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O abuso não tolhe o uso
| Foto: Pixabay

Com os perfeitamente previsíveis vetos do presidente à lei de abuso de autoridade tem-se mais um round de uma luta que na verdade é ainda mais que política: é histórica, é psicológica… é uma confusão bem brasileira. A relação da legislação penal (e processual penal, claro) com o mundo real sempre foi algo muito complicado neste país. O Brasil, decididamente, não é para iniciantes. Lembremos, entre outros pontos históricos, que o próprio Ruy Barbosa teria sido o mandante de literal queima de arquivos sobre a escravidão, depois de sua abolição. Escravidão esta que, diga-se de passagem, não constava em lei.

Aqui nós não temos, graças à nossa cultura, o que costumo chamar de “papelucholatria”, doença moderna com efeitos mais fortes nos países de tradição protestante. Para as nações que sofrem deste mal, o papel é mais importante que a realidade. A lei “pega” pelo simples fato de ser promulgada, de estar ali no papel com todos os carimbos, independentemente de sua justiça ou mesmo iniquidade. Na Alemanha nazista, por exemplo, todos os crimes cometidos pelo Estado foram ordenados por lei, e por isso – pelo superpoder dos papeluchos carimbados – eram tidos por bons, certos e justos. Já aqui a lei e a realidade têm uma tênue ligação, para o bem do povo e a felicidade geral da nação, bem como para o horror dos viciados nas fábulas do positivismo jurídico. A lei penal, então, que é onde se encontram mais fortemente dois âmbitos morais irreconciliáveis – o da moral aristotélico-cristã que informa a sociedade e o da tipificação jurídica das infrações – é via de regra algo que aparece ex post facto, uma espécie de leito de Procusto onde o pobre delegado enfia a realidade dos fatos, tentando traduzir do búlgaro ao javanês uma fábula intraduzível.

No nada saudoso tempo em que foram compostos, como quem compõe alta poesia ou livro de fantasia delirante, os nossos códigos penais, por exemplo, a punição formal (ou seja, a punição legal, prevista nos códigos, que para um alemão ou americano seria evidentemente real) era uma fantasia. Ou, melhor dizendo, era um último recurso, usado por poucos. Poderíamos dividir a reação da polícia de então às infrações contra a ordem social (contra a pessoa ou contra a propriedade; no fundo tanto faz; trata-se de infrações a uma ordem real, porém profundamente alheia aos textos legais) em dois tipos reais. Ambos, claro, ausentes da tipificação legal e mais ainda da processualística. O primeiro deles, e mais comum, era o crime cometido por um dos três pês: os pretos, os pobres e as prostitutas. Este era, e é ainda, o feijão-com-arroz do trabalho policial, pela simples razão de que os pobres não só são maioria, como têm mais necessidades prementes, precisam de menos fundos para obtê-las, e têm menos meios de defesa. Assim, o “pê” criminoso furta da residência do “pê” vítima, por esta não ter alarme nem cerca elétrica, um botijão de gás ou uma furadeira, que já lhe basta para adquirir a droga com que entorpece seu cotidiano.

A autoridade policial e judicial foi solapada e negada. O uso dela virou abuso.

Pois bem, a punição era simples: uma bela surra. Em caso de reincidência, uma surra muito maior. E se continuasse com gracinhas, a vala era o caminho do “pê” infrator. Para que se chegasse a ele, o trabalho de “investigação” criminal tampouco apresentava as sutilezas das investigações dos programas de TV. A sua ferramenta principal era a surra, e seus correlatos: o pau de arara, os choques elétricos e demais horrores, na linha tão bem cantada pelos Originais do Samba naquele magnífico compêndio de investigação criminal clássica brasileira, “Assassinaram o Camarão”: “vou dar um pau nas piranhas lá fora; vocês vão ver, elas vão ter que entregar”. Batendo-se em “pês” suficientes, era quase certo achar um que apontasse o “pê” autor do crime. Ou alguém que parecesse com ele.

