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O papa Paulo VI, autor da encíclica Humanae Vitae.
O papa Paulo VI, autor da encíclica Humanae Vitae.| Foto: Wikimedia Commons

Na mitologia grega, a princesa Cassandra foi vítima do que hoje chamaríamos de “masculinidade tóxica”: o deus Apolo, para seduzi-la, deu-lhe o dom de prever o futuro. Quando todavia a beldade recusou-se aos avanços do deus, ele acrescentou ao dom uma maldição: nada do que ela previsse seria crido por quem a ouvisse. Já na tradição bíblica a coisa ainda é mais explícita: o destino do profeta é – além de ser via de regra ignorado e ridicularizado por quem o ouve – ser morto por quem não gosta do que ouviu.

Já em nossos tristes tempos, um perfeito exemplo do paradoxo hariolomântico acima descrito nos é dado no caso do papa São Paulo VI. A famosa “revolução sexual”, que deu fim aos 200 anos de vigência da moral burguesa no Ocidente e a substituiu pela apologia da fornicação, tem como pontapé inicial o verão (no Hemisfério Norte) de 1967, dito “Verão do Amor”, e as revoltas estudantis de Maio de 68 em Paris. Estas, convém lembrar, tiveram como reivindicação inicial a permissão de visitas masculinas aos dormitórios universitários femininos. Subentendido estava que não era para jogar biriba que os rapazes queriam adentrar os domínios femininos.

Afinal, poucos anos antes havia sido lançada no mercado a pílula anticoncepcional. Somada aos antibióticos, também de invenção relativamente recente, parecia não mais haver razão alguma para a manutenção da exigência da moral burguesa da preservação da virgindade das moçoilas em flor. Afinal, antes causava pavor a hipótese sempre presente da geração de uma nova vida, de um filho bastardo gerado fora do laço matrimonial, ou do contágio de doenças venéreas. Com a combinação química de hormônios contraceptivos e antibióticos, afastara-se tal medo. O sexo passara a ser distinto tanto do amor (mesmo que em vão tomasse tal nome, apelidando a fornicação de “amor livre”) quanto, mais ainda, da geração. Da fertilidade.

A famosa “revolução sexual”, que deu fim aos 200 anos de vigência da moral burguesa no Ocidente e a substituiu pela apologia da fornicação, tem como pontapé inicial o verão (no Hemisfério Norte) de 1967, dito “Verão do Amor”, e as revoltas estudantis de Maio de 68 em Paris

Eram tempos conturbados. A sociedade burguesa gestada no Iluminismo chegava ao fim após um par de séculos tão curtos quanto intensos, tendo início a Pós-Modernidade. Esperava-se todo tipo de mudança, e os jovens adultos eram irracionalmente tidos como responsáveis pela transformação (para melhor, previa-se) da sociedade moderna em evidentemente avançado estado de decomposição. Da Igreja também se esperava que mudasse, o que não deixa de ser prova da irracionalidade de tais tempos. Até mesmo o que passava por implementação do Concílio Vaticano II, recém-concluído, tornara-se na prática uma revolução, baseada numa hermenêutica da descontinuidade, da invenção, da mudança sem razão.

Pois eis que São Paulo VI, de quem se esperava uma reviravolta tão completa quanto impossível da doutrina cristã acerca da contracepção, teve a coragem e a força de agir profeticamente ao promulgar sua mais famosa encíclica: Humanae Vitae, “Da Vida Humana”. Nela ele reafirmou o que sempre fora crido por todos os cristãos em toda parte: a imoralidade do uso de métodos contraceptivos. Convém lembrar que, mesmo no meio protestante, foi apenas na Conferência de Lambeth de 1930 – mais próxima de São Paulo VI que seu pontificado está próximo de nossos dias! – que a Comunhão Anglicana, como quase sempre tendo a primazia da acomodação ao mundo, permitiu a seus fiéis o uso de métodos contraceptivos.

