não tem uma Constituição escrita.”

“Toda essa ideia de um punhado de homens que toma conta da máquina do Estado, tendo a prerrogativa de forçar as pessoas a fazer o que convém ao seu partido, aos seus interesses pessoais ou às suas doutrinas, é completamente contrária a qualquer concepção da democracia ocidental remanescente. “

“Toda essa ideia de um grupo de super-homens e de superplanejadores ‘brincando de anjos’, tal como vimos antes, e achando que sabe o que é o melhor para as massas, sem qualquer freio ou correção, é uma violação da democracia.”

“Muitas formas de governo foram e serão tentadas neste mundo de pecados e de infortúnios. Ninguém acha que a democracia seja perfeita ou onisciente. De fato, diz-se que a democracia é a pior forma de governo com exceção de todas as outras que foram tentadas ao longo do tempo; mas existe o amplo sentimento em nosso país de que o povo deve governar, governar continuamente, e que a opinião pública, manifestada em todos os meios constitucionais, deve moldar, orientar e controlar as ações dos ministros, que são os seus servos, não os seus senhores.”

A democracia é, de fato, uma experiência em curso da vida política. Não é, pois, um instrumento exclusivamente de fins a garantir a realização de um dado objetivo, mas uma combinação de meios e finalidades que nem sempre podem ser conciliados ou até mesmo realizados, o que pode levar à frustração, a depender de como for visto. A constatação é incômoda: a democracia não pode garantir de forma absoluta nem a preservação da liberdade nem a submissão de políticos e servidores do Estado à sociedade que deveriam servir.

Se, por um lado, autores como Robert Dahl e Larry Diamond parecem ver a democracia como sinônimo de liberdade, como a melhor solução em qualquer circunstância e, portanto, como a realização daquilo que Michael Oakeshott definiu como racionalismo na política (A Política de Fé e a Política de Ceticismo), autores como Frank Karsten, Karel Beckman e Hans-Hermann Hoppe têm certeza de que o modelo jamais funcionará por ser inimigo da liberdade (Além da Democracia) e uma ideia “imoral e antieconômica” (Democracia: o deus que falhou)

Mas o fato é que desde a experiência democrática na Grécia Antiga, a democracia foi sendo transformada e adaptada aos desafios do momento histórico. Essa condição irreversível para desenvolver-se foi apontada por Alexis de Tocqueville em Democracia na América como parte da sua natureza. As mudanças realizadas ao longo da história foram, portanto, uma tentativa das sociedades de preservar a existência de um modelo que parecia melhor que as alternativas políticas disponíveis.

O fato de a democracia ter se convertido em valor político inegociável criou, assim, uma situação nova e dramática: ideologias políticas que utilizaram seus mecanismos para instituírem projetos que eram antidemocráticos e antiliberais. Das experiências na Rússia a partir de 1917 e na Alemanha a partir de 1933, desde o início do século 20 não são poucos os exemplos de democracias que foram corroídas ou destruídas com o uso de seus instrumentos formais e em nome de concepções excêntricas de “liberdade”. A Venezuela chavista é exemplo recente e infame desse fenômeno.

Se em 1843, para defender a ditadura do proletariado, Marx afirmou que “todas as formas de Estado têm a democracia como sua verdade e por esta razão elas são falsas, na medida em que não são a democracia” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel), em 1906 Lenin escreveu um artigo no jornal Proletário para delinear e explicar as tarefas democráticas do proletariado revolucionário. E em 1925, colocando-se como antagonista do marxismo, Adolf Hitler denunciou o uso instrumental da democracia pelos marxistas para neutralizar os seus adversários, alçar ao poder e destruir a própria democracia (Minha Luta).

As posições de Marx, Lenin e Hitler mostram o desapreço que eles nutriam pela liberdade, mas tudo feito em nome de concepções próprias de democracia. O mesmo aconteceu com outros inimigos da liberdade com grande influência na intelectualidade, intelligentsia e na política, como mostra Isaiah Berlin em seu livro Rousseau e os outros cinco inimigos da liberdade.

Ao ter conhecimento do que é a democracia, de seus elementos, pontos fortes e fracos, um conservador tem condições de defendê-la ou de criticá-la com base na ideia do melhor dadas as circunstâncias, posição que Oakeshott identifica com a política de ceticismo. Porque sabe que a democracia está vinculada às instituições políticas existentes, o conservadorismo entende a governação como uma atividade limitada, imperfeita, de poder político restrito, como um projeto concreto (não abstrato) que não se fundamenta nem busca da perfeição humana nem pretende ser “minuciosa, inquisitiva e inclemente”, tal como é a política de fé.

Ao não alimentar demasiada expectativa sobre o funcionamento da democracia, o conservador colabora para aprimorá-la de acordo com as circunstâncias e os desafios que se impõem, além de controlar a atividade de governação contra qualquer tentativa de torná-la interminável. Isto considerado, a frase de Churchill ganha novo significado: nem tão celebradora nem tão arrasadora. Dada a nossa história de intervencionismo estatal, de institucionalização da política de fé por sucessivos governos, trata-se de lição a ser aprendida, internalizada e praticada por todo e qualquer conservador brasileiro.

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