O outro tipo de crime com que a polícia lidava era bem mais raro: o crime de classe média, ou seja, aquele em que não há “pês” envolvidos. Nestes a coisa era bem mais complicada. Afinal, ao contrário dos pretos, pobres e prostitutas do dia a dia, na pequena classe média de há quase oitenta anos a chance dos envolvidos conhecerem alguém influente ou serem filhos d’algo importante (“fidalgo” vem desta expressão…) era imensa. Assim, no caso de crimes de “pequena monta” (não pela lei, mas pela prática social: surrar a esposa até a coitada ter de ser internada seria um deles), a maior pena cabível seria algemar o meliante (de classe média, lembremo-nos) e desfilar com ele pela cidade, em um caminho longo e tortuoso, a pé, de sua residência à delegacia, exibindo-o aos olhos escandalizados de todos. Nos crimes graves, e só neles, aquele monte de fábulas constantes dos códigos seriam aplicadas, dando-se-lhe farta oportunidade de defesa, e por aí vai. Vide o caso Dana de Teffé, que para efeitos didáticos pode ser comparado com o de Eliza Samúdio.

Esta prática funcionava, para o que se propunha a fazer. Mas – felizmente – a sociedade mudou. Esta mudança, todavia, também foi influenciada por um evento raro, um verdadeiro desmanche de toda a prática policial, causado pelo surgimento dos criminosos políticos de classe média durante os governos militares. Alguns desses crimes políticos eram de pequena monta; por exemplo, as pichações contra o governo, que até hoje estão presentes nos códigos de rádio de várias polícias brasileiras. Outros eram bem mais sérios, como os roubos a bancos e mercados, sequestros, assassinatos, bombas, etc. A diferença no tocante à prática policial foi que não só os criminosos eram oriundos da classe média (“proletário”, na esquerda, sempre foi mosca branca, cabeça de bacalhau ou enterro de anão: tem que existir, mas cadê?), mas também tinham, pelo próprio fato de se oporem ao governo autoritário, abdicado informalmente de seus “direitos” de classe média. Ou seja: foram pro pau de arara. E pra vala.

Costumo dizer que é uma grande besteira isso de condenar “as torturas da ditadura”: afinal, só o que os governos militares fizeram foi democratizar os maus-tratos que sempre haviam sido infligidos aos três pês, passando a infligi-los também a quem havia sido criado a leite de pera. A Dilma apanhou exatamente como teria apanhado antes e durante os governos militares a copeira da mansão dos pais dela, se fosse pega assaltando bancos. Mais ainda: a grande vergonha dos governos militares, neste quesito, foi não ter aproveitado a ocasião única para treinar polícias investigativas e eliminar esses horrores, para todas as classes sociais.

Quando o pessoal de classe média que apanhou como se fosse preto, pobre ou prostituta chegou ao governo, com a redemocratização (outra burrice dos milicos: acabaram com a direita política honesta, que só agora vem tentando ressurgir), o trauma do pau que levaram ainda era forte e vivo. Assim começou toda essa coisa de Direitos Humanos, que em princípio é boa. Digo que é boa em princípio, porque quando se estende a toda a população uma lei formal que não foi feita para funcionar, a porca torce o rabo. E é o que se fez.

Somos todos, claro, plenamente a favor de que não haja abuso de autoridade. O próprio termo “abuso” já mostra que coisa boa isso não pode ser. Mas quando o simples uso da autoridade é visto como abuso, não há como se ter um mínimo de ordem social. Hoje, por exemplo, não dá mais cadeia usar drogas. Nenhuma droga. Crack, heroína, cocaína, maconha, chá de cogumelo, LSD, anfetaminas, tudo é enfiado pela lei num saco só, como se fosse a mesma coisa. Ora, não são a mesma coisa. Um viciado em crack ou em cocaína mataria a própria mãe sem pensar duas vezes para conseguir uma dose de droga. Já um maconheiro só mata a fome. E um usuário de, sei lá, mescalina, dificilmente vai querer usar a droga de novo em menos de um mês.

E também não dá mais nada furtar. Mesmo o furto qualificado (arrombando, escalando, tendo trabalho pra furtar, em suma) não dá nada. Para alguém ser preso por furto, o sujeito tem que furtar todo dia e ser pego todo dia pela polícia, durante um bom tempo, e mesmo assim a chance é pequena. O resultado é que os viciados sustentam o vício com furtos. Simples assim. Centenas, milhares de zumbis pulando muros e roubando botijas de gás e ferramentas de trabalho dos pobres, sem que a polícia possa fazer o que quer que seja, sem que a justiça sequer olhe para eles. Na prática, os belos Direitos Humanos acabaram criando esta situação.