Não podemos esquecer que a pílula (assim como o divórcio legal, no Brasil) era vendida como algo que dava poder às mulheres, permitindo-lhes “controlar a própria fertilidade”. É o mesmo discurso que é usado ainda hoje, diga-se de passagem, em prol do aborto; afinal, nenhum método contraceptivo que não a completa castração tem 100% de eficácia, e, se a pílula não deu jeito, só resta matar a testemunha inocente da fornicação irresponsável. São Paulo VI, como Cassandra, como os profetas veterotestamentários, porém, apontou que se tratava do exato oposto do que afirmava a unanimidade do discurso “progressista”: a pílula (tal como o divórcio) faria com que as mulheres tivessem não um poder maior, mas, ao contrário, se tornassem meros objetos sexuais. A recepção da encíclica foi tão negativa que, ao longo dos dez anos posteriores de seu pontificado, São Paulo VI tornou-se na prática virtual prisioneiro, desprovido de poder de mando e ignorado pela hierarquia que deveria tê-lo por cabeça. O tempo, claro, comprovou que ele estava certo, e o mundo errado.

Aconteceu tudo o que ele apontou em sua encíclica (se você não a leu, leia), e mais ainda. A mulher caiu do pedestal em que a amarrava a moral burguesa para refocilar na lama. Seu corpo passou a ser percebido como mero playground do homem; sua fertilidade passou a ser percebida como quase uma doença. A sociedade como um todo foi dominada por uma mentalidade contraceptiva, em que a infertilidade passou a ser o ideal buscado, em que o prazer sexual foi desligado da geração de vida, com esta abominada e aquele valorizado como se dele dependesse a sobrevivência de cada um.

Foi ao me deparar com duas matérias, publicadas uma após a outra no portal de um jornalão desses aí, que resolvi escrever este texto. Ambas, confesso, me entristeceram tremendamente. Aquilo que São Paulo VI profetizou está tão nítido, tão lúcido, tanto no objeto quanto na apresentação dele pelos redatores, que só pude chorar ao ver a quê a mulher – a mais preciosa criação divina – foi reduzida em nossa sociedade infértil. Cada uma delas apresentava e condenava pelas razões erradas um procedimento “médico” (e nada hipocrático: “primum non nocere” ficou para trás, pelo jeito) visando fazer de uma pobre moça um objeto sexual mais “pneumático”, como no Admirável Mundo Novo.

A primeira intervenção consiste na injeção, na parede vaginal posterior da pobre moça, de um produto usado como preenchedor de rugas. Seu objetivo é tornar o canal vaginal mais apertado, e assim proporcionar maior prazer ao homem. Segundo a reportagem, o procedimento é vendido como “um presente para o seu parceiro”(!). A segunda consiste na introdução de um bastão de testosterona (hormônio masculino e masculinizante) nas nádegas da infeliz, para que ela sinta mais desejo sexual e fique menos fértil. Os efeitos colaterais são previsíveis: maior massa muscular e crescimento de bigode. As razões apontadas nas matérias para desaconselhar os procedimentos eram meramente burocráticas (uma que outra associação médica não as ter regulamentado, ou irrelevância do gênero), aceitando irrefletidamente, contudo, que a mulher violente o próprio corpo para tornar-se melhor objeto de prazer sexual do homem.

O tempo comprovou que Paulo VI estava certo, e o mundo errado. O corpo da mulher passou a ser percebido como mero playground do homem; sua fertilidade passou a ser percebida como quase uma doença

A estes procedimentos não regulamentados, afinal, poderíamos somar inúmeros outros, dotados dos carimbos e avais burocráticos tão valorizados pelos redatores, mas tão malignos quanto: o implante de curvas artificiais formadas por almofadas de silicone (nos seios, nádegas e até na batata da perna), de fiapos de metal para esticar o rosto, de substâncias várias para engrossar os lábios (em imitação do que ocorre naturalmente quando a mulher está em seu período mais fértil, diga-se de passagem)... Não duvido que em breve sejam lançados esfíncteres artificiais que proporcionem ao freguês, ops, dono, ops, “parceiro” da mulher-objeto a sensação de penetração anal quando do sexo vaginal. Afinal, a hoje ubíqua pornografia conseguiu distorcer a tal ponto a visão de sexo da juventude que não apenas a mulher é percebida como mero objeto de prazer (não mais parceira de amor), mas a estimulação da genitália do homem pela mulher-objeto tem como mecanismos principais não mais o caminho do útero, sim o das fezes ou o da comida. Vias inférteis, em suma. Li algures que já há moças que usam camisetas com os dizeres “também tenho [ânus]”, como protesto contra o crescimento exponencial das relações sexuadas entre homens. É assustador que aquelas que têm o dom de formar e gestar nova vida sejam forçadas a fazer propaganda da possibilidade de manter com elas relações inférteis e antinaturais, em que as fezes substituem os óvulos!

