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Os lobos e o Mickey
| Foto: Skeeze/Pixabay

Na sociedade urbana moderna tudo parece sob controle. Até mesmo as coisas mais horrendas, de que hoje se toma conhecimento quase instantâneo pelos meios de comunicação de massa, como terremotos e guerras, de uma certa maneira não nos afetam. Afinal, por mais emocionalmente pesada que seja a narrativa televisiva da situação de famílias num lugar devastado pela guerra, por exemplo, não há risco de um míssil ou bala perdida sair da televisão e nos acertar no sofá, e logo virá outra coisa – um comercial ou outro programa – e ela cessará de existir diante de nossos olhos. A própria repetição incessante de tragédias distantes que nos chegam atrás do vidro protetor da tela da tevê, aliás, nos dessensibiliza a elas.

Do mesmo modo, tudo aquilo que inexiste na cidade, como a natureza não domada e não planejada, nos chega no mais das vezes duma maneira em grande medida oposta à sua realidade. Um documentário sobre ursos nos faz lembrar mais de ursos de pelúcia que de feras sequiosas de sangue humano, até por eles aparecerem na tela muito menores que o que realmente são. Mais ainda: até mesmo quando o perigo real do convívio com tais criaturas é apontado, ele é sempre censurado a partir de um certo limite. Não passarão jamais num documentário um urso devorando um bebê vivo, por exemplo. Até mesmo os restos mortais duma vítima humana dificilmente serão mostrados.

Isto leva ao que eu costumo chamar de “mickeização” da fauna: um camundongo real é um bicho sujo que apavora muita gente boa, mas o Mickey é outra coisa. O Mickey é nosso amiguinho. E, a partir deste prisma absurdo por irreal, ao conhecer a fauna selvagem pela telinha mickeiza-se toda ela, ou ao menos todos os animais de sangue quente. Ursos são os ursinhos carinhosos, a vaca é a Clarabela, e o lobo é algo mais semelhante a um totozinho domesticado que ao arquétipo do perigo que sempre representou em todas as sociedades que tiveram o desprazer de lidar com tais feras na vida real.

Ninguém mais teme o lobo. Ele foi totalmente mickeizado, e agora é ainda menos perigoso que o cômico vilão dos Três Porquinhos da Disney

Daí, por exemplo, os planos – aprovadíssimos pela maioria dos eleitores e pela totalidade da população urbana – de reintrodução de lobos (!) nas matas da Inglaterra, Irlanda e Alemanha. O arquétipo da fera assassina foi perdido, e ninguém mais teme o lobo. Ele foi totalmente mickeizado, e agora é ainda menos perigoso que o cômico vilão dos Três Porquinhos da Disney. Aliás, ele é atraente. Bonito, vistoso. As pessoas querem estar perto deles, e buscam ativamente encontrar lobos, na ilusão de serem tais feras nada mais perigosas que o Mickey da Disneylândia, com quem se bate uma selfie.

O Mickey original é o que se costuma chamar antropomorfização de um animal, ou seja, projeção num bicho de características humanas. É também o que ocorre nas fábulas que nos transmitiram, e transmitem ainda para quem não prefira as versões edulcoradas agora disponíveis, o arquétipo do lobo como encarnação do mal. Do perigo. O monstro assassino por antonomásia, que mata quem se lhe cruze o caminho. O lobo que é vencido dialeticamente pelo cordeiro à beira do regato o devora mesmo assim, mostrando que sua maldade está fora do alcance do diálogo e da lógica. Assim como não adianta tentar convencer logicamente um estuprador ou ladrão da superioridade da virtude sobre o vício, não adianta gastar saliva com lobos. Lobos são maus, e lobos antropomorfizados em contos de fadas nos preparam, ou preparavam, para reconhecermos gente má. E como há gente má!

Já na mickeização, temos de uma certa maneira o fenômeno oposto. Em vez de projetar em animais dotados de fala humana os comportamentos de seres humanos (maus, bons, ou situados em algum lugar da infinita escala que separa estes extremos), o Mickey é bom. O Pateta é bom. Até o Tio Patinhas, com sua ganância infinita, é bom. O Mickey – mesmo sendo a antropomorfização dum animal repulsivo – é nosso amiguinho, e toda a sua turma, de uma maneira ou outra, é composta de outros Mickeys. Aliás, é curioso que os personagens menos distantes dum ser humano, com pele de cor normal, gorduchinhos, com barba por fazer, são os vilões Irmãos Metralha.

