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Foto: Josh Edelson/AFP
Foto: Josh Edelson/AFP| Foto:

O grande escritor britânico G. K. Chesterton, comentando o que passa por moralidade nos Estados Unidos, afirmou, com razão, que o que lá faz suas vezes na verdade não é um padrão de certo e errado, mas sua substituição por alguns gostos e desgostos paroquiais. E é verdade. Isto se deve, antes de mais nada, à acomodação de um padrão de (pseudo)moralidade kantiana em uma matriz de pensamento dualista de base calvinista com que se formou aquele estranho território tão pobre espiritualmente quanto cheio de riqueza material. Do calvinismo veio a certeza de que as pessoas são monstruosas ou santas, salvas ou perdidas, vencedoras ou perdedoras, sem meios-termos e sem possibilidade de conversão ou perversão de um ou de outro. Da moral kantiana, a substituição de um sistema moral verdadeiro por um par de listinhas de coisas proibidas e de coisas obrigatórias. Evidentemente, é pela adesão comportamental às listinhas de imperativos morais categóricos que se pode reconhecer os mocinhos e os vilões. E, mais evidentemente ainda, quando a listinha do próximo não for igual àquela que usamos, o próximo é vilão para nós e nós somos vilões para ele.

Isso é especialmente claro na política americana, em que a divisão entre a esquerda e a direita vem se aprofundando, com cada vez menos pontos em comum nas listinhas pseudomorais dos dois partidos opostos. Como o que lhes falta em civilização sobra em dinheiro, logo, em influência político-cultural, as briguinhas intestinas da política americana vêm se repetir aqui como farsa. Por exemplo, a esquerda americana acusa (com razão) o sistema judicial americano de prender demais. Afinal, não apenas os EUA têm a maior população carcerária do mundo, tanto em termos absolutos quanto relativos, como condenam habitualmente a longuíssimas penas de prisão, ou mesmo à prisão perpétua, criminosos culpados de menor potencial ofensivo. Em alguns estados do Grande Irmão do Norte, uma terceira condenação por fumar maconha ou roubar galinha pode levar ao encarceramento perpétuo.

Ora, isso é o oposto da situação brasileira, em que o furto simplesmente não é mais punido, na prática, e raríssimos são os casos de condenados que cumprem mais que um sexto da pena em regime fechado. Ah, sim: aqui a pena máxima é de 30 anos. Em outras palavras, monstros assassinos aqui podem passar cinco anos atrás das grades; os demais criminosos passam muito menos ou – a maioria – se livram soltos. Mas a nossa esquerda copia sem tirar nem pôr a bandeira da esquerda americana, e faz de tudo para que se prenda ainda menos aqui, onde o problema, lembro novamente, é o oposto. O mesmo vale para outras péssimas importações, estando as cotas e outras políticas racistas entre elas.

Para que não se diga que estou de implicância com os sinistros canhotos, aponto que a recentemente ressuscitada direita brasileira tem o mesmo hábito pacóvio de importar pacotes prontos de sua homóloga anglo-saxã. Entre vários, poderíamos citar a visão de mundo segundo a qual tudo está aí para ser consumido, que faz com que, macaqueando a direita gringa, vários dentre os poucos direitistas brasileiros lancem frases de efeito afirmando que a Amazônia deveria ser transformada em estacionamento, por exemplo. No original, trata-se de uma inversão do discurso ambientalista radical: se uns dizem que nem uma folha de grama pode ser cortada, os outros têm de dizer que todas devem sê-lo. Aqui é só besteira, mesmo.

Igualmente importado é o horror ao imigrante, compreensível (ainda que não justificável) no caso da direita americana por estar lá havendo um grande influxo dos descendentes latino-americanos de sobreviventes das populações indígenas dizimadas pela colonização anglo-saxã. Tanta gente chegando ao mesmo tempo com a mesma língua e cultura estranhas leva-os a temer pela própria, que efetivamente corre o risco de sofrer a influência civilizatória dos imigrantes latino-americanos. Afinal, estes levam consigo uma cultura muito mais rica, nuançada e profunda, e é muito mais provável que a cultura mais rica influencie a mais pobre que o oposto, a despeito de a distribuição de riquezas materiais ser oposta à da riqueza cultural.

Já aqui, igualmente por questões culturais, a segunda geração de uma família de imigrantes em geral já está completamente brasileira; nossa cultura é muito inclusiva e tolerante, o que faz com que seja quase impossível a imigrantes manter-se à parte de nossa sociedade. Mesmo os japoneses, no século passado, um dos povos mais culturalmente coesos e fechados do mundo, integraram-se plenamente nas populações que os acolheram em uma ou duas gerações. Além disso, não há nenhum grupo de imigrantes suficientemente numeroso para fazer a diferença. Os americanos, aliás, são uma das nacionalidades mais presentes entre os imigrantes para o Brasil, com praticamente um americano para cada dois bolivianos. Mas mesmo assim os pafúncios importadores de besteira adoram rasgar as vestes e ulular de desespero diante de uma suposta invasão de imigrantes, ou mesmo de imigrantes islâmicos. Ora, bolas, entre Paris e Botucatu, com Paris sendo muito mais perto, acho pouco provável que a hégira atual se dirija às nossas plagas. E, se vierem, eu garanto: em menos de duas gerações estão saindo de porta-bandeira e mestre-sala numa escola de samba, alimentando-se de feijão com arroz e implicando com os argentinos.

