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A divisão dos sexos e o serviço doméstico
| Foto: BigStock

Segundo Umberto Eco, a internet deu voz aos idiotas. Além deles, claro, que são legião, ela também a deu a gente que simplesmente tem opiniões, digamos, um pouco fortes.

É o caso, por exemplo, duma dessas periódicas confusões internéticas, em que um conceituado psiquiatra das multidões afirmou, com todas as letras, que um homem que faça serviços domésticos estará abdicando de sua masculinidade, chegando ao ponto de afirmar que numa dupla do mesmo sexo competiria ao passivo fazê-las. Duplas do mesmo sexo não são algo que eu conheça bem, muito menos sua vida sexual, que prefiro nem tentar imaginar; neste tópico em particular, destarte, eu não tenho como ter opinião.

Posso, todavia, falar de casais. Aliás, como estou escrevendo um livro a respeito e, por conta dele, venho estudando todo tipo de material sobre diferenciação sexual, da biologia à teologia moral, passando pela psicologia evolucionista e outros temas menos votados na mesma área, torna-se difícil para mim não falar de casais. É aquela história: para quem tem um martelo, todo problema tem cara de prego. Quem está escrevendo um livro sobre algo tende a remeter ao seu objeto de estudo tudo que esteja remotamente ligado a ele.

Qual seria, portanto, a relação entre masculinidade, feminilidade e serviços domésticos?

Há quem diga que toda diferenciação sexual é cultural, mas não creio que seja possível hoje em dia manter esta opinião, dada a vasta quantidade de estudos que comprovam, inclusive, que vários aspectos da divisão das tarefas domésticas e extradomésticas não apenas são comuns a todos os povos, mas também ocorrem de maneira praticamente idêntica em muitos animais, sobretudo os grandes primatas (que, mal que bem, geneticamente falando são-nos extremamente assemelhados).

O ser humano tem duas formas, distintas em quase tudo: a masculina e a feminina. Antes de qualquer outro dado ontológico – deficiências físicas ou mentais, aspectos fenotípicos, o que for – somos primeiro seres humanos e depois homens ou mulheres. Daí vem, inclusive, o absurdo de base da ideologia de gênero e o salto seguinte, dado imediatamente por gente atrás de atenção, de se declarar “trans-espécie” – gato e não gente, essas maluquices.

Afinal, quem nega que masculino e feminino sejam realidades objetivas não precisa de muito para negar que ser ou não humano também seria subjetivo. O mais engraçado, claro, é que só o ser humano é capaz de diferenciar o objetivo do subjetivo, o que faz de quem nega a própria humanidade em teoria alguém que a afirma na prática.

Bom, então, no duro campo da realidade, o que encontramos quando vamos ver a divisão de tarefas domésticas num casal? E, mais ainda, o quanto desta divisão é cultural e o quanto tem base biológica objetiva?

Para examinar a realidade prática da divisão de tarefas, creio que uma boa medida inicial para ver o que importa para um e para outro consiste na apreciação da diferença prática que ocorre quando um não tem o outro. Em primeiro lugar, logo, a diferença entre a casa dum solteirão e a casa duma solteirona que vivam sozinhos, sem criadagem. Sem que tenham um parceiro com quem dividir tarefas, cada um deles vai fazer apenas o que acha necessário e tudo o que acha necessário.

Salta aos olhos que a casa duma solteirona costuma ser um lugar impecavelmente limpo, em comparação com a casa dum solteirão. Além disso, ela costuma ser um lugar muito arrumado, com detalhes por toda parte, sendo vários deles do tipo de demanda cuidados, como aquelas coisinhas de crochê por cima dos móveis, que acrescentam o trabalho de lavá-las periodicamente aos demais trabalhos domésticos.

Por outro lado, a casa dum solteirão – ou, melhor dizendo, sua “toca de homem” –, que aos olhos da solteirona é uma bagunça imunda, um chiqueiro, entre outras expressões delicadas e amorosas, normalmente há de ter enorme quantidade de soluções que o dono acha engenhosas, tendo por objetivo diminuir o trabalho. Um copo d’água que fica junto ao filtro e que nunca é lavado é um clássico exemplo disto.