Para gente criada em apartamentos de cujas janelas não se vê em estado de liberdade mais que pombos, a mickeização da fauna faz com que se ignore totalmente não apenas seus perigos, mas até mesmo seu papel ecológico. Campanhas para “salvar as focas” pululam, mesmo não estando elas de modo algum ameaçadas, por uma razão absurda. É que, vejam só os senhores, filhotes de foca lacrimejam sem cessar para que seus olhos não congelem. Esta curiosidade veterinária os torna excelentes candidatos à mickeização: vejam, a pobre foquinha está chorando. Precisa de ajuda. Isto é tido como boa tevê, porque vende bem. Corta-se então para o comercial, e o papo diante da máquina de fazer doido estará centrado na pena que se tem dos pobres animaizinhos choraminguentos. Muita gente, então, vai colaborar financeiramente para “salvar as focas” que não correm perigo algum. Ou os coalas, que são ursinhos de pelúcia vivos. Ou os simpáticos cangurus, hoje uma praga por ausência de predadores naturais que mantenham sua população sob controle. Todos – focas, coalas, cangurus, lobos, ursos, o que for – são hoje o Mickey. Até mesmo as cobaias de laboratório são o Mickey. É da mesma mickeização da vaca e da galinha, ainda, que vem o veganismo como opção “ética”: “que horror, querem fazer bifes da Clarabela!”...

E não apenas o lobo real, a fera que em bandos busca carne viva e fresca para devorar, avançando em grande velocidade por terrenos inóspitos e gelados, mas também o nosso lobo interior é perdido de vista. A surrada expressão “o homem é o lobo do homem” perde seu sentido quando se mickeiza tanto o lobo quanto o homem. Quando se adere a um rousseaunismo barato em que as pessoas são todas boazinhas (“do bem”) e os estupradores, assaltantes e assassinos são o Bom Selvagem, as reais vítimas duma sociedade cruel.

O problema de base é a vida demasiadamente protegida do habitante duma megalópole hodierna, que nada parece ter a temer do clima – um perigo mais para os fofíssimos ursos polares, que então devemos proteger, mas que não incomoda tanto quem raramente sai de ambientes em que o ar é condicionado. Gente que não consegue perceber um animal, qualquer que seja, como potencialmente perigoso, por ser o Mickey, que é nosso amiguinho. O disparate chega ao ponto de ter havido por estes dias a notícia dum sujeito que achou um jacaré na rua (!) e o levou para o quintal de casa (!!), por medo de o Mickey, ops, o réptil assassino ser atropelado (!!!). Gente que não vê qualquer relação entre a água que cai do céu como chuva e a que sai da torneira de casa. Que mal sabe se é noite ou se é dia, e que certamente não tem noção alguma da fase atual da Lua.

A surrada expressão “o homem é o lobo do homem” perde seu sentido quando se mickeiza tanto o lobo quanto o homem. Quando se adere a um rousseaunismo barato em que as pessoas são todas boazinhas (“do bem”) e os estupradores, assaltantes e assassinos são o Bom Selvagem

O habitante da metrópole vive numa Matrix cuidadosamente construída, em que tudo é controlado, condicionado e planejado, e em que os riscos físicos são supostamente ínfimos (mesmo porque os mortos serem rapidamente ocultados). Numa sociedade de tamanha fartura – à custa das próximas gerações, claro – que é possível a um mendigo ser obeso mórbido. Onde qualquer mamãezinha ganha tanta roupa para o bebê que pode se dar ao luxo de jogar fora as que ficam sujas demais (história real que presenciei; o detalhe é que a mãe tinha cinco filhos e o marido ganhava salário mínimo).