Além destes fenômenos que descrevi acima, contudo, há outro mais grave ora ocorrendo: a importação direta (e, na prática, inevitável) de algumas das piores manias e práticas pouco civilizadas dos Estados Unidos, por intermédio do Facebook e, em menor escala, do Google. Como todos os meus três leitores sabem, o Facebook e o Google são os dois gigantes da internet mundial, dividindo a imensíssima maior parte do fluxo de dados não pornográficos da rede. Dentro do Facebook há um sistema de troca de mensagens instantâneas, o Messenger. Fora dele, mas igualmente pertencente à mesma companhia, há o WhatsApp. O Google é o proprietário do Gmail, o maior provedor de e-mails do mundo. Pois o Facebook, por conta dos ânimos cada vez mais acirrados da política americana, decidiu tomar partido e censurar ativamente postagens de seus usuários. Isso, se não examinássemos a situação, poderia parecer aceitável: afinal de contas, trata-se de uma companhia particular. Mas será que se pode assim definir um conglomerado que detém mais informações e movimenta mais dinheiro que a maior parte dos governos, inclusive de países ricos? Este é um primeiro ponto importante. Corremos o risco de, em algumas décadas, sermos literalmente governados pelas corporações; assim como hoje as identidades digitais fornecidas pelo Google e pelo Facebook servem para inscrever-se em um sem-número de páginas, e mesmo em lojas e serviços de todos os tipos, não é um pulo muito grande unir a CNH digital a essas identidades. Daí, poder-se-ia partir para unir o CPF e o título de eleitor, e quem sabe estaremos votando no sucessor do próximo presidente usando o login do Facebook ou do Google? A cada dia os Estados nacionais perdem importância e as corporações aumentam em poder. É importante que conquistemos algum direito de cidadania virtual nelas, para que elas não venham a ser ditaduras abertas, como cada vez mais parece estar acontecendo. Foi muito difícil recuperarmos nosso direito de livre expressão no Brasil; não podemos nem queremos perdê-lo de novo, menos ainda nas mãos de uma entidade que não responde a ninguém e cuja cultura nos é estranha.

O desprezo do Facebook pelos que evidentemente vê como seus inferiores é tornado claro em atos como a flagrante desobediência aos tribunais brasileiros; no momento, em apenas uma ação no Paraná, o Facebook está sofrendo multa de R$ 70 mil ao dia por se negar a dar informações não pessoais sobre investigados; mas o que são R$ 70 mil para eles? Troco de pinga.

E eis que esses poderosíssimos novos senhores consideram sumamente importante preservar os tabus e gostos provincianos peculiares que fazem as vezes de moral nas terras do Norte. Assim, por exemplo, é absolutamente proibido postar fotos de mulheres com pouca roupa, mas não há problema algum em publicar fotos e mesmo filmes de decapitações, atropelamentos e outras formas de violência brutal. Do mesmo modo, há uma lista de palavras proibidas. Escrevê-las significa ser punido com bloqueios que podem variar de dias a semanas, ou mesmo com a expulsão da rede. Não importa se a vítima dos desmandos do Facebook usa o Messenger para trabalho: no momento em que sofra o bloqueio – que normalmente ocorre de forma súbita, dias após a postagem em que se tenha violado algum tabu americano desconhecido –, passa a ser impossível comunicar-se. O busílis da questão, todavia, é que a lista de palavras proibidas é secreta! O único jeito de descobrir quais são elas é sendo bloqueado, com a ameaça sempre presente de ser expulso subitamente da rede e do meio de comunicação pessoal que ela inclui. Ora, isso é, hoje em dia, equivalente ao que seria, poucas décadas atrás, cortar o telefone e o correio, ou mesmo fechar o acesso à porta da casa ou da loja de alguém. E mesmo assim a coisa não é perfeitamente clara, na medida em que eles simplesmente apresentam o texto completo da postagem como razão para a punição, sem precisar qual teria sido a palavra-tabu. Provavelmente para um nativo ela seria relativamente evidente, dada a sua familiaridade com os sistemas tabuísticos tribais de sua cultura, mas para um brasileiro em geral a coisa simplesmente não faz qualquer sentido. O contexto tampouco importa, por se tratar de um tabu e não de uma questão moral: um amigo foi bloqueado por um longo período, sem aviso prévio, por ter escrito a um amigo íntimo seu algo nas linhas de “fala, viado, amanhã eu passo aí”. Típica grosseria carinhosa masculina, que em absolutamente nada se assemelharia, nem nos sonhos mais delirantes do mais famigerado entusiasta LGBT, a uma violação do tabu igualmente importado da “homofobia” (literalmente, “medo do igual”; na prática trata-se, no mais das vezes, de tolerar atos que sempre foram considerados moralmente condenáveis, em vez de bater palmas entusiasmadas para eles).