A autoridade policial e judicial foi solapada e negada. O uso dela virou abuso. Um exemplo simples, presente não só no projeto ora em trâmite como já tornado na prática lei por uma súmula vinculante do STF há um tempinho é o uso de algemas. Para que servem algemas? Basicamente, trata-se de um instrumento preventivo. Elas servem para que o criminoso não faça coisas que possam ser perigosas ao policial condutor, a si mesmo (acontece, e muito!) ou a terceiros, e, claro, para dificultar sua evasão. A boa prática policial é que o uso de algemas seja o padrão: fez besteira, vai algemado pra delegacia, para o bem de todos e para garantir que chegue lá inteiro. Nos EUA algema-se até quem atravessa fora da faixa e não atende o policial que manda atravessar no lugar certo. É bem verdade que lá o erro é no sentido contrário, mas um meio-termo em que o infrator seja algemado a não ser que haja circunstâncias especialíssimas é factível. Segundo os varões de Plutarco que formam nosso STF e nosso Legislativo, todavia, o simples uso de algemas já é um abuso. Ora, abuso é declarar que o uso ordenado de algo é um abuso!

Nesse horror à autoridade policial e judiciária, fruto do trauma dos assaltantes de classe média que foram tratados como se fossem pretos, pobres ou prostitutas pela violência democratizada nos governos militares, encontra-se uma mentalidade semelhante à daquelas “sociedades pela temperança” americanas de cem anos atrás, que acabaram conseguindo fazer promulgar a Lei Seca, que proibia todo consumo de álcool. Pombas, é claro que um bêbado sem noção é um perigo para si e para os demais. Esta semana mesmo uma senhora assaz mamada subiu numa calçada em Copacabana, perdeu uma roda do carro na proeza e ainda saiu dirigindo por uma boa distância com três rodas, por cima da calçada. Por sorte ninguém se machucou, mas convenhamos que ela bebeu um tantinho demais para dirigir. Isso, contudo, não é razão para proibir toda bebida; quem bebe uma latinha de cerveja com o almoço não tem praticamente nada em comum com essa doida. Beber uma latinha com o almoço é o que se chama “temperança”. É o meio-termo ideal entre beber demais e não beber nada. Simples assim. Quando se confunde a temperança real com o horror desmedido ao álcool, todavia, tem-se a Lei Seca. Quando se confunde os reais direitos que todo ser humano tem (que incluem não ser torturado, evidentemente) com o horror desmedido à autoridade penal, tem-se a situação atual do Brasil.

Assim, esse péssimo projeto contra o uso da autoridade, confundindo o mero uso com abuso, tipificando como crime o que não o é, só por conta de traumas sofridos por esquerdistas uma geração atrás, não ajuda em nada os Direitos Humanos reais. Afinal, estes incluem o direito à propriedade – logo o direito a não ter suas ferramentas de trabalho roubadas por um viciado –, o direito à vida – logo o direito a não ser assassinado por conta de um celular –, etc.

O problema de base, todavia, continua. A lei foi feita para outro tempo e para outras práticas. Ao mesmo tempo, o Legislativo ainda está lotado de órfãos de Marighella, cheios de ódio e de asco à polícia que os tratou como se pretos, pobres ou prostitutas fossem (talvez por isso tenham feito um filme com um Marighella preto; Freud explica). A solução talvez fosse fazer, em escala menor, o que o Gen. Mourão sugerira, enfiando o coturno na boca como de hábito, numa entrevista antes da eleição. Ele disse que se poderia mandar um jurista escrever uma Constituição nova e simplesmente promulgá-la. Não é má ideia, certamente. Mas isso poderia e deveria ser feito com, pelo menos, o Código Penal e o Processual Penal atuais. Se se conseguir fazer isso passar pelo fã-clube do Lamarca que ainda ocupa tantas cadeiras no Legislativo, ou se houver alguma outra maneira de o fazer sem romper a ordem institucional, maravilha. O que não dá é pra ficar como está.

O abuso não tolhe o uso.

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