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Abstinência e natureza humana
| Foto: Marcelo Lima/Free Images

Para variar, foi ensurdecedor o rasgar das vestes da extrema-esquerda ao saber da mera proposta de campanhas governamentais propondo a abstinência sexual. Uns a tratam como se ela fosse impossível – o que, convenhamos, é algo que só pode vir da cabeça de pessoas excepcionalmente belas fisicamente, bastante jovens, e que só frequentem lugares em que todo mundo está atrás da mesma coisa, e isso sem jamais notar como é a vida dos demais. Afinal, mesmo na nossa sociedade, cuja mídia parece tentar vender o orgasmo como uma necessidade fisiológica semelhante à respiração, hidratação ou alimentação, tanto os casais casados há já alguns anos e com filhos pequenos quanto as pessoas mais feiosinhas em geral e a gente que não frequenta esses tipos de bas-fond normalmente vivem a abstinência sem fazer disso uma bandeira.

No não-tão-vasto-assim campo de respostas negativas à ótima ideia da ministra da Família, há ainda os que – com pelo menos a ponta de um pezinho no chão – não consideram a abstinência impossível; só a consideram (ou considerariam, se parassem para pensar sobre as premissas ocultas do que pensam e dizem) má em si. A virgindade, a abstinência, tudo isso seriam doenças para as quais a cura seria o orgasmo. Reich ia pirar com esse discurso; será que dá pra comprar caixas de orgões no Mercado Livre? Não sei, e tenho medo de procurar. Mas então, para esse pessoal, é mais importante lutar contra a “gordofobia”, talvez criminalizando a ausência de uma ereção diante de uma beldade de 140 quilos com o rosto coberto de tatuagens, as axilas com trancinhas azuis e metade da cabeça raspada (a outra metade é rosa, pra combinar com as axilas). Afinal, o orgasmo é um direito, talvez mesmo a ser demandado em passeatas, projetos de lei e outras formas de, na cabecinha lá deles, fazer a realidade das coisas se dobrar à sua vontade.

Mas o fato é que na estranha moral desse pessoal – sejam os bonitinhos do outro parágrafo, sejam os feiosinhos deste –, O-or-gas-mo! U-ni-do! Ja-mais se-rá ven-ci-do! O orgasmo (não que ele seja assim tão garantido em toda relação sexual, mormente para o belo sexo, mas não entremos em detalhes) para eles é um bem (talvez O Bem), e a abstinência é um mal. Por isso, eles respondem à proposta da ministra com o mesmo horror com que a população em geral responderia a uma proposta de, sei lá, botar baratas raladas na merenda escolar ou substituir o serviço militar dos rapazes do interior por um estágio como drag queen. É uma moral, uma ética. Completamente às avessas e antinatural (o que faz com que não mereça foros de igualdade com as verdadeiras; delírio não põe mesa, ainda que a beleza por vezes dê casa, comida e roupa lavada), mas é um sisteminha lá deles. Como bem disse Chesterton, o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Dentro da loucura, do mundo arbitrário e artificial em que mentalmente se locomove esse pessoal, há todo um sistema lógico em si mesmo, como as regras de um jogo de RPG, mas ainda mais afastado da realidade. O mundo deles é uma espécie de videogame, em que os pontos são ganhos ao conquistar coisas que para o normal das pessoas são meios, não fins, e o sexo é uma delas. Para esse pessoal, vale ponto ter muitas relações sexuais com a maior quantidade de pessoas possível, e se elas forem de todos os 613 gêneros diferentes, melhor ainda. Também vale ponto ser vegano, gostar daquela banda que ninguém mais ouviu, essas coisas. Mas isso do sexo é fundamental na visão de mundo, mesmo que – e é este o ponto crucial – a imensa maioria deles não faça nem um décimo do sexo que apregoam ser o mínimo necessário. Menos mal para eles, aliás, por razões que veremos a seguir.

Para algumas pessoas, vale ponto ter muitas relações sexuais com a maior quantidade de pessoas possível, e se elas forem de todos os 613 gêneros diferentes, melhor ainda

Quando digo que o sisteminha errepegístico deles é antinatural, não me refiro àquilo que eles creem ser o sentido do termo “antinatural”, num engano comum que faz com que imediatamente respondam apontando que há bichos promíscuos aos magotes. “Natural” não significa “existente em algum lugar da natureza criada”. Bom, isso pode até ser um uso da mesma palavra, porém com outro sentido tremendamente diferente, ao tratar de coisas como tipos de acidentes. Um raio seria natural, uma batida de carro não, e por aí vai. Confundir os termos, porém, é como achar que se está falando de frutas quando nos referimos a mangas de camisa.

