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A dupla Maiara e Maraisa
Maiara e Maraisa foram associadas ao nazismo por não terem condenado o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim.| Foto: Divulgação/Site oficial

A pós-modernidade, dizem, é o “fim das grandes narrativas”. Já falei bastante disso aqui: nela não fazem mais sentido aquelas “verdades” de bando, tão comuns no Século do Genocídio que fortunadamente deixamos para trás há duas décadas. Não seria possível hoje, por exemplo, convencer multidões a dançar um tango saltitante de condenação ao nazismo, seguido de apoio entusiástico a ele, apenas para voltar a odiá-lo pouco depois, como foi o caso dos comunistas antes, durante e depois do pacto Ribbentrop-Molotov entre a Alemanha de Hitler e a União Soviética stalinista. Isto, contudo, está longe de indicar que as pessoas estejam pensando com suas próprias cabecinhas. Pelo contrário, aliás.

Uma das formas tomadas pela bovinidade ideológico-psicológica pós-moderna, que tomo por objeto deste ensainho besta que ora batuco, é a sucessão de expressões de apoio ou condenação em passo acelerado, provocada pelas redes sociais. Anos atrás escrevi um artigo sobre os malefícios da televisão, que ainda pode ser encontrado internet afora. Apontei nele uma diferença crucial entre o raciocínio linear de alguém que aprendeu a pensar lendo e conversando e o raciocínio “cubista”, identificado por McLuhan, dos viciados em tevê. Este meio – que é sua própria mensagem –, afinal, apresenta as informações de forma totalmente desconexa, como um quadro cubista em que o nariz está de lado, o olho de frente e a orelha de ponta-cabeça. Para contar uma história na tevê, seus elementos são mostrados fora de ordem cronológica ou simplesmente lógica, em pedacinhos de poucos segundos que pulam para a frente, para trás e para os lados numa visão prismática que pode até vir a ser relativamente completa, mas que dificilmente será reconstruída de forma perfeitamente conexa na mente do indivíduo. Tudo passa a ser mais emocional que lógico, mais impressionante que convincente.

O triste resultado deste amargo vício naquilo que Sérgio Porto batizou de “máquina de fazer louco” é uma incapacidade dialógica extrema, em que os diálogos deixam de ser troca de ideias e passam a ser, no mais das vezes, sucessão de expressões de assentimento. Alguém diz alguma coisa, e os membros da roda concordam monossilabicamente, mas com muito entusiasmo, para em seguida o mesmo ocorrer com outra, outra e outra coisa. Da conversa de bêbados passamos à conversa de loucos.

Nas redes sociais contam-se, contabilizam-se, exigem-se, em suma, reações imediatas e – claro – unânimes a factoides apresentados com a profundidade de um meme

Nas redes sociais o mesmo acontece de forma amplificada e – numa reviravolta tipicamente pós-moderna – passam as expressões de assentimento ou desagrado (estas ainda mais comuns hoje em dia, desde que, claro, o desagrado venha de toda a tribo. Há de ser um desagrado unânime, pois o diálogo é impossível e toda diferença é negada; quem pensa diferente forçosamente é burro ou mal-intencionado) não apenas a serem enfileiradas, à guisa de conversação, como tomam a forma de “lista de presença”. Assim como numa sala de aula da sexta série as crianças respondem “presente” à professora, com um ou outro molequinho respondendo “presunto” ou “presente e sorridente” como forma de ênfase da individualidade de sua presença, nas redes sociais contam-se, contabilizam-se, exigem-se, em suma, reações imediatas e – claro – unânimes a factoides apresentados com a profundidade de um meme.

É daí que vêm, por exemplo, as patéticas exigências da parte do fã-clube de Satanás para que o papa – ninguém menos que o papa, o Vigário de Cristo! – pronuncie-se imediatamente a favor do que a manada é a favor ou indignado contra o que indigna a boizama, sob pena de excomunhão daquela tribozinha autorreferente, que não cogita ter o Sumo Pontífice mais o que fazer. Se o papa escreve que é aos cientistas, não aos teólogos, que compete estabelecer o que faz e o que não faz sentido ao tratar, por exemplo, de mudanças climáticas, a boiada reclama e afirma, indignada, que o papa virou seguidor do Soros. Aliás, um o proclama (preferentemente o Bannon) e todo o resto muge instantaneamente seu assentimento. Se ele lamenta os incêndios da Amazônia, o armentio reclama por ele não ter lamentado os da Austrália (o fato de ele o ter feito é no fundo irrelevante, na medida em que o que se busca é mais uma razão para caluniar o papa fingindo que se o está apenas difamando que uma mostra de pertencimento real dele àquela patotinha supimpa do zap).