Mais do que as importações culturais, que sempre sofrem alguma mediação no Brasil, a implantação direta de um sistema de tabuísmos estrangeiros é uma questão séria, com que o Brasil terá de lidar mais cedo ou mais tarde. Afinal, são muito poucos os bobos que engolem completamente o pensamento racista que justifica cotas e outras barbaridades, por exemplo, e em geral quem as defende aqui o faz por uma visão moral um pouco confusa, não por observância de tabuísmos exóticos. O mesmo vale para o temor ao imigrante e outras tristes importações. A importação de besteiras indireta sofre a mediação da cultura nacional na medida em que é inserida no dia a dia e nas práticas da nossa cultura.

A partir, contudo, do momento em que o WhatsApp e o Facebook se tornaram os meios de comunicação preferenciais da população, é absurdo e criminoso que regras secretas como as listinhas de palavras-tabu do Facebook possam fazer com que sejam punidas pessoas inocentes e ignorantes, com razão, dos sistemas de tabuísmo de outra cultura. São importações diretas, que poderiam ser equiparadas, mutatis mutandis, a uma intervenção estrangeira. A polícia interna do Facebook está para os seus usuários brasileiros como as tropas brasileiras estavam para os cidadãos haitianos. E a ação dessa polícia que não trata os usuários do sistema como cidadãos é brutal. Como já escrevi, hoje em dia cortar o Facebook ou o WhatsApp de muita gente equivale a forçar o fechamento da loja ou mesmo murar a porta da casa. Não é algo que possa ser feito por questões comezinhas ou por posicionamentos políticos, que dirá por tabuísmos de povos exóticos. Esta é uma questão urgente.

As pessoas não se dão conta, em geral, de que no Facebook os usuários são a mercadoria. A rede social é a minhoca no anzol. O negócio na verdade é um sistema de coleta de informações pessoais para revenda a anunciantes, não um sistema de comunicação. A comunicação é permitida e até, em certa medida, incentivada apenas para que através dela o Facebook consiga saber mais sobre o usuário e assim direcionar melhor os anúncios que publica. Os fregueses reais, os anunciantes, podem pela primeira vez na história da humanidade anunciar apenas para mulheres solteiras entre 38 e 45 anos de idade que gostem de chocolate, não possam usar saltos altos por problemas de coluna e prefiram o vermelho ao verde. Ah, sim: e que morem neste ou naquele bairro, ou a menos de tantos metros de uma franquia de uma determinada companhia, que tenham tantos filhos de tal idade, que ouçam tal tipo de música… O céu é o limite. Mas nós, mercadorias nas prateleiras, por menos que pareçamos importantes para a corporação que dirige o meio, somos seres humanos, cidadãos não apenas da comunidade física brasileira quanto da virtual, com direitos e deveres, e quem assume a responsabilidade de prover serviços de comunicação vê-se obrigado moralmente (moral de verdade faz uma falta a eles!…) a mantê-los em funcionamento, a não ser que haja razões graves para interrompê-los. Não precisamos, com todos os problemas que já temos, importar uma polícia dedicada a fazer vigorar tabus exóticos nas nossas comunicações.

Se esta questão não for resolvida, em breve podemos esperar que o mesmo passe a ocorrer em outras áreas da vida; podemos ter a luz cortada porque dissemos algo inocente, porém proibido por um tabu estrangeiro, ao falarmos com nossos botões na solidão de nosso automóvel. Afinal, o reconhecimento de voz do telefone celular pode transmitir a informação a uma central que determine automaticamente a nossa punição. E talvez o tal sistema tenha entendido errado o que dissemos, o que na prática não faria diferença alguma: uma vez punido, punido se está. Não há nenhum impedimento, legal ou prático, para que isso ocorra no momento atual. A tecnologia está aí, assim como a prática da censura punitiva; basta juntar as coisas já existentes, o que fatalmente ocorrerá assim que isso fizer sentido financeiro para as corporações envolvidas. Tudo está cada vez mais entremeado, e não há mais qualquer expectativa de privacidade. A maior parte dos telefones atuais já mantém o microfone perpetuamente ligado, esperando identificar uma expressão que indique que ele deva agir em função de um comando de voz (“OK, Google”, por exemplo). Se o nosso direito a serviços de que dependemos progressivamente mais não for garantido, se pudermos ser punidos por desobediência a códigos secretos de culturas exóticas, neste contexto de completa impossibilidade de intimidade e politização do discurso, corremos o sério risco de vermos muitos dentre nós efetivamente ostracizados, cortados do mercado de trabalho e mesmo das amizades sem que haja absolutamente razão alguma para tal.

Importar besteira é muito perigoso.

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