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O presidente americano Donald Trump, após fazer o discurso do Estado da União, um dia antes da votação do seu impeachment no Senado.
O presidente americano Donald Trump, após fazer o discurso do Estado da União, um dia antes da votação do seu impeachment no Senado.| Foto: AFP

Ontem transcorreu a patética votação do impeachment do presidente Trump. Era bastante evidente para quem tenha acompanhado o caso e visto a absoluta falta de razões para tão séria medida que ele escaparia desta armadilha. No fundo, todavia, não importa; escapando desta, outra estará à frente logo. Não é nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que se tenta arrancá-lo da Casa Branca, ou negar de alguma forma a legitimidade de seu mandato. Isto por uma razão simples: o problema não é o que ele tenha feito ou deixado de fazer, sim a sua própria presença. Assim como a esquerda brasileira faz com nosso bolsopresidente (aliás, em imitação abjeta do comportamento da esquerda americana), Trump é pintado pela esquerda ianque de fascista, demônio, monstro, e o que mais a parca imaginação de seus opositores puder soltar pra ver se cola pela repetição constante.

A sociedade americana sempre foi, em virtude de suas origens no puritanismo calvinista inglês, uma sociedade dualista, em que ou bem se é santo e puro ou bem se é um demônio em forma de gente, sem meios-termos, sem tons de cinza. Tudo é binário: ou uma coisa, pessoa ou comportamento é ótimo ou é horrível, e pronto. Haja visto o caso recente da maconha, que era a erva do Diabo e virou panaceia universal da noite pro dia, assim como o dito “casamento gay” (que o próprio Obama não aceitava quando foi eleito, mas por cuja recusa hoje se pode ir parar na cadeia) e outras reviravoltas súbitas. Sobre este tema, já escrevi aqui mesmo, por exemplo, há uns anos, sobre o modo como os cantores Little Richard e Cauby Peixoto, nascidos quase ao mesmo tempo, lidaram com sua atração pelo mesmo sexo: enquanto Cauby simplesmente não fazia fanfarra alguma e era perfeitamente tolerado, com enorme fã-clube, o pobre Little Richard alternava fases em que soltava a franga completamente com outras em que se tornava protestante radical. Sem meio-termo.

Este dualismo, todavia, cresceu tanto nos últimos anos que alcançou toda uma nova etapa na política de nossos irmãos do Norte, e o impeachment fracassado é apenas mais uma jogada deste processo. Hoje os que apoiam o Partido Republicano simplesmente não falam mais com os que apoiam o Partido Democrata (são estes os dois partidos realmente existentes naquele país dualista; os outros não conseguem eleger ninguém), e vice-versa. É mãe que não fala com filho, marido e mulher que se divorciam, tudo por conta de besteira de política. Mas são os simpatizantes do Partido Democrata – a esquerda da política americana – que vêm puxando o fenômeno. Durante a longuíssima administração Obama (democrata), apenas um pequeníssimo porcentual de republicanos negou-se a aceitar plenamente sua autoridade de presidente. Meia-dúzia de três ou quatro gatos pingados chegou mesmo a defender a tese de que ele na verdade não teria nascido em território americano, e por isso não seria validamente presidente. Estes, todavia, jamais passaram de uma minoria ínfima totalmente irrelevante na cena política de lá. O grosso do Partido Republicano moveu-lhe certa oposição, é bem verdade, mas sem jamais, em momento algum, negar-lhe o direito de estar na Sala Oval da Casa Branca, negar a legitimidade de seu mandato.

O Partido Democrata jamais aceitou a legitimidade do mandato de Trump, e é esta a apavorante novidade para quem acredita e aposta na democracia

A situação do atual ocupante da Casa Branca é bem diferente. Trump, na verdade, jamais foi um quadro do Partido Republicano; ao contrário, até. Em entrevistas dadas em outros tempos ele defendeu as propostas do partido que hoje lhe faz oposição, a que todavia jamais se filiara, e apenas às vésperas da eleição pulou de paraquedas no Partido Republicano. Foi, além disso, escolhido candidato e mesmo eleito contra a vontade expressa dos dirigentes de seu novo partido. Um deles, inclusive, rompeu fileiras e votou a favor de seu impeachment. Sua eleição foi um fenômeno imprevisto; seu discurso pacifista (abandonado depois de assumir a presidência, infelizmente) desagradou a gregos e troianos – ou a republicanos e democratas –, mas soou como música aos ouvidos de enorme parcela da população, o que acabou lhe valendo a Casa Branca.

