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AFP Photo / KCNA VIA KNS / STR| Foto:

Na Constituição Gaudium et Spes (“Alegria e Esperança”), número 80, a Igreja Católica sabiamente nos aponta:

“Com o incremento das armas científicas, tem aumentado desmesuradamente o horror e maldade da guerra. Pois, com o emprego de tais armas, as ações bélicas podem causar enormes e indiscriminadas destruições, que desse modo já vão muito além dos limites da legítima defesa. Mais ainda: se se empregasse integralmente o material existente nos arsenais das grandes potências, resultaria daí o quase total e recíproco extermínio de ambos os adversários, sem falar nas inúmeras devastações provocadas no mundo e nos funestos efeitos que do uso de tais armas se seguiriam. Tudo isto nos força a considerar a guerra com um espírito inteiramente novo. Saibam os homens de hoje que darão grave conta das suas atividades bélicas. Pois das suas decisões atuais dependerá em grande parte o curso dos tempos futuros. Tendo em atenção todas estas coisas, e fazendo suas as condenações da guerra total já anteriormente pronunciadas pelos Sumos Pontífices, este sagrado Concílio declara: Toda a ação bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação”.

Ora, desde o fim da Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos, o mundo nunca esteve tão perto de uma guerra atômica quanto agora. Os aparentemente desequilibrados governantes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte vêm trocando invectivas e apelidos de recreio da quarta série, fazendo temer o pior. Afinal, ambos os países têm armas atômicas e, ainda que a Coreia do Norte jamais tenha usado as suas contra seres humanos, os EUA já o fizeram, para horror de toda a civilização.

A história do conflito que ora ameaça chegar a provocar o uso de armas tão devastadoras é triste, como toda história de guerra. Tentarei apontar seus momentos e causas principais neste texto.

A Coreia é uma península habitada por um povo antiquíssimo, com língua e cultura próprias, que sofre a infelicidade de estar colocada entre a China, a Rússia e o Japão, países muito mais poderosos, com forte tradição belicista no caso deste último. Invasões são uma constante da história coreana, e é em decorrência delas e do trauma por elas causado que hoje o mundo treme novamente de medo da guerra atômica. O Japão, após uma série de intervenções pesadas na Coreia, que estava literalmente no caminho durante a guerra de 1894-1895 entre a China e o Japão, invadiu a Coreia no começo do século passado, anexando-a e fazendo com que fosse governada diretamente por um governador japonês.

Algumas décadas mais tarde, aproveitando inclusive as riquezas retiradas do território coreano, o Japão lançou-se em uma aventura imperialista mais audaz, invadindo e ocupando vastas extensões de terra por toda a Ásia. A aliança firmada em 1940 com a Alemanha e a Itália faz com que hoje se considere a luta nipoamericana pela dominação do Pacífico o fronte oriental da Segunda Guerra Mundial. Foram os EUA que, sozinhos, fizeram recuar os japoneses.

No fim da Segunda Guerra, já depois da morte de Hitler e da rendição final alemã, a União Soviética, faltando poucos dias para a rendição do Japão, declarou guerra contra ele. É possível a explicação oposta, ou seja, que o Japão tenha se rendido devido à declaração de guerra russa. É esta que os russos preferem. Foram, então, detonadas pelos EUA as duas únicas bombas atômicas já empregadas contra populações civis, em Hiroshima e em Nagasaki, no Japão. Logo depois o imperador japonês declarou a rendição incondicional de seu belicoso país.

Em todo caso, a questão coreana colocou-se quase imediatamente: o que fazer com aquele protetorado japonês, de língua e cultura próprias? A decisão de momento, que ninguém poderia imaginar ter consequências tão graves e tão duradouras, foi que as tropas japonesas que estivessem na metade norte da Coreia, mais próxima à fronteira terrestre com a Rússia, deveriam render-se ao Exército russo, enquanto as tropas mais ao sul deveriam render-se aos americanos. Em suma, fez-se com a Coreia o mesmo que se fizera na Europa, em que a Alemanha foi partida em duas metades que só foram reunificar-se em 1990, com os países invadidos por ela colocando-se sob a égide soviética a leste e americana a oeste.

