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Apoiadores de Joe Biden se manifestam contra Donald Trump perto da Casa Branca, em 7 de novembro de 2020.
Apoiadores de Joe Biden se manifestam contra Donald Trump perto da Casa Branca, em 7 de novembro de 2020.| Foto: Daniel Slim/AFP

É engraçado como são as coisas; passei anos como “voz que clama no deserto”, apontando os fortes sinais da derrocada do artificialíssimo modelo moderno de sociedade. De todos os anteriores, este terá sido o de mais curta duração. Afinal, quando nos damos conta de que o Egito antigo passou coisa de oito milênios sem mudanças substanciais, e mesmo o nosso Medievo durou coisa de um milênio, um percurso de pouco mais que 200 anos, como o da Modernidade “madura” (com Estados nacionais, laicismo, preponderância de democracias com ou sem aspas etc.), revela-se um piscar de olhos. Não fossem os tantos horrores cometidos nesta triste era, seria possível apostar que ela fosse vir a ser tratada pelos historiadores do futuro como uma coda, um fim inglório e doloroso do Medievo.

Na verdade, isto ainda pode vir a ser o caso. Afinal, decadências são por definição coisas violentas. A loucura coletiva que se apossou do Ocidente e terá durado, em grandes linhas, das Revoluções Americana e Francesa até meados do século em que estamos, todavia, bate todo recorde possível. Nunca tanta gente foi morta por razões tão fúteis e, mais ainda, nunca tanta gente foi morta ou encarcerada pelos próprios governantes. O século 20 foi o Século do Genocídio, com as formas “maduras” da Modernidade – as ideologias, os “ismos” assassinos que tentaram conformar o mundo a ideias de jerico – enfrentando-se e aos próprios cidadãos na busca inglória de impossíveis utopias. Pela primeira vez o homicídio foi industrializado como política de Estado.

De seu início a agora, a Modernidade tentou eliminar a ordem natural de toda e de cada sociedade, substituindo-as todas por receitas de bolo prontas e hipercentralizadoras, que a cada etapa iam ainda mais longe da realidade palpável e dos elementos mais básicos de toda ordem social real. A família, célula básica de toda sociedade, foi sendo progressivamente negada e submergida por uma avalanche de leis inventadas, em que se chegou ao absurdo de – como na patética legislação brasileira – achar que o pátrio poder seria algo dado pelo Estado aos pais, em vez de perceber que são as famílias que dão ao Estado, qualquer Estado, todo o poder de que disponha.

O século 20 foi o Século do Genocídio, com as formas “maduras” da Modernidade enfrentando-se e aos próprios cidadãos na busca inglória de impossíveis utopias

Todo aspecto da realidade passou a ser sacrificado à ideia, com as diferenças biológicas reais entre as pessoas sendo negadas ao ponto de ser tabu dizer que há umas mais e outras menos inteligentes; as diferenças culturais e geográficas idem, com leitos de Procusto burocráticos e pseudolegislativos em que a aldeiazinha do interior do Amazonas a três dias de barco da luz elétrica mais próxima é obrigada a ter o mesmo currículo escolar e forma de governo que São Paulo ou uma colônia germânica do Rio Grande do Sul. E agora, neste finalzinho da derradeira decadência, até mesmo as claras e evidentes diferenças entre polos tão basilares quanto o masculino e o feminino, ou entre a família em que se geram e criam as próximas gerações e os contubérnios sodomíticos, são negadas em bloco, e ai de quem ousar dizer que o rei está nu.

Chegou-se mesmo a planejar e tentar pôr em prática delírios ainda mais grandiloquentes, como o da União Europeia, em que a Alemanha, a Grécia e a Turquia magicamente se tornariam iguais, regidas pelas mesmas leis e dotadas de instituições intercambiáveis. Um delírio evidente, mas em que muita gente conseguiu cair. Alcançada pela varinha de Harry Potter ou pelas canetas de Bruxelas tal equiparação, dar-se-ia, então, o momento em que o México, os EUA, Kuala Lumpur e a Suazilândia seriam transformadas numa só coisa, evidentemente regida, como sói sonhar a Modernidade, por uma burocracia única e central, quiçá instalada no lado escuro da Lua.