Muitos outros efeitos sociais podem ser traçados a essa primazia da infertilidade, oriunda da separação totalmente de sexo e procriação. Esta, aliás, hoje pode ser feita in vitro, sem sexo – ainda que seja relativamente comum que os responsáveis pelo procedimento fiquem excitados e por vezes usem o próprio esperma; a natureza humana é bastante previsível, e nunca somos totalmente capazes de separar o que Deus uniu. Mesmo assim, a gente teima, e insiste, e se obstina em tentar. E eis que a sociedade, a partir do erro inicial apontado por São Paulo VI, foi-se tornando cada vez mais e mais infértil em tudo o que lhe diz respeito. Em todo plano da sociedade, a infertilidade passou a ser a regra, o ideal buscado, e não mais uma pesada maldição de que fugir.

Vejamos: sem que se perceba a geração de novas vidas como objetivo da relação sexuada estável, as relações com pessoas do mesmo sexo – e mesmo as fantasias pseudorrelacionais em que gente mais interessada em aparecer que em qualquer outra coisa anuncia aos sete ventos da mídia “casar-se” consigo mesma, com bonecos, com imagens eletrônicas e o que mais aparecer – passaram a ser totalmente equiparadas à relação matrimonial. Estão à venda e fazem sucesso bonecas semelhantes a cadáveres de mulheres e mesmo meninas, dotadas dos desejados orifícios, mas desprovidas dos inconvenientes da vitalidade, opinião ou fertilidade.

Do mesmo modo, mesmo entre casais em idade fértil, tornou-se comum que a fertilidade seja artificialmente inibida e a prole seja substituída por animais irracionais, cujos proprietários fingem ter por filhos. Desnecessário dizer que as pobres bestas-feras ficam neuróticas ao sofrer tal abuso, e mais desnecessário ainda dizer que passear com um cachorro num carrinho de neném é uma ofensa tanto aos nenéns quanto à natureza canina do pobre animal. A geração de nova vida, quando permitida ou mesmo planejada, é em geral tão protelada que acabam sendo necessárias medidas médicas radicais, que começam com tratamentos de aumento artificial da fertilidade (para mulheres que já deixaram muito para trás o momento ideal de procriação; afinal, precisavam viajar todo ano!) e acabam, irônica, mas previsivelmente, em fertilizações in vitro.

Indo mais longe, mas na mesma linha, a fertilidade institucional de vários organismos sociais que deveriam transmitir adiante a sabedoria, moral e costumes da sociedade – fazendo para a cultura o que a geração humana faz para as etnias – foi quase totalmente destruída. As instituições educacionais formais nem mesmo fingem mais ensinar, e chegamos a um tal ponto de infertilidade educacional que um diploma de doutorado não garante que o portador saiba ler e escrever. Acidentes irrelevantes como sexo, deficiências físicas e cor da pele passaram a substituir o desempenho acadêmico, mesmo por este ter-se desviado tanto do antigo ideal de formar mentes livres que é compreensível que ele seja ignorado ou mesmo preterido.

Do mesmo modo, toda a educação que sempre havia sido transmitida no âmbito familiar – das fórmulas básicas de polidez, como agradecer e pedir por favor, aos métodos de garantir uma boa amamentação, ou mesmo de educar uma criança pequena – teve sua transmissão interrompida subitamente. Hoje em dia é comum que os filhos da geração que nasceu na época da Humanae Vitae (e ainda foi educada na prática anterior), bem como os filhos desses filhos, não percebam obrigação alguma de contribuir com seu trabalho para o lar e para a sociedade, vivendo como eternas crianças mimadas, mesmo nas classes mais baixas. O que mais se vê são criancinhas maquiadas tirando selfies no celular ou tablet próprio, e o que menos se vê são crianças educadas. O que mais se vê são rapazes e moças que nem estudam nem trabalham, e acham perfeitamente natural viver encostados nos pais ou mesmo avós. Ao andar pela roça, percebe-se claramente que só pega na enxada quem tem a cabeça branca; os jovens buscam ativamente a “infertilidade social”, negando-se a colaborar e fazer o que deveria ser sua parte. A produzir riqueza. A sustentar-se e ajudar o próximo.

