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Antonio Cruz/Agência Brasil
Antonio Cruz/Agência Brasil| Foto:

Temos em mãos uma crise anunciada. Era bastante evidente que, eleito Bolsonaro, fosse haver algum tipo de comemoração do 31 de março de 1964. Surpreendente, na verdade, é que elas sejam restritas aos quartéis, sem paradas em grandes avenidas e todo o carnaval cívico que a sociedade brasileira sabe preparar. Afinal, o atual presidente fez a sua carreira política baseada no apoio aos governos militares que se sucederam ao levante de 1964, com direito a fotografias dos seus atuais antecessores nas paredes do seu gabinete de deputado, voto em homenagem a Ustra quando do impeachment de Dilma, e o que mais pudesse lhe valer para colocar-se como o anticomunista por antonomásia. Seria, assim, perfeitamente natural se ele fizesse uma forte comemoração nas ruas das cidades, ou mesmo que decretasse um dia de feriado se não fosse num domingo o aniversário este ano.

Isso soa estranho, estranhíssimo, quando só se tem diante dos olhos o discurso único da mídia, que durante os desgovernos esquerdistas que assolaram o Brasil pelas duas últimas décadas fez-se o único discurso aceito em qualquer meio de divulgação pública. Os que perderam em 1964 ganharam na difusão de sua versão. Já há uma geração que foi educada aprendendo apenas sobre os “anos de chumbo”, nas novelas, jornais e onde mais houvesse espaço para divulgá-la. Terroristas assassinos, como a gangue de nossa ex-presidente, conseguiram arvorar-se em supostos defensores da democracia, sem deixar claro que a “democracia” que defendiam era na verdade mero codinome para a famigerada Ditadura do Proletariado, que mais de cem milhões de vítimas causou ao longo do século passado.

Já Bolsonaro chegou a defender que não houve ditadura. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Talvez ele pudesse mesmo dizer, com o ditador chileno Pinochet (que ele aliás elogiou publicamente, causando reações na esquerda daquele país em sua recente visita), que tivemos aqui uma “ditabranda”. Não sei. O que sei é que entre os governos militares brasileiros e seus correspondentes pelo resto da nossa sofrida América Latina, havia uma diferença monumental. Paisecos minúsculos sofreram dezenas de milhares de baixas entre os adversários dos governos militares, por vezes até mesmo jogados de aviões ou helicópteros, ou outras formas refinadamente cruéis de assassinato. A forma especialmente macabra e cruenta como foi assassinado o cantor e violonista Victor Jara, no Chile, por representantes do Estado, poderia entrar para qualquer História da Infâmia que um novo Borges se dispusesse a escrever. Até hoje desenterram-se cadáveres de chacinas centro-americanas, perpetradas a soldo do Estado.

Já o nosso país, de dimensões continentais, teve algumas centenas de mortos – em sua imensa maioria gente armada e perigosa –, às quais se somam, por justiça, cento e tantos trabalhadores assassinados pelos movimentos terroristas de extrema-esquerda. É a nossa cultura, que não aceita como a espanhola (e as suas descendentes) o confronto aberto, que fez com que fosse assim. Enquanto os hispanófonos latino-americanos batiam de frente, como toureiros e touros, até a morte de um – ou de dezenas de milhares –, os lusófonos brasileiros arranjávamos esquemas extremamente generosos para livrar-se dos que não trocavam tiros com a polícia, dando, por exemplo, a FHC o direito de aposentar-se da USP antes de ir para o régio exílio em Paris.

Mas de onde veio isso, de onde veio este confronto, que não aconteceu apenas no Brasil, tendo, ao contrário, nele a sua forma mais branda? Trata-se de um fruto da Guerra Fria, de uma das inúmeras guerrinhas por procuração entre os Estados Unidos e a hoje felizmente finada União Soviética. Jânio, o louco, havia sido eleito presidente. Querendo mais poderes, tentou uma jogada algo arriscada, em que renunciou, convencido de que voltaria nos braços do povo. Não voltou. Quem tomou seu lugar, após várias idas e vindas, foi seu rival e vice, João Goulart, que imediatamente alinhou-se ao eixo soviético (com que Jânio já havia flertado ao condecorar Che Guevara). Com o apoio da extrema-esquerda, passou a pregar o ódio de classes, a reforma agrária confiscatória, e outras medidas que pareciam indicar que o país estaria no rumo de tornar-se nova Cuba. Cabe lembrar que a revolução cubana não ocorrera tanto tempo atrás; Havana ainda não parecia ter sido bombardeada. Talvez até existissem ainda cubanos gordos sem fazer parte do Partido.

A população brasileira, notadamente a classe média, levantou-se 55 anos atrás como o fez nos últimos anos. Só faltaram as camisetas da CBF. Multidões enormes, que em termos de percentual da população jamais foram alcançadas, desceram às ruas pedindo às Forças Armadas que depusessem aquele louco. O cineasta e escritor Arnaldo Jabor conta que, voltando excitado de um comício da extrema-esquerda em que Jango prometera a revolução para o dia seguinte, arrepiou-se ao perceber que em todas, virtualmente todas as janelas dos apartamentos que via da janela do ônibus estava a vela acesa solitária que identificava os simpatizantes das “Marchas com Deus pela Liberdade”, anticomunistas. Deve ter sido mais ou menos o horror que acometeu os esquerdistas deste nosso século ao ver as ruas das cidades tomadas de camisetas amarelas.