Ao tratar de ética na tradição aristotélica comum à sociedade ocidental, “natural” é aquilo que conduz ao pleno desenvolvimento do indivíduo daquela natureza. Refere-se à natureza humana, que é diversa da felina, da equina, da dos ratos, baratas e alienígenas de Alfa do Centauro. Assim, o que é natural para um homem (termo que engloba ambos os sexos, evidentemente) não o é para um peixe, cachorro ou pé de alface, e vice-versa. Não seria jamais natural para um homem, por exemplo, não estudar, não aprender a ler, a cantar e a tocar um instrumento musical. Ao contrário, até: por ser o homem num animal criativo, racional e social, por isto tudo fazer parte de sua natureza, cada pessoa tem direito pleno à soma total daquilo que foi desenvolvido por seus ancestrais. Afinal, ao contrário dum joão-de-barro, por exemplo, cada casa humana é diferente da outra, e seu construtor tem direito natural àquilo que outros construtores antes dele fizeram. Daí minha tristeza ao ver a arquitetura moderna. Mas divago.

A natureza humana engloba e orienta, evidentemente, todas as atividades próprias ao homem. Assim, é natural para o homem (mas não para o lobo ou para a barata) preparar deliciosos pratos para o jantar. É natural para o homem casar-se, unindo-se a pessoa do sexo complementar (e oposto!) para ter filhos e criá-los. Há bichos que, como o homem, o fazem. Mas eles o fazem puramente por instinto, enquanto o homem precisa, em tudo, dar voz à razão. E é a razão que indica que a ministra tem alguma razão. Vejamo-la, pois.

A primeira coisa a perceber é para que serve o sexo, pois tudo o que faz parte da nossa natureza tem algum fim (ou fins; mas sempre com o fim último do desenvolvimento de todo o potencial daquele ser humano). O primeiro fim do sexo é evidente: é o fim reprodutivo. Quando um homem e uma mulher têm relações sexuais, em termos biológicos, estão tentando gerar uma criança. Ponto. Exatamente como quem come está tentando se nutrir ou como a planta que floresce quer se reproduzir. Não importa se um deles, ou mesmo ambos, usa (ou antes abusa de) dispositivos vários para tentar impedir a geração ou mesmo o avanço da gestação. Estes dispositivos são muitos: do veneno (hormônios usados em pílulas contraceptivas para impedir a nidação ou a fecundação, que são hoje tomados em tão grande quantidade que a urina das mulheres está provocando problemas hormonais nos peixes dos rios!) aos dispositivos físicos, como a dita camisinha (basicamente uma capa de chuva para o pênis, isolando emocional e fisicamente o homem e a mulher, como se estivessem vestidos de astronautas) ou mesmo o DIU (um pedaço de metal, frequentemente envenenado, preso ao interior do útero para matar os bebês que sobrevenham). Não importa, repito, porque é este o fim do ato, e a natureza dá um jeito. Qualquer um destes “métodos” tem uma taxa de falha relativamente grande (a da camisinha, por exemplo, é de uma em três, no sentido de que três transas com camisinha equivalem a uma sem), exatamente por estarem tentando fazer algo que é contrário à natureza humana, algo que tenta segurar o que todo o organismo humano, do homem e da mulher, tenta fazer acontecer, mesmo que contra a vontade expressa do casal.

O outro fim da relação sexual é aumentar a unidade do casal. Em outros termos, sexo gera carinho, gera amor, gera dependência emocional e psicológica um do outro. É o dito fim unitivo, que se soma ao procriativo. Ora, este, então, é um pesadelo ainda maior para o pessoal da pseudoética de RPG, pela razão simples de que não existe camisinha que revista o coração. Ter relações sexuais é chamar o amor, chamar o afeto, e regar essa plantinha. Pudera que haja a expressão tão verdadeira e tão literal “fazer amor”. Veremos que isto tem razões de ser, mas no caso do pessoal para o qual o orgasmo é um bem em si, a ser buscado como fim e não como meio, trata-se de um problema sério. Afinal, na prática isso significa que a meninada com os hormônios em fúria vai, necessariamente, ao entregar-se a pessoa do sexo complementar, unir-se a ela e aumentar esta união tanto mais quanto mais relações se tenham. Ora, mas é justamente esta união que é evitada pelos pseudoéticos, na medida em que ela, evidentemente, é incompatível com a promiscuidade sexual que se tem por objetivo “moral”. O próprio nome real desta união é-lhes tabu, como no Admirável Mundo Novo: matrimônio.