É comum que os filhos da geração que nasceu na época da Humanae Vitae (e ainda foi educada na prática anterior), bem como os filhos desses filhos, não percebam obrigação alguma de contribuir com seu trabalho para o lar e para a sociedade, vivendo como eternas crianças mimadas

Mesmo o campo social da religião passou a ser em enorme medida dominado por novas denominações em que se completa “venha a nós” com “a minha própria vontade”. “Cultua-se” (ou melhor, intima-se) um deus que dá carros e telefones celulares, mais semelhante a um título de capitalização (ou “dizimização”) com sorteios mensais que a qualquer noção clássica da Divindade. Ironicamente, uma das novas religiões do subjetivismo, ainda que não compartilhe a “teologia da prosperidade [material]” a que me referi logo acima, tem o nome de “Santo Daime”, sendo “Daime” efetivamente a contração de “dai-me”. É só isso o que membros inférteis de uma sociedade infértil demandam dela e da própria Divindade: que tudo lhes seja dado, e nada lhes seja cobrado.

O próprio sexo, ou melhor, o reconhecimento social do evidente binarismo sexual, com seus dimorfismos físicos, psicológicos e espirituais, passou a ser negado. Com isso, claro, como profeticamente apontou São Paulo VI, a vítima maior é sempre a mulher. Os poucos espaços seguros de que as mulheres ainda dispunham, como banheiros e vestiários femininos, são agora invadidos por toda raça de marmanjo, bastando aos invasores declarar que “se sentem” mulheres. Bem que os rapazes de Maio de 68 poderiam ter tentado este truque... Os esportes femininos, igualmente invadidos por pseudomulheres, passaram a contar com a presença no pódio de toda espécie de fracassados que jamais conseguiram alcançar uma boa posição nos esportes masculinos e por isso decidiram invadir os femininos.

O sistema judiciário criminal tornou-se infértil, em termos de punir os culpados; o sistema noticioso, além de ter perdido a capacidade de levar notícias, se não isentas, ao menos com viés conhecido, passou a funcionar como componente de um vasto sistema de censura de informações, pintando como “fake news” coisas que pouco tempo depois serão admitidas como verdade, e vice-versa; as redes sociais cibernéticas substituíram em enorme medida as redes sociais verdadeiras, funcionando todavia de modo oposto ao destas e separando, mais que unindo, as pessoas e servindo igualmente de veículo à censura. E por aí vai.

Como Cassandra, São Paulo VI cantou essa bola. Mas, ainda como com ela, ninguém acreditou nele. O resultado é o que temos hoje por toda parte: a mulher objetificada, a infertilidade erigida em valor social, a sexualidade masculina mais boçal não apenas aceita, mas imposta como substituto da complexíssima sexualidade feminina, negada liminarmente pela sociedade contraceptiva. Os poucos espaços abertos pelas e para as mulheres na sociedade vão-se fechando, invadidos por homens ou pela exigência de que as mulheres se comportem como se pertencessem ao sexo oposto. De nada adianta, em termos sociais, que as mulheres sejam hoje a maioria dos estudantes do sistema de ensino que já foi um dia superior, se o preço é que neguem a própria capacidade de produzir e gestar novas vidas. De nada adianta que a mulher tenha sido finalmente liberta da prisão domiciliar burguesa, se o trabalho assalariado não lhe é escolha, sim imposição, vindo ainda acompanhado da exigência prática e brutal de infertilidade.

O que impede que o corpo funcione corretamente não é remédio, mas veneno. A famosa pílula é indiscutivelmente um veneno, não um remédio. Que tal veneno se espalharia de tal maneira pela sociedade que a infertilidade viesse a dominar e a substituir a fertilidade querida, buscada e abençoada por todas as gerações anteriores, que o que era vendido como uma libertação da mulher viesse a tornar-se meio de escravização ainda pior que a anterior, que a própria natureza feminina, com sua beleza e sua complexidade, fosse liminarmente negada e transformada em algo autoatribuído pelo interesse pessoal... Tudo isto só podia ser percebido por um verdadeiro profeta. E, como sói acontecer aos profetas, não só ninguém o ouviu, mas todos o espezinharam.

São Paulo VI, rogai por nós!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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