Mas eis que tivemos há pouco um exemplo paroxístico do estranho fenômeno pós-moderno que ora examino, mas vindo de alguém firmemente plantado na esquerda. Coisa muito boa, pois assim tenho a chance de espicaçar um pouco a cada um dos lados do cabo-de-guerra disputado pelas igualmente insuportáveis esquerda e direita, com a nossa paciência fazendo as vezes da corda. Demos um no cravo e outro na ferradura, para que não sejamos confundidos com os chatinhos de plantão. Mas eis que um colunista de jornalão, esquerdista ao ponto de estar “exilado” nas Oropa para fugir da horrenda ditadura bolsofascista que em seus delírios sujeita a pátria-mãe gentil, fez duma contabilidade de reações de manada a base para as acusações mais delirantes. Ajudado, explicitado e alcovitado por um cartum aparentemente feito por uma criança sem muito talento gráfico, em que as lastimáveis ganidoras de Aí eu bebo (obrigado, Google!; eu jamais saberia o que uivam as moças em questão sem sua ajuda) ganham uma sutilíssima suástica, ainda por cima.

A acusação do moço é simples: por não terem respondido tempestivamente à lista virtual de chamada, entrando na fila e também – rasgando as vestes – increpando o estranhíssimo cover de Goebbels desempenhado pelo então secretário de Cultura, os intérpretes de uma batelada de péssimos estilos de pseudomúsica brasileira estariam demonstrando em peso e cabalmente sua adesão aos ditames do felizmente falecido Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Sim, senhores, é isso mesmo: assim como quem não diz “presente” ao ser chamado está forçosamente ausente, a celebridade que não pula como um palhacinho de mola ao ver passar uma chance de demonstrar pelas redes sociais sua adesão à grei da esquerda agora é nazista. Com braçadeira de suástica e tudo. Não é de se estranhar que os advogados das moças gorduchinhas de veias do pescoço saltadas (faz parte do estilo) já estejam preparando sua petição inicial, com a boca cheia d’água só de imaginar sua comissão na gorda indenização que se lhes avizinha a passos largos.

Vejam portanto os senhores que estranho este novo fenômeno da pós-modernidade: mencionei no início o tango alucinado dos comunistas em relação ao nazismo nos anos 30 do século passado. Naquela ocasião, alguém que ficasse fora do ar por um tempinho – alguns meses, se fossem os meses certos – poderia ver-se em maus lençóis com o partido por apoiar Hitler quando ele já não estava mais nas boas graças do tirano de Moscou, ou por detestá-lo quando ele já era amiguinho de infância do facínora georgiano. Hoje, contudo, a coisa é bem mais difícil. Na verdade, o ritmo passou do tango ao videogame, sendo agora necessário não perder nem mesmo um dia sem expressar enfaticamente que concorda com tudo aquilo com que concordam seus coleguinhas ideológicos (seja de esquerda, seja de direita, como cabalmente o demonstra a palhaçada desrespeitosa dos neoconservadores para com o Santo Padre) e discorda radicalmente até mesmo dos pelos que nascem nas orelhas da tribo rival. Assim como descem chusmas de navezinhas espaciais na tela do joguinho, fazendo com que virar a cabeça para o lado para espirrar já possa causar a derrota, na pobre cabecinha do colunista acusador desse povo barulhento todo a mera ausência de anuência expressa em relação à besteira do momento (no caso, a condenação do secretário da Cultura) já leva à mais forte acusação do repertório esquerdista atual. “Fascista”, para a esquerda atual, como explicou em livro recente o Antônio Risério, significa qualquer um que não esteja perfeitamente antenado com as bandeiras da extrema-esquerda. “Nazista”, então – horror dos horrores! – é quem se coloca à direita até mesmo do nefando FHC (pé de pato, mangalô, três vezes!). Paredón pro herege.

A coisa é tão reflexa, tão irracional, tão absurda que até mesmo um episódio francamente bizarro como o do secretário da Cultura fazendo cosplay de Goebbels serve não apenas para treino de ordem unida das esquerdas, com obediência imediata às ordens grasnadas pelo coletivo, mas para condenar à pior das penas (porque nisso estamos todos de acordo: o nazismo coloca-se suficientemente fora da Janela de Overton para merecer condenação criminal) quem quer que se atrase um pouquinho na coreografia. E notem bem os senhores que não se trata de coisa clara e inequívoca, como muitas vezes são as enfiadas de bolsocoturno na bolsoboca perpetradas no Planalto. Ao contrário; temos nas mãos um episódio que dificilmente virá a ser um dia explicado, em que um ator e diretor de teatro faz uma pantomima de nazista quase completa, negando qualquer responsabilidade de seus assessores (que a princípio pensou-se terem lhe preparado uma armadilha), mas ao mesmo tempo afirmando que não era nada daquilo. Se não me engano, sua palavra final foi que o episódio teria razões literalmente demoníacas. Não sei, mas o mais provável é que o sujeito simplesmente não esteja batendo lá muito bem da cabeça, como aliás foi aventado pelo próprio Olavo de Carvalho, seu maître à penser, que sabe bem que de nazista o então secretário não tem nada.