Pois o matrimônio é da natureza humana. E as finalidades do sexo têm seu lugar nele, e só nele. Quando um casal se casa, quando cada um abandona a casa de seus pais e se une ao outro, formando uma só carne, numa nova família nuclear, é que o sexo tem seu lugar. Não por isso ser “um dogma” ou qualquer besteira do gênero, mas pela própria natureza humana. É para isso que o sexo tem essas duas funções tão claras. Um casal que não se conhece naquele momento como se conhecerá no futuro, ao adentrar sua nova casa, terá inevitavelmente milhares de pequenos conflitos, que podem ir de hábitos pessoais (o clássico marido que deixa a toalha molhada em cima da cama e a clássica esposa que tira as toalhas pra lavar e não as repõe a tempo, para ficarmos num só objeto) a expectativas oriundas da origem familiar de cada um (a mulher que detesta ou exige que o marido lave o carro minuciosamente aos sábados), e por aí vai. São duas pessoas literalmente opostas (pois que são de sexos opostos), vindas de lares diferentes, com expectativas diferentes etc. É então, é para este grande momento, que a função unitiva do sexo, que é mais potente em seu início, tem lugar. O recém-casado irritado e a recém-casada angustiada por besteirinhas perdem-se nos braços um do outro, e encontram no sexo a forma de passar por cima de todos aqueles detalhes, de unir-se até que um se acostume com os flatos e arrotos do outro e eles possam viver juntos pelo resto da vida. Quando eles chegarem à velhice, não haverá mais sexo; mas para que haveria? Afinal, os dois estarão tão unidos que ela o conhecerá melhor que ele mesmo, e ele terá chegado o mais perto de entender aquela mulher que um homem poderia jamais alcançar.

Não existe camisinha que revista o coração. Ter relações sexuais é chamar o amor, chamar o afeto, e regar essa plantinha

E antes do casamento? Bom, antes do casamento, até para que a função unitiva do sexo tenha todo o seu poder e o casal não se dissolva no primeiro probleminha, vem a abstinência. Mas aí vem outro problema de nossa sociedade. Pois o ser humano tem um relógio biológico infalível. Assim como não se pode querer que uma criança de 11 anos de idade seja capaz de entender abstrações, é raríssimo que uma pessoinha de 14 não o seja. Assim como é dificílimo para uma moça de 20 anos (o auge da fertilidade) evitar ficar grávida ao ter relações sexuais, é quase impossível para uma de 40 engravidar. E, se conseguir, a chance de a gravidez ser pelo menos de risco (para não falar de aborto espontâneo) e de malformações fetais é muito maior. Afinal – coisa de que as pessoas amiúde se esquecem, o que me faz lembrar este detalhe da biologia –, as mulheres já nascem com todos os óvulos de que disporão ao longo da vida. Em outras palavras, uma bebezinha recém-nascida já carrega em si toda a sua parte na formação de seus próprios filhos, netos da mãezinha e do paizinho de primeira viagem que a olham enternecidos e não conseguem entender como o mundo não parou, como os presidentes de todos os países não vieram saudar o milagre do nascimento de uma nova vida.

O ciclo reprodutivo ótimo da mulher vai dos 15, 16, até os 24, 25 anos. Antes disso (depois, claro, da menarca) dá para ter filhos, e depois também. Só fica mais difícil, e quanto mais longe dos 20 anos mais difícil é. E é por isso que a natureza humana (ela, mais uma vez!) leva todas as meninas, absolutamente todas, a fixar-se pouco antes disso, naquele período mágico em que aquela mulher é uma mocinha núbil de seus 13 a 15, em formas de bebê: cadernos com bonecos cabeçudos etc. É a preparação que a natureza está fazendo para ela, para que ela comece o longo processo de escolha de companheiro para o resto da vida. Pudera que as moças amadureçam mais depressa: é sempre, em última análise, delas a escolha final. Sua própria natureza, o mais profundo de seu ser, aquilo que ela já era, metafisicamente falando, antes mesmo de receber o dom de ser, grita-lhe que em breve será a hora de unir-se em matrimônio e ter filhos, muitos filhos, montões de filhos. E para eles, jovem ainda, ela tem forças, e para eles ela tem disposição, e para eles e para sua concepção – taí o problema das campanhas pró-promiscuidade – ela tem enorme desejo sexual e óvulos fresquinhos e pululantes.