No caso de uma “solteirice” transitória, ou da transição de uma situação de casado a uma situação de solteiro, o homem também nos dá algumas dicas de o que é natural nele e o que não é. É comum a piada, por exemplo, do pai recém-divorciado que nos primeiros dias prepara-se e aos filhos um lauto café da manhã, com frutas, sucos e tudo o mais, como se estivesse num hotel cinco estrelas, para em menos de uma semana reduzi-lo a café com leite e pão com manteiga e, após menos de um mês, simplesmente catar uma fatia de pão e sair a roê-la pela casa.

Estes elementos já nos dão uma base sólida sobre a qual podemos perceber o que é inato a um e ao outro sexo. A primeira coisa evidente é a superioridade da mulher no tocante ao trabalho repetitivo: o homem pode até começar bem, mas dificilmente terá a paciência e o cuidado feminino de continuar anos a fio fazendo sempre a mesma coisa na mesma hora, de domingo a domingo, doze meses por ano. Ora, por definição o trabalho doméstico é repetitivo. Até mesmo a comida, no nosso país, costuma ser sempre basicamente a mesma todos os dias.

É interessante observar, neste quesito, que um homem sozinho tende a variar muitíssimo mais a comida que uma mulher sozinha. Ou bem ele varia ou bem ele cai numa dieta de miojo, sem meio-termo. Fazer todos os dias o mesmo trivial básico, variando apenas na carne, é coisa rara entre os homens.

Os demais trabalhos repetitivos que compõem a lida doméstica, de modo geral, também são muito mais bem-feitos pelas mulheres que pelos homens. É comum que uma mulher sozinha faça a cama todos os dias, abra as janelas de manhã e as feche à tarde, racionalize e cumpra eternamente um certo procedimento de faxina, e por aí vai.

Já o homem raramente faz estas coisas, deixando, por exemplo, para fazer uma faxina geral quando a sujeira está tamanha que incomoda até a ele. É claro que ela incomodaria uma mulher muito antes. Eu mesmo já tive algumas experiências neste sentido, ao contratar uma senhora para manter a casa limpa durante viagens mais longas de minha esposa e ficar perfeitamente satisfeito com o trabalho dela, apenas para que, na volta de minha esposa ao lar, o trabalho da pobre senhora fosse considerado péssimo e a casa imunda.

Daí se pode perceber duas coisas. A primeira é que, como digo sempre, a mulher é o agente civilizatório por excelência. É a mulher, e só a mulher, que tem a capacidade de fazer de uma casa um lar. O homem, sem presença feminina, pode fazer um quartel, um mosteiro, uma república, uma máquina de morar ou um pardieiro, mas jamais fará do imóvel um lar. Um lar demanda um tipo de organização e manutenção constantes feitas pela mulher movida puramente por amor ao lar, ao ambiente em que vivem os que ela ama.

Destas tarefas o homem até pode participar por obrigação (como nos três primeiros tipos de morada masculina que citei acima), procurando sempre diminuir o labor envolvido (a “máquina de morar”), ou simplesmente desistindo por não achar que o esforço compensa – criando assim um pardieiro que o deixa levemente insatisfeito, mas não o bastante para organizar e manter a casa regularmente; no máximo ele fará uma faxina geral a cada tantos meses. Fazê-lo por amor ao ambiente acolhedor (ou, antes, fazer por amor um ambiente acolhedor e amá-lo por o ser), por amor àquele “útero” onde se nutre, vive, cresce e descansa a família, é algo exclusivamente da índole feminina.

A segunda coisa evidente é que só a mulher, que é movida pelo amor, pode organizar algo que contente a ambos. O homem contenta-se com um nível de organização e limpeza enormemente inferior ao mínimo tolerado pelo sexo oposto, o que faz com que sua satisfação não possa ser usada como parâmetro para algo que deve deixam ambos confortáveis.

Note-se, todavia, que há uma enorme diferença entre organizar e manter: não é necessário que quem faz aquele faça este, ainda que para ela seja mais fácil que para ele também o trabalho de manutenção, por ela prezar o resultado final mais que ele. Em outras palavras, trata-se de frescura, para o homem, a maior parte das tarefas de manutenção segundo o organizado por uma mente feminina em busca de um lar bem-cuidado o bastante para agradar a uma mulher. Para ele são tarefas inglórias e sem compensação, enquanto para elas o resultado faz valer o esforço.

Isto faz com que haja sempre uma certa tensão acerca da faina doméstica. Para que a tensão se dissipe, há duas soluções evidentes, nenhuma delas perfeitamente boa. A primeira, e mais evidente, consiste em a mulher fazer tudo, deixando a casa “do jeito dela”, com o homem tendo apenas a obrigação de levantar os pés para que a mulher passe a vassoura perto de sua poltrona.