E é aí que fica fácil entrar na viagem errada, erradíssima, de Rousseau e mickeizar também o homem. E é daí, mais uma vez, que o primeiro e maior de todos estes lobos internos que temos, a que a tradição ocidental chama concupiscências, é também mickeizado. E, pior, tratado como se fosse uma brincadeira inconsequente. Estou – como aparentemente todo mundo está, o tempo todo e em todo lugar, se se tomar a grande mídia por parâmetro – falando de sexo. O sexo sempre aparece, e a mickeização do sexo faz com que ele passe por coisinha inocente até a hora em que se revela lobo voraz.

A sociedade, então, sexocentricamente, alterna-se entre a propaganda dum sexo supostamente inócuo, uma brincadeirinha divertida que todo mundo tem de fazer, e o horror diante dum sexo criminoso, abusivo, sem jamais se dar conta de que são os dois lados duma mesma moeda. Que mickeizar o sexo não vai fazer com que tenhamos os “sobrinhos” Huguinho, Zezinho e Luisinho para participar de inofensivas aventuras ao nosso lado. Não, ele continua um lobo voraz que nos rodeia, buscando a quem devorar. E é então que, para nosso horror, encontramos também por toda parte o sexo total e abertamente desordenado, o sexo como abuso do próximo, como coisificação do corpo do outro acompanhada de desrespeito liminar à sua integridade.

É o que o noticiário frequentemente nos mostra acontecendo nas inúmeras seitas que pululam por aí. Umas se dizem cursos de coaching ou de “liderança” (seja lá o que isso for), outras se dizem intermediárias entre o material e o espiritual (como o caso do dito João de Deus), outras se afirmam isto ou aquilo, mas todas elas têm um ponto em comum: quando se torna possível ao líder usar sua posição para fazer de seus seguidores bonecas masturbatórias vivas, ele o faz. O lobo está sempre presente, e sem um esforço consciente não se tem como dele se resguardar. Vemos isto também na Igreja, infelizmente, e é também raro o dia em que um dito pastor protestante não apareça no noticiário acusado de abusos. É a natureza humana, e não deveria ser causa de espanto que tais coisas ocorram. Há, todavia, enorme escândalo e espanto indizível entre todos os que mickeizaram o lobo do sexo, achando que ele seria domado pelo amuleto da camisinha, sem se dar conta da sua força e da sua capacidade de fazer os seres humanos (especialmente, mas não só, os machos) perder completamente a cabeça.

Hoje há muitos pais que dão aos filhos ou filhas uma camisinha para levar consigo quando saem à noite, como se ela fosse um patuá. Como se o sexo casual com camisinha não fosse uma etapa dum processo que vai levar o adolescente a ter o coração partido tantas vezes que jamais conseguirá entregar-se de verdade a alguém quando chegar a uma idade mais madura e mais propícia para compromisso real. Como se impedir a função procriativa fosse impedir também os danos emocionais, espirituais e mesmo intelectuais que podem advir de brincar assim com fogo. Ou com lobo. Ninguém “dança com lobos” e sai vivo, porque lobos, decididamente, não só existem como não têm nada a ver com o Mickey. O sexo como lobo, o sexo como perigo, o sexo que derruba com seu sopro as paredes de palha e de madeira, este foi esquecido. Este é negado. E, pior ainda, por ser negado, por ser tornado aparentemente inócuo pela mickeização, ele passa a poder correr solto. Todos acham lindas as matilhas de lobos correndo pelas ruas.

E é por isto que frequentemente todos acham normal e “mutuamente consentida” (o mantra que acompanha o patuá da camisinha) a relação dum guru desordenado com seus discípulos, em que suas fantasias enchem-lhes as cabeças e sua genitália preenche-lhes os buracos sem que eles nem sequer sejam por ele percebidos como seres humanos reais e dignos de respeito. Ela frequentemente perdura até mesmo por décadas, como o famoso caso de Osho/Rajneesh demonstra, sendo percebida como errada, sendo vista como o abuso que é, apenas quando outros fatores entram em jogo. Denúncias de estelionato, reclamações de pais de vítimas ou – no caso Rajneesh – até mesmo a tentativa de envenenar todo o eleitorado duma cidade são necessárias para que alguém perscrute e perceba como desordenada a relação entre a genitália do guru e os corpos de seus seguidores. Para que alguém se aperceba de que ali há um lobo a caçar carne fresca.