Mas eis que veio o Exu Tranca-Ruas do século 21, o tal “novo coronavírus”. As elites modernas, aferradas a seus sonhos tão grandiosos quanto impossíveis, tentaram fazer dele oportunidade de instalar seus planos. A história, todavia, não está mais do lado deles. Desde o fim da Segunda Guerra o vento já havia virado, e é por isso que a ONU já nasceu morta. Desde o fim da década de 60 do século passado as tais “grandes narrativas” modernas já haviam sido trocadas pelo sexo, drogas e rock’n’roll (ou masturbação, corote e Anitta: dá estritamente na mesma), e tornou-se sumamente impossível conseguir manipular suficientemente multidões de otários gigantescas o bastante para atingir a massa crítica necessária para tal “Great Reset”. Multidões de indivíduos atomizados babam nas muitas telas de que se compõem suas vidas, sempre em busca do próximo orgasmo estéril, compra a crédito ou like virtual, sem tempo para fazer a revolução e sem capacidade de sequer nela acreditar.

A isso somando-se a exaustão provocada pelas quarentenas corônguicas e a animação-de-festa-de-criança dos apelos da mídia e das redes sociais a revoltar-se com isto ou com aquilo, explodiram os protestos niilistas e destrutivos que balançaram os EUA – tipo primeiro da Modernidade e encarnação geopolítica de todos os horrores do último par de séculos – e tiveram seu coroamento na farsesca eleição presidencial ora em disputa.

Nada poderia ser mais moderno que a visão de nós-contra-eles que dividiu os EUA em duas aldeias de smurfs, numa azuis e noutra vermelhos, ambos incapazes de colocar-se no lugar dos outros ou mesmo de considerar a hipótese de que talvez ao menos um que outro membro da outra tribo não seja nem burro nem mal-intencionado. A ideia moderna original, claro, seria absorver os smurfs doutra cor na própria tribo ou chaciná-los todos. É o que na gênese de todo Estado nacional foi feito com quem não aceitasse abandonar a identidade local para smurfizar-se numa identidade nacional suprarregional construída em pleno voo. Foi assim que foram massacrados os vendeenses e eliminados os dialetos franceses (lembrando, claro, que um dialeto é uma língua desprovida de exército próprio); foi assim que foram eliminados os nativos americanos e digeridos os alemães, italianos, irlandeses e demais imigrantes não ingleses nos EUA.

Mas a coisa começou a dar errado, contudo, quando a pós-modernidade começou a mostrar-se mais vivamente presente e fez-se evidente a total impossibilidade de trazer ao seio duma aldeia os membros da outra. É uma espécie de reedição das Guerras de Religião com que se iniciou a primeira modernidade, coisa de 500 anos atrás, mas apimentada pela presença e pelo falatório incessante da mídia (e, depois, das redes sociais). É tão impossível levar um republicano americano ao Partido Democrata, ou vice-versa, quanto foi naquele tempo arrastar Lutero para um confessionário.

Nada poderia ser mais moderno que a visão de nós-contra-eles que dividiu os EUA em duas aldeias de smurfs, numa azuis e noutra vermelhos, ambos incapazes de colocar-se no lugar dos outros

Incapazes de perceber a possibilidade de algum diálogo, com listinhas próprias de sempre cambiantes imperativos morais categóricos com que condenar os smurfs de outra cor, os ânimos só fizeram-se acirrar-se. Quando o enésimo milionésimo acusado preto e pobre foi morto pelo enésimo milionésimo guardinha branco, os smurfs azuistomaram-no por messias e levantaram-se em protestos, que de protestos passaram a quebra-quebras e saques, e de quebra-quebras à negação de toda a pseudo-ordem moderna, com direito a territórios “autônomos” e à demanda de acabar com a (moderníssima) instituição da polícia.