E veio o que, dependendo de quem conta a história, pode ser dito “o golpe de 64”, “a revolução redentora” ou “o contragolpe”. Inclino-me por este último, na medida em que Jango, alçado ao poder indiretamente e sem respaldo popular, planejava instaurar uma ditadura de esquerda. Ou não; talvez ele fosse apenas fraco e incompetente, e não fosse conseguir instaurar nada mais que o caos. Mas como saber? A História andou. Não adianta pensar o que teria ocorrido se algo houvesse sido diferente. Se Jango houvesse conseguido fazer suas “reformas de base”. Se os militares não houvessem intervindo. Se as eleições houvessem meramente sido adiantadas. Não se sabe. O que se sabe é que o Congresso Nacional, inclusive a esquerda moderada que o compunha, acatou a intervenção militar e depôs formalmente Jango, instalando em seu lugar um general.

A ideia era simplesmente arrumar um pouco a confusão e fazer novas eleições presidenciais. Vê-se, na capa da Revista Manchete (uma revista composta basicamente de fotografias com legendas, popularíssima à época) alusiva à data, Carlos Lacerda, o governador direitista do atual Rio de Janeiro, com um sorriso que se fosse maior saltar-lhe-iam da boca os dentes. Ele pensava que seria o próximo presidente, que poderia concorrer em eleições livres pouco tempo depois, sendo eleito por aquelas mesmas multidões que foram às ruas pedindo o fim do desgoverno janguista. Mas não. E aqui entramos em outra fieira de “Ses”: e se essa eleição tivesse ocorrido, como teria sido a História? E se Lacerda tivesse sido eleito? E se ele concorresse contra Jango ou Brizola, como teria sido? Nunca saberemos. Se porcos tivessem asas, eles voariam; não vale a pena pensar em “Ses”. O que vale notar é que o recrudescimento do confronto entre esquerda pró-soviética e direita pró-americana só fez aumentar, com a extrema-esquerda tomando em armas e lançando-se ao terrorismo, aos assaltos a banco, aos sequestros. E, no quadro deste recrudescimento, quatro anos depois de tomarem o governo – quatro anos depois de 1964, quatro anos depois da data que Bolsonaro quer comemorar – os militares tomaram o poder, com o Ato Institucional Número Cinco. Só o foram largar duas décadas depois. Estes anos, após o AI-5, é que foram os anos da verdadeira ditadura (ou, repito, comparada às que assolaram Argentina, Chile, etc., “ditabranda”).

Assim, não se pode, em justiça, comparar o 31 de março de 1964 com a situação que veio a acontecer depois. Primeiro, em 1964, houve uma resposta militar a um clamor popular. Depois, em 1968, houve a instauração de uma ditadura fechada, em resposta a uma situação estratégica de inimigos armados internos. Entre um e outro, tendo lá suas razões, os militares não organizaram as eleições que deveriam ter acontecido. O AI-5 foi um fruto do movimento de 1964? De certa forma, foi. Mas desta mesma forma, o 31 de março foi o fruto do desgoverno janguista, e o AI-5 do crescimento do terrorismo e da guerrilha foquista. O que tivemos ali foi uma situação cruel, em que, como me observou certa feita meu avô – o autor da Lei de Anistia (ampla, geral e irrestrita) que possibilitou a volta dos esquerdistas exilados, inclusive os culpados por crimes de sangue –, “brasileiro lançou-se contra brasileiro”. Uma tragédia, em que simplesmente participamos de outra tragédia a nível global, que foi a Guerra Fria e a rivalidade EUA-URSS.

A nossa cultura, felizmente, impediu que houvesse aqui algo semelhante à horrenda Guerra Civil Espanhola, em que igualmente os compatriotas voaram aos pescoços uns dos outros, resultando em um morticínio que serviu de prévia da Segunda Guerra Mundial. Aqui aposentamos os subversivos antes de enxotá-los. E os mandamos para Paris, não para o fundo do mar. Felizmente.

A grita da extrema-esquerda (incluindo aí a “extrema-imprensa”) contra as comemorações do 31 de março é outro ressurgimento desta mentalidade de guerra, desta mentalidade partidária, como se tivéssemos ainda a União Soviética e os Estados Unidos às vésperas de trocar bombas atômicas. A data de 31 de março de 1964 foi uma derrota política para a esquerda, e isto para eles já é algo a chorar, espernear e gritar. Basta ver como tratam hoje o impeachment de Dilma. Tudo é “golpe”, mesmo quando ocorre literalmente, como nos dois casos, a pedidos da população. Mas as torturas, os “desaparecimentos”, o terrorismo, os sequestros, as bombas, toda a parte realmente trágica daquele período da nossa História não veio diretamente do 31 de março mais que teria vindo do Comício da Central de Jango. Seria, realmente, péssima ideia comemorar o AI-5, ainda que se possa perfeitamente defender que tenha sido necessário no momento, dado o perigo da guerrilha comunista, apoiada e financiada do estrangeiro. Mas foi uma tragédia. O 31 de março não. Não houve mortes então. Não houve tortura, não houve bombas em aeroportos ou em portas de quartéis. Isso tudo veio depois. O 31 de março foi uma tentativa de – para usar uma palavra da moda – “livramento”, que infelizmente gorou. Pode ser comemorado, pode ser lamentado, mas certamente não faz sentido algum tratá-lo como a esquerda o trata, como se naquele momento – e não no AI-5 – se houvessem aberto as portas do inferno. Não; elas já estavam abertas, e continuaram ainda por muito tempo. Hoje dele ardem brasinhas na Coreia do Norte e em Cuba, com uma ou outra oculta na Nicarágua ou soltando fétida fumaça na Venezuela. Mas, felizmente, o inferno do Século 20 e de seus confrontos sanguinários entre ideologias ficou decididamente para trás. A História agora, como disse o “subversivo Marques”, só se repete como farsa.

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