“Fascista”, para a esquerda atual, significa qualquer um que não esteja perfeitamente antenado com as bandeiras da extrema-esquerda

Goebbels, afinal, seria o primeiro a apontar – mestre da propaganda e da mentira que foi – que, quando uma determinada simbologia não é bem-vista pelo público, ela deve ser escondida, por mais cara que seja ao propagandista. Se o secretário fosse um nazista goebbeliano, assim, ele poderia aparecer como qualquer coisa, menos como nazista. E, sendo ator, não lhe seria nada difícil esconder seu nazismo real. Mas não; o sujeito só faltou pintar um bigodinho de Hitler e esticar o braço para a frente e para cima. A esquerda demente, que na época das eleições (lembremo-nos todos) pintou suásticas por toda parte tentando atribuí-las a bolsonaristas, numa demonstração de completa incapacidade de entender o que estava acontecendo, até poderia ter preparado uma armadilha para o sujeito, colocando frases de Goebbels num seu discurso, e coisa e tal; mas ele o nega. Diz que foi ele quem escreveu. E que a trilha sonora wagneriana entrou por acaso, e a roupitcha cinzenta provavelmente estava na moda, que sei lá eu.

Para a esquerda mais destrambelhada, a semelhança do discurso (se fosse só o discurso) poderia até indicar que o episódio pudesse ser lido como uma espécie de comprovação da existência de semelhanças entre o bolsonarismo em geral e o nazismo. Seria uma leitura delirante, mas isso é a especialidade daquele pessoal. Com todos os dados em mãos, todavia, isso não seria mais possível. Nazistas eram publicitários bons demais para fazer tamanha besteira. Os uniformes dos caras foram feitos pelo Hugo Boss; ninguém ali era amador neste jogo.

A semelhança, na verdade, com perdão do excurso, entre o nazismo e o pensamento de alguns componentes do bolsonarismo passa por Julius Évora, pela gnose dita tradicionalista ou perenialista e demais exoterismos, não pela estética. E foi a estética pseudonazista de toda a cena teatral encenada pelo secretário que causou o escândalo, infinitamente mais que o texto propriamente dito (que, aliás, fedia a gnose nacionalista evoliana). Sinceramente, não sei o que pensar; a única possibilidade que parece fazer algum sentido é a de uma performance teatral escrita e desempenhada por um louco, por razões que só em seu universo aluado podem fazer sentido. Razões que jamais saberemos quais são.

Em todo caso, por mais que a esquerda tenha essa fixação em chamar de nazista todos os que lhe fazem oposição, com o objetivo evidente de alijá-los do quadro de discurso civilmente aceito, é igualmente evidente que de nazista o bolsopresidente não tem nada. Como sempre digo, ele é taxista, não fascista ou nazista. O pouco que há de racional em seu pensamento é uma mistura de positivismo militar com liberalismo americanófilo e pseudomoralidade kantiana “crente”, e olhe lá. Nenhum destes componentes faz parte da receita do nazismo ou do fascismo. E muitos dos que fazem – formação de milícias organizadas, uniformizadas e altamente públicas que usam de violência contra os opositores, concentração dos poderes no Estado, culto à juventude, à saúde e ao meio ambiente selvagem, liberalidade sexual, esoterismo etc. – são mais encontradiços no meio esquerdista que no bolsonarista. Aliás, o bolsonarismo é um saco de gatos, exatamente por ser antes de qualquer outra coisa um antipetismo, uma união de todos os que simplesmente não aguentavam mais a tentativa esquerdista de acabar de implodir a ordem social em torno de um bolsocandidato que, no fim das contas, era mais um meme (o bolsomito) que um representante de qualquer coisa positiva, fosse ela uma ideologia, uma religião ou qualquer outra “grande narrativa”.

Temos assim um acontecimento – a espantosa performance do secretário – que gerou outro: a “chamada” da esquerda à increpação, com seu sonho de ver o inimigo apresentando-se como o que ela mente que ele é. A acusação tresloucada do colunista do jornalão, que do silêncio de alguns acerca do primeiro acontecimento fez, num salto de fé kierkegaardiano, uma confissão de nazismo ainda mais veemente que a que creu ver no primeiro acontecimento, é apenas a cereja do bolo. Ela serve, acima de tudo, para mostrar o lastimável estado do discurso político atual, no Brasil e na matriz americana dessa briguinha neoideológica pós-moderna que tanto me agasta. Seja o papa, sejam os esganiçadores de pseudomúsica, seja eu, sejam os dois ou três pacientíssimos leitores que chegaram até aqui: ninguém pode ser acusado do que quer que seja simplesmente por não ter reagido instantaneamente ao meme do momento. Nem todos estão jogando esse joguinho idiota. Eu sei que não estou, e certamente o papa tampouco estaria. Mas infelizmente parece difícil fazer com que isso entre nas duras cabecinhas dos ideólogos da pós-modernidade e suas reações reflexas, que vieram tomar o lugar das certezas d’outrora.

Haja paciência!

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