Um lado viu isso como uma espécie de invasão de bárbaros, como se tribos de vikings totalitários houvessem invadido plácido burgo inglês. O outro, como um momento de catarse cívica, em que finalmente começavam a ser enfrentados problemas sérios e reais que sempre haviam sido varridos para debaixo da cama. Visões mutuamente excludentes, claro, mas o ponto é justamente este: provou-se não ser mais possível contar com aquele mínimo denominador comum que garantia uma ordem democrática em que o que se discutia era, afinal, desimportante diante de tudo em que se estava de acordo. O que os americanos surpreenderam-se ao encontrar no Iraque – ódios tribais que eleições acirravam em lugar de resolver – está agora firmemente implantado no coração do Império.

A imprensa americana, em sua quase totalidade, tomou o mesmo partido dos donos das redes sociais, adotando a narrativa esquerdista da catarse cívica. Totalmente perdida em sua bolha, ela se revelou incapaz de perceber que o que dizia estava tremendamente longe de representar a leitura unânime de seus concidadãos. Esta bolha, este fechamento total e liminar à outra tribo de smurfs, levou a algumas situações curiosas. A certeza total, completa e absoluta de toda a mídia de que toda a população americana teria por Trump o mesmo asco que os habitantes das redações jornalísticas costeiras, por exemplo, a impediu de sequer tentar sentir o pulso das ruas. Até mesmo os institutos de pesquisa de opinião, que deveriam ter aprendido algo com a eleição anterior (em que davam por favas contadas a derrota de Trump e a eleição da Maga Patalógica, digo, de Hillary Clinton), conseguiram errar por ainda mais nesta eleição.

Ao mesmo tempo, sempre dentro da mesma azulíssima bolha smurf da esquerda, começaram a aparecer sinais de que algo estranho estaria por acontecer. Um cheirinho de podridão começou a emanar mais forte da soma do ato falho do candidato democrata Joe Biden, que declarou que seu partido armara a maior máquina de roubo de votos da história americana, à escolha de vocabulário das incontáveis reportagens sobre como era provável que Trump não quisesse sair da Casa Branca e tivesse de ser de lá arrancado na marra, tratando a necessidade de uma sua derrota nas urnas como irrelevante. Depois, a censura total não apenas pela mídia particular, mas até mesmo pela estatal (!) e pelas redes sociais (!!) das notícias sobre a vastidão da corrupção da família Biden, revelada fortuitamente em arquivos de um computador que seu filho legalmente cedeu a uma oficina ao não ir pagar um conserto. Isto levou até mesmo à demissão do célebre jornalista Glenn Greenwald da revista Intercept, que ele mesmo fundou, quando ela tentou impedi-lo de publicar um artigo sobre o caso.

Chegadas as eleições, surgiu imediatamente gigantesca quantidade de denúncias sobre sérias irregularidades no processo eleitoral, por sua vez multiplicada pela censura de toda a mídia a elas e coroada pela censura aberta de toda a grande mídia americana, privada e pública, a um discurso do presidente Trump, cortado no meio e substituído por “explicações” de jornalistas acerca das muitas razões pelas quais, claro, ele estaria errado. Coisas estranhíssimas, como interrupções da contagem dos votos que reiniciavam com total inversão das posições dos candidatos, virando para Biden o que parecia ser uma vitória acachapante de Trump; votos aos magotes em que não se escolhia senador, apenas presidente, e sempre Biden; denúncias de votos em nome de mortos; seções em que haveria mais eleitores que habitantes adultos na região; seções em que os observadores do Partido Republicano não podiam se aproximar o suficiente das mesas de contagem para sequer perceber para quem fora dado cada voto; máquinas de votar e/ou de contabilizar votos fabricadas e programadas por familiares de importantes apoiadores de Biden...

Como os habitantes da bolha do Partido Democrata não contavam com tamanho progresso eleitoral de Trump (quem mandou acreditar nas próprias mentiras?), foi necessário usar meios exagerados e facilmente provados. Aliás, creio ter sido um pouco isto o que ocorreu na última eleição presidencial brasileira. Como provavelmente usou-se o mesmo algoritmo que dera a Dilma uma miraculosa vitória de coisa de um ponto porcentual sobre Aécio, subestimando a força de Bolsonaro, foi forçado um segundo turno em que, também, ele recebeu menos votos que os realmente dados, mas mesmo assim suficientes para instalá-lo no Planalto.