Na prática, como na Europa, os EUA simplesmente entregaram à União Soviética comunista territórios e povos que jamais escolheriam viver sob o duro tacão comunista. Foi o caso de toda a Europa oriental, e foi o caso da Coreia. Com o controle do país em mãos, os russos lançaram-se a construir nele uma sociedade socialista, de partido único e sem direitos democráticos. Como sempre, o novo país fazia-se chamar de “república democrática”. Ironias do socialismo. Para governar a República Popular Democrática da Coreia, os russos plantaram no poder Kim Il-Sung, avô do atual governante norte-coreano, um antigo combatente contra os invasores japoneses que, por mostrar habilidades de mando e interesse no comunismo, fora levado pelos russos para formação avançada na União Soviética. No sul da Coreia, ao mesmo tempo, nascia a República da Coreia, na prática tão protetorado americano quanto a Coreia do Norte o era russo. Os EUA instalaram como ditador do Sul o dr. Syngman Rhee, protestante coreano com formação acadêmica nos EUA.

Em 1950, avaliando mal o comprometimento dos americanos com a manutenção da Coreia do Sul em sua esfera de poder, mas com autorização de seus mestres russos, Kim lançou um assalto-surpresa, conseguindo dominar a maior parte do território do Sul. Foi o início da Guerra da Coreia. Os partidos comunistas do mundo inteiro, evidentemente, acusaram a Coreia do Sul de ter tentado invadir o Norte logo antes; ninguém acreditou.

Os americanos, todavia, ao contrário do previsto, lançaram-se em socorro de seu protetorado sul-coreano e, com o grande general MacArthur a comandar suas tropas, conseguiram empurrar de volta os norte-coreanos até quase a fronteira com a China. Foi então que a coisa começou a ficar realmente feia: a China comunista, já tendo de lidar com o Japão e querendo evitar a presença de outro protetorado americano numa fronteira sua, colocou-se do lado norte-coreano, enviando 1,7 milhão (!) de soldados “voluntários”, aos quais se juntaram cerca de 70 mil militares da aviação russa. A guerra, então, virou a tal ponto que o general MacArthur teria pedido ao governo americano autorização para usar bombas atômicas contra as concentrações de soldados chineses que marchavam em sua direção. Graças a Deus o bom senso prevaleceu e ela foi negada.

Os EUA não dispunham, contudo, de tropas suficientes para encarar um exército tão grande, mesmo ainda havendo lá serviço militar obrigatório. A solução foi a que mais tarde se tornaria a especialidade absoluta dos EUA: o bombardeio maciço e indiscriminado, já criminosamente realizado na Segunda Guerra contra algumas cidades alemãs e japonesas. A quantidade de bombas, tanto explosivas quanto de napalm (gasolina gelatinosa), usadas pelos EUA na Guerra da Coreia, que durou apenas três anos ao todo, foi maior que a usada em toda a Segunda Guerra Mundial ou na Guerra do Vietnã. Nenhuma edificação, nem mesmo uma casinha de cachorro, ficou de pé na parte norte da península coreana. Após destruir todas as edificações, os bombardeiros americanos passaram a atacar sistematicamente todos os reservatórios de água, da maior represa à mais humilde plantação de arroz. Foi a maior destruição já infligida a um país habitado na triste história das guerras humanas. Os norte-coreanos foram literalmente forçados a viver em cavernas.

Mesmo assim, a reconquista pelos americanos da Coreia do Sul ocorreu praticamente palmo a palmo até alcançar novamente o paralelo 38, a linha que desde o fim da ocupação japonesa divide em dois a península coreana, e efetuar, em 1953, um cessar-fogo.

A Guerra da Coreia oficialmente nunca acabou. Não houve nenhum tratado de paz. Só o que se fez foi instalar uma faixa de 4 km de largura ao longo de toda a fronteira entre as duas Coreias, ironicamente chamada “Zona Desmilitarizada”. É a zona mais militarizada de todo o mundo. Nela soldados de ambos os países ficam frente a frente uns com os outros, encarando os irmãos-inimigos e evitando invasões de lado a lado. São frequentes as trocas de tiros entre eles.

A Coreia do Sul continua um protetorado americano, com dezenas de milhares de soldados americanos estacionados permanentemente em seu território. O mesmo ocorre com o Japão. As tropas americanas em ambos os países, somadas, alcançam quase 100 mil homens, com armas atômicas. As Forças Armadas sul-coreanas são obrigadas por tratado a colocar-se sob comando americano em caso de hostilidades, ou seja, são formalmente forças auxiliares das americanas. Tanto a Coreia do Sul quanto o Japão tornaram-se, sob o domínio americano, países ultracapitalistas, dedicados ao materialismo mais crasso e à produção maciça de produtos de consumo, em detrimento de suas ricas culturas originais. Um simples detalhe nos mostra o nível de desenvolvimento material da Coreia do Sul: lá não existem mais chaves. Todas as portas se abrem com o uso de cartões, como em hotéis. Já sua pobreza espiritual é fácil e fortemente apontada pelo fato de ser o segundo país com maior taxa de suicídios no mundo, sendo o suicídio a principal causa de mortes de pessoas de menos de 40 anos de idade lá.