Onde quer que seja possível haver uma relação de autoridade que desperte o lobo interior da concupiscência da carne, ele estará

Gurus são apenas um caso mais visível, por exagerado. Afinal, entrar numa seita leva a uma entrega absoluta, dum grau muito maior que, por exemplo, a dum aluno em relação a seu professor num contexto acadêmico normal. O seguidor dum guru está para ele como uma criança pequena para seus pais. Mas – e aí voltamos às páginas policiais – o mesmo lobo caça no interior de famílias, em que pais ou padrastos abusam de sua autoridade para abusar dos corpos das crianças, causando desordens psicológicas que no mais das vezes perdurarão por toda a vida da vítima. As matilhas também rondam as escolas, em que o incentivo social ao sexo casual faz com que se tenha tornado cada dia mais fácil que um professor abuse sexualmente de seus alunos. E estes, no romantismo da adolescência, muitas vezes pensam estar vivendo uma linda história de amor, quando na verdade estão fazendo as vezes duma boneca inflável. Também no trabalho há feras a rondar. E nas forças armadas. E nos movimentos religiosos.

Onde quer que seja possível haver uma relação de autoridade que desperte o lobo interior da concupiscência da carne, ele estará. Afinal, tanto o homem é atraído pela mulher que se lhe submete quanto para ela a mesma relação de poder o torna atraente. E é exatamente a transformação duma relação de poder numa relação sexuada – que deveria partir de um patamar completamente diferente, em que o respeito mútuo levaria a assumir deveres mútuos, com poderes mútuos – que gera e faz identificar o abuso.

O lobo professor não é conhecido da aluna; ela só conhece o homem que ela levanta a cabeça para ver, que tem as perguntas e respostas, e em cujas mãos está o poder de punição. O homem de cuja companhia ela não pode fugir. O lobo clérigo tampouco é conhecido da fiel, que só conhece o homem que fala por Deus. O lobo chefe tampouco. E por aí vai. Por outro lado, nenhum desses lobos conhece ou mesmo respeita a pessoa real da linda ovelhinha ali sentadinha a absorver cada palavra que eles dizem, e não percebe que o lobo interior dela está como que combinando com o seu para fazer duma coisa outra, perigosíssima para ambos e completamente diferente da relação que ela perverte. O abuso vem do poder, e o poder gera abuso se não houver um esforço consciente de não permitir que ele ocorra. Ora, com o lobo mickeizado, o abuso parece inofensivo e até belo. Logo, quase ninguém tenta impedir que ele ocorra. As poucas tentativas institucionais em geral são canhestras e arbitrárias, como por exemplo as leis americanas que proíbem o sexo entre uma pessoa maior de idade e uma pessoa menor de idade, ainda que um tenha se tornado maior na véspera e o outro se vá tornar no dia seguinte. O lobo não está na diferença de idades, menos ainda no cruzar duma data arbitrária.

Tudo isto se deve à negação da natureza humana, com seus tantos lobos ou com um par de cavalos furiosos em disparada, como queria Platão, em que cada um puxa nossa carroça prum lado. Tudo isto se deve à criação de bolhas físicas (o que é um carro moderno, de que mal se pode abrir a janela, ou um shopping?) e mentais (facilitadas agora pelas redes sociais). O cidadão urbano médio acha que seu vício em pornografia é “normal”, quiçá “saudável”, e convencido que está dos poderes mágicos da camisinha, não vê no mickeizado lobo do sexo mais que um divertido e acolchoado playground. Uma Disneylândia!, onde nada de mau jamais poderia acontecer. Nada o afeta. A morte praticamente inexiste para ele, que pode perfeitamente chegar ao fim da vida sem jamais ter sequer visto um cadáver... ou um parto. Afinal, quando perto de morrer as pessoas são escondidas em hospitais, e o mesmo se faz com as mães prestes a parir. Não há mais para ele o arquétipo do lobo, e mesmo o da raposa espertalhona quase sumiu. Tudo é Mickey. E é sério o risco de que, ao olhar para a própria mão, dentro de seu casulo, o urbanita veja uma luva com quatro dedos gorduchos. Muito fofa, mas nada real. Enquanto isso, ao fundo, ouve-se o uivar de tantos lobos soltos e famintos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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