A segunda é a submissão do homem à mulher no tocante aos serviços domésticos, fazendo com que ele participe de todo um labor que, no âmago de seu ser, ele considera exagerado e no fundo inútil. Além deste detalhe, há ainda a chance de a mulher perder o respeito pelo cônjuge, justamente por ele se colocar como seu subordinado e com isso abdicar dum poder que, no fundo, era o que o tornava atraente para ela.

As soluções deste dilema são várias. A mais tradicional na sociedade brasileira é que a mulher terceirize para outra mulher parte do trabalho, para que possa fazer algo além do que é demandado pela casa e pelos filhos. Evidentemente, com isso outra mulher – a empregada – estará posta na mesma situação, tendo que terceirizar de alguma forma o cuidado dos filhos e talvez mesmo da própria casa; é uma forma de apenas passar o problema adiante.

Outra solução, todavia, consiste em que o homem dê à mulher a ajuda que lhe for possível, por amor a ela (não, como ela tem, amor ao lar). Isto pode variar, de acordo com inúmeros fatores. Dentre eles o mais importante seria, diria eu, o nível de exaustão com que ele chega do trabalho. Não adianta comparar uma mulher que trabalha fora e depois, ao chegar exausta em casa, vê-se ainda forçada ao trabalho doméstico, na medida em que para ela o trabalho doméstico compensa, enquanto para o homem, via de regra, não.

Algumas coisas, no sentido de diminuição do trabalho doméstico pela parte do homem, são questão antes de polidez e gentileza básicas que de participação propriamente dita. Coisas como limpar o que sujou, fechar o que abriu, pendurar a toalha que usou, deixar no cesto a roupa suja, etc., são elementares e quem não as faz apenas comprova ser um moleque mimado, não um homem adulto. Mas além disso há outras tarefas, principalmente as que demandam força, como levar o lixo pra fora e as compras pra dentro ou trocar o botijão de gás, que são obrigações masculinas.

Avançando mais, é possível e aconselhável que as tarefas que não demandam repetição constante, e por isso são mais apropriadas ao modo de agir do homem, sejam de sua responsabilidade. Cozinhar aos domingos, por exemplo, é algo que pode perfeitamente ser tarefa masculina quando é a mulher que cozinha nos outros dias; para ele, por não ser algo tão repetitivo quanto fazê-lo todos os dias, pode ser uma tarefa agradável em vários aspectos. Além do prazer de fazer boa comida, ele arrancará da esposa um sorriso (e o homem tem por combustível o sorriso feminino), a deixará descansar de uma das tarefas que ele percebe como autoimpostas, mas que mesmo assim ela percebe como necessárias, e por aí vai.

Outros pequenos atos, sempre movidos pelo amor à mulher, como preparar o café da manhã e lavar-lhe a louça, participar da faxina geral semanal fazendo algo que para ele seja mais fácil, como limpar o teto, e quaisquer outras tarefas que não sejam tão repetitivas, podem e devem, do mesmo modo, competir ao homem.

O importante, todavia, é ter consciência das diferenças entre os sexos no tocante ao que importa ou não, ao nível de exigência em relação aos serviços domésticos e das limitações de cada um dos sexos. Percebendo isso, a mulher terá menos dificuldade em lidar com este ser tão bobo que ela tem em seu poder, deixando-o sempre manter a ilusão de superioridade e sentir-se um cavalheiro, sempre movido pelo seu amor. Do mesmo modo, o homem que tenha em mente o que escrevi acima pode passar a dar o valor devido ao que é feito por sua esposa, facilitando tremendamente a comunicação do casal.

Assim, de volta às afirmações do psiquiatra das estrelas, será que o trabalho doméstico “aviadaria” o homem?

A resposta só pode ser positiva nos raros casos em que ao fazê-lo o homem se coloque numa posição de subordinação aberta à esposa, que fatalmente acabaria não só por migrar para outras áreas da relação como inexoravelmente faria com que ela perdesse o respeito pelo marido. Mulher nenhuma gosta de um homem submisso, por mais que ela pareça querer isto. Faz parte de uma saudável relação de casal que tanto o homem respeite a esposa e seu trabalho, quanto que ela perceba o marido como seu protetor e como alguém forte, capaz e, de uma certa maneira, independente.

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