Creio que nem precise falar dos rapazes.

Destarte, a campanha pró-abstinência, se for uma campanha em prol de esperar ad infinitum, porém voltada para a multidão (que tem normalmente a vocação matrimonial, não a celibatária), é uma campanha que demanda virtudes heroicas. Um editorial aqui desta mesma Gazeta lembrou que os adolescentes buscam o heroísmo. E é verdade. Assim, essas campanhas têm alguma chance de funcionar bem para muitos, e mesmo não funcionando plenamente certamente ajudarão bastante aqueles que por elas forem convencidos. É, sim, melhor esperar. Mas esperar até quando?!

A sociedade atual, já em derradeiro grau de dissolução, posterga por princípio o matrimônio até bem depois do fim do período ótimo de fertilidade feminina. Na verdade, diria eu, o que na prática está acontecendo é que as moças “abstêm-se” é de se casar, de ter filhos, até que ressoe por suas entranhas o grito de desespero derradeiro de sua alma de mulher, que sobrevém quando seu corpo percebe que em breve, em muito breve, ela não terá mais chance alguma de ser mãe. Então, e só então, ela decide abrir-se à vida; temos então uma mãe de primeira viagem quase com idade para ser avó, com o coração tantas vezes partido que terá enorme dificuldade em permanecer unida a seu esposo nos piores momentos, sem ter nem sequer a capacidade física que ela tinha na hora certa de ter filhos para poder cuidar das criaturinhas. Criança pequena é um bichinho-carpinteiro, que não para. E assim, parar e dormir não fazem mais parte do vocabulário da mãe, ou ao menos é assim que lhe parece. Nesta situação é perfeitamente compreensível que o primogênito de muitos casais seja também o caçula, e a taxa de natalidade esteja a barbaridade que está, em que é praticamente garantido que a geração que agora está entrando no mercado de trabalho não tenha aposentadoria a esperar-lhes quando estiverem idosos. Afinal, trata-se de um esquema de pirâmides, e a implosão demográfica faz com que ele desabe.

Outrossim, resumindo, a abstinência até o casamento é da natureza humana. É o que faz com que as coisas aconteçam da melhor maneira e os incentivos estejam todos nos seus lugares e horas certas. É por isso que em praticamente qualquer sociedade civilizada ela sempre foi tida como um valor social (o que, inclusive, é um pouco o que explica o furor antinatural dos pseudoéticos, que nada desejam mais que abolir tudo o que cheire a passado e a tradição, e daqui a pouco estarão certamente pregando que não há nem sequer número “normal” de mãos, orelhas, olhos, braços e pernas...). Já o que não faz parte da natureza humana é isso de se casar muito tarde em vez de casar-se, como sempre foi o caso e é ainda em muitos lugares, com a moça estando no auge de sua capacidade física e procriativa, e o rapaz lá pelo meio da terceira década de vida (homens amadurecem mais tarde que mulheres, sabemo-lo todos. Algumas mulheres diriam que jamais amadurecemos, até). Exigir anos de abstinência complementar é exigir virtudes heroicas; elas não são antinaturais, mas são árduas – daí o termo “heroicas”! – e não é qualquer um que consegue.

O que na prática está acontecendo é que as moças “abstêm-se” é de se casar, de ter filhos

Do ponto de vista da capacidade feminina de ter os filhos e cuidar deles, a gravidez no período fértil, imediatamente pós-adolescente, é o normal, o esperável e mesmo desejável, diria eu. Mas é, sim, problemática a gravidez adolescente fruto de promiscuidade sexual, a gravidez de baile funk, a gravidez de adolescente solteira, sem que o pai da criança tenha qualquer compromisso com ela (na verdade, no mais das vezes, que lhe tenha partido o coraçãozinho de moça!). Isso sim é um problema.

O que mais há por aí é rapaz de mais de 20 engravidando moça menor de idade. O papel da sociedade deveria ter sido segurar os dois para que jamais se vissem nus numa cama, mas que as famílias se conhecessem, eles mesmos tivessem uma noção um pouquinho menos ruim de quem é o outro, para que em alguns anos eles se casassem e, tendo assumido o compromisso, tivessem então o auxílio da potência unitiva do sexo para se manterem juntos e o da procriativa para que tenham quem os sustente na idade avançada.

Na hora certa. No lugar certo. Do jeito certo. Como manda a Mãe Natureza.

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