A Coreia do Norte, por sua vez, fechou-se de tal forma que nem mesmo a Rússia ou a China podem considerá-la mais um protetorado. Ela se tornou um país ensimesmado e fechado ao mundo, cuja razão de ser é a autonomia, ou juchê, na defesa contra os EUA; um país monomaníaco, em que a população inteira é treinada desde a mais tenra infância a acreditar que a guerra interrompida em 1953 está prestes a ser reiniciada. O símbolo do país, para consumo interno, é um porco-espinho, o animal defensivo por natureza. O filho do fundador do país e da dinastia, Kim Jong-Il, pai do atual governante Kim Jong-Un, foi ainda mais longe ao fazer da militarização absoluta do país a prioridade maior do Estado norte-coreano, que, como em qualquer outro país comunista, é o único empregador e proprietário dos meios de produção.

A Coreia do Norte tornou-se, assim, uma ditadura com, literalmente, um regime militar de vida, em que os cidadãos são (mal-)tratados como soldados. Apesar de ser um país rico em recursos naturais, especialmente minerais, eles são mal aproveitados e a pobreza é atroz. Isto ocorre tanto pela incapacidade administrativa inerente ao socialismo quanto pela dificuldade que o país encontra em comercializá-los no mundo: as sanções econômicas dos EUA impedem a maior parte dos países de comercializar com a Coreia do Norte. A China compra seu carvão regularmente, e artesãos escravos norte-coreanos são alugados a vários outros países, como ocorre aqui no Brasil com os médicos escravos cubanos. A própria Rússia tem dezenas de milhares de escravos norte-coreanos fazendo o serviço pesado que no tempo do comunismo era feito pelos prisioneiros de opinião na Sibéria. A fome, como sói acontecer em países de economia planificada, é uma ameaça sempre presente na Coreia do Norte. Houve ocasiões, ainda firmes na lembrança de todos os cidadãos, em que os habitantes do campo foram forçados a comer capim e cascas de árvore para manter-se vivos.

Isto é uma decorrência infelizmente comum dos sistemas de produção socialistas, mas o estado de guerra permanente em que os EUA mantêm a Coreia do Norte torna praticamente impossível a transição para outro sistema de governo. Se houvesse paz, seria muito melhor para o próprio reizinho norte-coreano transicionar para uma economia mista, como a chinesa, e governar um país rico. Mas quando a guerra total parece estar atrás da próxima esquina, este não é um luxo a que ele possa se dar.

Os EUA e a Coreia do Sul fazem regularmente exercícios de guerra pesados, com movimentos de centenas de milhares de soldados, aviação e marinha, sempre conduzidos junto à fronteira norte-coreana, o que evidentemente não ajuda em nada a acalmar os governantes do país mais paranoico do mundo. Transformar um exercício desses em invasão ao território norte-coreano seria facílimo; em questão de minutos, as tropas que rodeiam uma à outra no exercício podem se unir e avançar sobre a Zona Desmilitarizada a caminho da capital norte-coreana. É por isso que o governo do norte regularmente protesta contra os exercícios, que a cada vez que acontecem são acompanhados pela Coreia do Norte em prontidão como preparativos da invasão prometida.

Diz o ditado que ser paranoico não prova que não haja alguém atrás da gente, e é este o caso. As guerras de agressão absolutamente gratuita contra países infinitamente mais fracos com que os EUA têm escandalizado o mundo civilizado, especialmente nas últimas décadas, não ajudam em nada a acalmar os ânimos de quem se percebe ameaçado. Há pouco, mesmo, houve uma pequena confusão política nos EUA por ter o presidente, mais uma vez, cometido uma gafe, desta feita ao dar os pêsames por telefone à viúva de um soldado que morreu em combate em Tongo Tongo, no Níger. Ora, a questão deveria ser o que um soldado americano está fazendo combatendo no Níger! Não há absolutamente nada no Níger (ou no Afeganistão, ou no Irã etc.) que pudesse representar qualquer perigo que fosse aos Estados Unidos. Ao contrário, até: a presença de tropas americanas trocando tiros com nativos lá (ou em qualquer outro lugar) só serve para aumentar o ódio impotente das populações contra os EUA, o que proporciona aos grupos inimigos dos EUA a melhor propaganda que jamais poderiam ter. Os robôs voadores assassinos telecomandados (drones) americanos, então, que a cada dia cometem novos assassinatos pelo mundo afora, são o maior instrumento de recrutamento de soldados para as guerrilhas antiamericanas.