Quem governa os EUA há décadas não é mais o presidente, sim a burocracia autorreferente de Washington e o complexo industrial-militar contra o qual Eisenhower já havia advertido

Aparentemente, decidira-se na cúpula do Partido Democrata americano fazer “direito” agora o que se tentara fazer quatro anos antes de forma tremendamente amadora, com as absurdas acusações de que Trump seria um espião russo e seriam também os russos os responsáveis pelo vazamento ao Wikileaks dos e-mails mostrando a podridão interna da convenção do Partido Democrata (negada por Assange, o jornalista mártir responsável pelo Wikileaks e mantido até hoje preso em condições subumanas na Inglaterra, a pedido dos EUA).

Trump, todavia, é o pior sujeito do mundo para se pregar tal peça. Vaidoso e arrogante ao ponto de jamais cogitar dobrar-se aos poderes reais do país que tenta, sem sucesso, há já quatro anos governar, pôs-se ele a gritar publicamente por justiça. Cada censura do Twitter a uma postagem sua o fez berrar ainda mais forte. E o procurador-geral acabou por autorizar uma investigação, jogando definitivamente para o tapetão o resultado das eleições. No momento seria impossível prever se a provável vitória real (e por vantagem muito maior que a da primeira eleição) de Trump será reconhecida oficialmente, ou se será mantida a fantasia de uma estranhíssima vitória do Partido Democrata na eleição presidencial ao mesmo tempo em que eram derrotados nas legislativas.

Tanto faz como tanto fez, na verdade. É claro que há, sim, algumas diferenças entre Trump e Biden, mas quem governa os EUA há décadas não é mais o presidente, sim a burocracia autorreferente de Washington e o complexo industrial-militar contra o qual Eisenhower já havia advertido. O que realmente chama a atenção, o que realmente marca o momento histórico, no entanto, é o fim da ficção democrática americana. Tanto a roubalheira quanto o partidarismo da imprensa; tanto a incapacidade intelectual, moral e emocional quanto a incapacidade de fazer frente aos adversários ocultos demonstrada fartamente por Trump; tanto os distúrbios sociais iniciados como protestos quanto as leituras delirantes deles feitas por ambos os partidos; tanto a incapacidade de vislumbrar a possibilidade de diálogo de ambos os lados quanto o monopólio do “sonho americano” por parte de cada um dos partidos, tudo isto aponta que o sonho, como já dissera John Lennon, acabou.

Na Europa, enquanto isto, a França ferve, tendo finalmente se dado conta do enorme perigo em que se colocaram ao manter em seu seio gerações sucessivas de muçulmanos que não se integram à sociedade francesa nem têm qualquer desejo de fazê-lo, ou sequer de se ver como franceses. Criaram cobras, e agora estão sendo mordidos. A Alemanha está passando por situação semelhante; a Espanha vê-se às voltas com o separatismo catalão; a Turquia caiu nas garras do fundamentalismo muçulmano salafista, afastando-se cada dia mais do contexto europeu; a Inglaterra, que já instalara circuitos de TV fechada por toda parte e simplesmente desistira de punir crimes contra o patrimônio, vê-se avançando rapidamente rumo a um fascismo de fato...

Caiu, então, a Modernidade, e estamos assistindo à sua queda de camarote. A tendência agora é a oposta: força centrífuga ainda maior que a centrípeta a que reage promete levar à dissolução dos Estados nacionais modernos, em breve tão divididos internamente que será impossível manter a ficção nacional. Aqui, na periferia, onde a pseudo-ordem moderna jamais foi perfeitamente introjetada pela população, teremos menos problemas, ainda que inexoravelmente os venhamos a ter. Já nos países em que a loucura moderna substituiu a sabedoria dos antigos, o antes dito Primeiro Mundo, ou Ocidente, são negras as perspectivas. Sem o que fez as vezes de ordem por lá neste último par de séculos – ainda que uma falsa ordem genocida –, há o sério risco de fazer com que pela primeira vez se tornem verdade os temores hobbesianos e o smurf se torne o lobo do smurf.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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