O Partido Democrata, todavia, jamais aceitou a legitimidade de seu mandato, e é esta a apavorante novidade. Ou, ao menos, uma novidade apavorante para quem acredita e aposta na democracia. Desde o primeiro momento, desde antes mesmo de sua posse, a oposição tentou negar-lhe a vitória que obteve nas urnas. Primeiro inventaram toda uma complicada e delirante fantasia, segundo a qual o seu pacifismo provaria de alguma maneira que ele seria um pau-mandado de Putin, o Czar de todas as Rússias. Os russos teriam conseguido enganar o eleitorado americano com anúncios no Facebook, ou besteira do gênero. Fora das fileiras mais fanáticas do Partido Democrata, evidentemente, ninguém levou a sério tamanho bestialógico. Mas, ao ver que aquela técnica não obteve sucesso, passaram adiante para outras maneiras de arrancá-lo do trono, da qual o impeachment – de um presidente com enorme chance de ser reeleito, às vésperas de nova eleição, nada mais e nada menos – é apenas a mais recente. Esses ataques todos provêm do fato de que os adeptos do Partido Democrata simplesmente não reconhecem Trump como presidente. “Ele não é meu presidente” é uma expressão useira e vezeira em seus escritos e discursos.

E isto é uma machadada na raiz do sistema democrático representativo, aliás sob ataque ferrenho em dezenas de países mundo afora, com manifestações de rua e protestos movidos por causas tão aparentemente incompreensíveis para os estrangeiros quanto a dos nossos de 2013, quando a população levantou-se contra a cleptocracia petista a partir da causa irrisória de 20 centavos de aumento do preço do ônibus. As pessoas estavam fartas, simples assim. Mas não estavam fartas de aumentos de passagem, e sim de não se perceberem representados por seus supostos representantes. Nos EUA, o presidente sempre foi tido como um semideus, uma figura olímpica a pairar entre o Céu e a Terra. Trump acabou com isso. Ou, antes, sua figura bizarra e a oposição do momento acabaram com isso. É bem verdade que é difícil levar terrivelmente a sério o status de semideus de um sujeito que pinta a cara de laranja por querer (ele bem que tentou parar; ficou quase um mês com a cara limpa quando foi eleito, mas o vício falou mais forte) e evidentemente tuíta no troninho matinal. A derrocada da presidência de seu trono olímpico foi, é fato, ajudada pelo seu ocupante atual. Mas tamanha negação da legitimidade de um governante eleito é novidade absoluta. Mesmo nos piores tempos dos EUA, mesmo nos tempos da Guerra Civil fratricida em que os americanos lançaram-se uns contra os outros na primeira guerra total da história, os presidentes opostos eram tidos pelos seus oponentes como presidentes reais. Não é mais o caso.

O senador americano Lindsey Graham, aliado de Trump, declarou após a votação que “este impeachment motivado por partidarismo feriu a presidência (...). Infelizmente, duvido que meus colegas [do Partido Democrata], movidos por ódio ilimitado ao presidente Trump, tenham a capacidade de virar a página”. Ele tem toda a razão: a presidência americana foi ferida, e ferida de morte, por este processo absurdo, baseado em irrelevâncias e sem razão alguma de ser que não o ódio partidário. Instaurou-se nas fileiras da oposição americana tamanho clima de vale-tudo, tamanho ódio, tamanho desespero, tamanha negação da legitimidade do presidente, que de semideus, em perfeita demonstração do dualismo americano, o presidente passou a demônio. E, arrisco dizer, isso valerá a partir de agora para qualquer presidente: se por artes satânicas Hillary Clinton for eleita, ela terá sua legitimidade negada liminarmente pelo Partido Republicano; sendo Trump reeleito, os ataques oriundos das fileiras do Partido Democrata só farão acirrar-se. Acabou a mágica da presidência dos EUA.

A oposição e a situação americanas dividem o país mais ou menos em quantidades iguais de pessoas, com a oposição de esquerda concentrada nas megalópoles das costas atlântica e pacífica e a atual situação de direita (composta de gente basicamente conservadora que votou em Trump devido a sua plataforma, somada a leais seguidores do Partido Republicano), no vasto e pouco povoado centro daquele país de dimensões continentais. Mas as elites esquerdistas das costas não reconhecem o interior, a que muitos se referem como “a zona sobrevoada” (num voo de uma costa a outra). E, mais gravemente, não reconhecem como seu representante, de forma alguma, que dirá como semideus, o homem da cara laranja.