Da mesma forma, há soldados americanos orientando e ajudando os grupos de terroristas maometanos que ora vêm tentando derrubar o governo legítimo da Síria; há alguns anos, os EUA invadiram o Iraque com um pretexto que depois revelou-se completamente inventado, abrindo espaço para o caos que ainda hoje impera na região e para a criação do Estado Islâmico; mais recentemente, os EUA derrubaram o governo da Líbia, literalmente entregando o ditador Kadafi a assassinos, depois de terem feito acordos com ele em que ele abdicou de tentar obter bombas atômicas. O Afeganistão vem sendo mantido em caos permanente apenas para dificultar a expansão comercial chinesa. Tornou-se evidente que – como qualquer pele-vermelha americano sobrevivente poderia explicar – os tratados americanos não valem o papel em que são escritos. A única maneira de evitar a agressão americana parece ser a capacidade de retribuir à altura. Daí a importância, para a Coreia do Norte, de ter bombas atômicas.

Eles podem perfeitamente discutir e ceder em muitas outras coisas, mas para eles são as bombas e, mais ainda, a certeza do mundo de que eles a têm e podem usá-las, que garantem que não se repitam os crimes de guerra americanos contra sua população. É isto, esta paz pelo terror, que fez da disputa entre os EUA e a União Soviética uma guerra dita “fria”; a esperança do ditador norte-coreano é conseguir “esfriar” também os desígnios dos EUA em relação ao cantinho de mundo pelo qual se vê responsável.

Os norte-coreanos têm, com razão, pavor da perspectiva de guerra com que os militares dos EUA parecem brincar, uma guerra que devastou o seu país, mas que os civis americanos já esqueceram completamente. Como a Coreia do Norte já foi totalmente destruída por bombardeios americanos, é perfeitamente compreensível que se assuste quando o presidente dos EUA, querendo impressionar o eleitorado doméstico, faz ameaças violentíssimas. Quando o país foi quase despovoado por bombas americanas, soa muito assustador ouvir do presidente do país que tem dezenas de milhares de soldados armados fazendo exercícios ao redor que “eles não vão ficar muito tempo por aí”, possivelmente referindo-se aos norte-coreanos. Igualmente, também não parece exatamente calmante ler da pena do presidente americano que “eles vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu”, quando se é o país que recebeu o pior fogo e fúria que o mundo já viu, justamente das mãos dos EUA, quando governados pelo avô do ditador atual (que Trump disse que “será testado como nunca antes!”…).

É horrível que haja bombas atômicas, tanto americanas quanto norte-coreanas. Aqueles jamais se arrependeram de tê-las usado contra civis, num dos mais graves crimes de guerra da história; estes não parecem dados a restrições morais contra uso igualmente criminoso. Acho inclusive muito provável que o ditador norte-coreano já tenha levado bombas atômicas por navio a cidades nos EUA para poder responder à altura a um ataque, detonando-as e mentindo que foram mandadas por mísseis.

Mas no momento, o fundamental, o essencial, é fazer com que os EUA parem de provocar inutilmente um país já ensimesmado, um país justificadamente paranoico em relação aos EUA, um país cujo enorme potencial jamais poderá se desenvolver enquanto servir de mera desculpa para a manutenção de tropas americanas na Ásia. A Coreia do Norte já não teria mais condições comparativas de invadir a Coreia do Sul, que hoje em dia é riquíssima, tecnologicamente mais avançada que os EUA e perfeitamente capaz de se defender. O Japão, do outro lado do Estreito da Coreia, está ainda mais seguro. À China, ainda, que é o maior parceiro comercial da Coreia do Norte, tampouco interessaria haver confusão no próprio quintal. A Rússia também dificilmente deixaria de intervir caso a Coreia do Norte tentasse qualquer coisa contra a vizinhança, em que ela é de longe o país mais fraco e mais pobre.

A melhor coisa que os EUA poderiam fazer para a paz mundial seria, além de cumprir a promessa de campanha de Trump de retirar os soldados americanos ora provocando caos mundo afora e centrar-se no próprio país, fazer da retirada dos soldados americanos do Japão e Coreia do Sul uma prioridade, abstendo-se, claro, de mais bravatas e desafios. Nenhum dos lados é confiável, e ambos os lados temem, com razão, que o outro resolva atacar primeiro. Não vale a pena continuar a escalada de insultos e provocações. Já bastam os penteados estranhos de Trump e Kim.

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