A democracia representativa, contudo, depende de que o Poder Executivo seja percebido e aja como representante de todo o eleitorado. Após a campanha, em que a maioria deve fazer ouvir a sua voz, os partidarismos, pressupõe-se, seriam abandonados por todos os lados. Não é mais o caso nos EUA. Ao negar a legitimidade do presidente e atacá-lo de todas as formas possíveis aquém do golpe de Estado aberto ou – para manter a tradição – o assassinato (coisa que por lá já aconteceu algumas vezes), é todo o sistema de democracia representativa americano que é vitimado. É bem verdade, mais uma vez, que Trump não ajuda. Ainda que sua oponente na eleição de 2016, a Açougueira de Benghazi Hillary Clinton, realmente merecesse cadeia, não é, digamos, de bom tom conduzir plateias frenéticas a coros de “prendam-na”, referindo-se à candidata do outro partido. Menos ainda fazê-lo já presidente dos EUA. E como é extremamente provável que seja ela a candidata do Partido Democrata novamente nas próximas eleições, o espetáculo deve continuar. E com isso a democracia representativa enfraquecer-se-á mais e mais.

A democracia representativa depende de que o Poder Executivo seja percebido e aja como representante de todo o eleitorado

E, como a nossa esquerda adora importar todo tipo de imbecilidade proposta pelo Partido Democrata americano, estamos aqui numa situação em muito semelhante. O bolsopresidente não é percebido como legítimo por uma esquerda que chegou a inventar ter havido um golpe contra a Incompetenta Governanta. Há até uma filhinha de papai empreiteiro corrupto tentando vender este peixe podre no exterior no momento. E o próprio meme-em-chefe de nossa triste república, mesmo, como seu mestre e senhor Trump, também não ajuda em nada ao enfiar o bolsocoturno na bolsoboca de dois em dois dias, como um reloginho ou uma metralhadora de besteira. A coisa ainda piora quando se pensa que não somos exatamente especialistas nisso de democracia representativa. Afinal, a República começou com uma quartelada, e mais ou menos uma vez por geração houve nova quartelada, em geral antecedida e sucedida pelo saque do erário em prol de algum grupelho ligado ao poder. Além, claro, da absoluta e permanente necessidade de engordar bem os empreiteiros, para que possam distribuir verbas em caixa dois a quem lhes distribui obras. Pudera que para sair dessa Bolsonaro esteja mandando o Exército fazer as obras.

Como disse mais acima, todavia, essa crise da democracia representativa não é o apanágio nem do Brasil nem dos EUA. Ao contrário, ela está em plena vista, por toda parte. As reviravoltas por que a Inglaterra teve de passar para conseguir sair da União Europeia, mesmo com enorme apoio popular ao Brexit, são prova disto, como o é o descompasso entre a opinião pública alemã e a política imigratória de seu governo, ou ainda os Coletes Amarelos franceses. Vê-se, assim, ser extremamente provável que esse sistema esteja em seus estertores, mais ainda por a crise ter agora atingido em cheio os seus lugares de origem, de cultura anglo-saxã.

Não há como saber, contudo, o que pode entrar em seu lugar. Só se pode saber que algo o fará. No plano internacional, a aliança dos Brics originais (de que o bolsogoverno do Brasil tem se afastado, apostando no cavalo errado para o médio e longo prazo), ao contrário das esferas ideológicas do século passado, de que de uma certa maneira os EUA ainda são resquício, não se importa com a forma de governo que cada país venha a escolher, desde que participe da economia mundializada. “Não importa a cor do gato, desde que cace ratos”, como já declarou um dirigente chinês. As opções são na prática infinitas, e é provável que cada país faça a transição de uma maneira. Sem que haja a disputa ideológica entre grandes potências que dominou o século passado, substituída agora por uma disputa muito mais cheia de nuances por mercados, é provável que surjam novas formas de governo e ressurjam formas que há 20 ou 30 anos seriam consideradas fósseis de um passado remoto.

Só o que se pode ter como certo é que a crise da democracia representativa, tendo chegado ao núcleo de onde derivou esta forma de organização política da sociedade, está em suas etapas finais. Talvez ela volte a existir em pequena escala, tanto nos países anglo-saxões quanto em outros que tiveram e aprovaram a experiência; dificilmente, contudo, há alguma chance de que ela seja percebida, daqui a uma ou duas gerações, como o “óbvio melhor” ou – nas palavras de Churchill – o menos ruim dos sistemas de governo, menos ainda de gigantescos Estados nacionais. A experiência da modernidade está soçobrando.

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