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O médium João de Deus está sendo investigado após denúncias de abuso sexual. Foto:Cesar Itiberê/Fotos Públicas
O médium João de Deus está sendo investigado após denúncias de abuso sexual. Foto:Cesar Itiberê/Fotos Públicas| Foto:

O triste caso do médium tarado de Goiás, que domina o noticiário do momento, diz mais sobre a natureza humana que sobre os pecados dele, ainda que sejam indubitavelmente muitos. É da natureza humana, mais ainda da natureza masculina, que a pulsão sexual por vezes seja forte ao ponto de fazer perder a cabeça. E é da natureza humana, tanto num quanto noutro sexo, que, quando se faz uma coisa errada uma vez e nada de prejudicial aconteça, imediatamente se a repita inúmeras vezes, cada vez mais confiante de que jamais se terá problema algum em decorrência daquilo, mesmo quando a própria lei das probabilidades indique que a chance de ser pego aumente exponencialmente com o passar do tempo e das vezes que se comete o crime. Juntando as duas fraquezas, temos a receita do desastre. E foi o caso.

Em alguns aspectos, o caso é semelhante aos muitíssimos casos de padres, pastores protestantes e rabinos que abusaram de seus discípulos espirituais. Vemos nele a mesma violação de uma confiança quase absoluta colocada por alguém que vê naquela pessoa um representante da Divindade, efetuada em benefício das mais baixas paixões do homem. Nada mais distinto do Divino que a sexualidade desordenada, precisamente por não haver nada tão próximo ao Divino quanto a sexualidade ordenada, tanto enquanto metáfora (pense-se no Cântico dos Cânticos) quanto na colaboração entre o homem criado e o Criador na concepção de uma nova vida no seio do casal, ou mesmo na perfeita castidade de um monge devoto.

Mas tal é o homem, marcado pelas consequências do Pecado Original (que, também, há de ser aceito mesmo pelo ateu ainda que como metáfora, para que se tenha clara consciência de como nos é mais fácil fazer o mal que o bem), que a vileza mais absoluta encontra um espaço livre para espalhar-se naquilo que deveria ser o mais alto chamado. Segundo a piada, Deus disse a Adão que tinha boas e más notícias. A boa seria a de que Adão seria dotado de um cérebro e um pênis, e a má, a de que só haveria sangue para um dos dois funcionar de cada vez. E é precisamente este o caso dos horrendos abusos perpetrados pelo médium. Era um pênis mandando num cérebro, acostumado pela longa impunidade e dela estar seguro.

Numa sala gigantesca cheia de desesperados, de pessoas aflitas pela doença em si ou no próximo, ele escolhia (ou escolhe! Está solto, afinal) a sua presa e a chamava a um quartinho, dizendo que lhe “abriria os chakras”. E o que abria nas pobres vítimas não era “chakra” algum. Violentava-as, sem lhes ver o rosto, com uma assistente presente no mesmo cômodo, mas de costas para a cena dantesca. Este último detalhe mostra como mesmo os cuidados que muitas vezes são tomados para evitar justamente esse tipo de coisa, por parte de organizações que se dão conta do que é a natureza humana, podem não funcionar. Ele não precisava ficar sozinho, pois tinha uma ou mais cúmplices caladas.

Só o que pode funcionar, e que regularmente funciona, é o oposto de medidas como essa. É entrar dentro de si, para procurar lá no fundo o que é verdadeiramente de origem divina, o que é verdadeiramente bom e respeitoso da dignidade do próximo, e cultivar essa semente lá plantada pela oração, pela penitência e pela caridade. É, em outras palavras, buscar fervorosamente a santidade. Quem busca a santidade pode cair, e muitas vezes cai. Cai, mas se levanta, com vergonha, sabendo que o que fez foi errado. E aos poucos as repetições se distanciam, e um belo dia aquilo pode ter ficado para trás. Dificilmente alguém que busca efetivamente a santidade se deixaria entrar numa espiral enlouquecida de libido desordenada como a do médium de Goiás.

A Igreja sempre colocou contra as desordens da libido barreiras efetivas, tão efetivas que até mesmo um de seus inimigos, o “frei” Betto, já disse que funcionam. São elas a custódia dos olhos (não demorar o olhar na beleza do sexo oposto), dos pensamentos (não se deixar ficar pensando nelas) e, finalmente, da carne (vestir-se modestamente, controlar os impulsos etc.). Isso, somado a uma vida de devoção e entrega a Deus, dá àquele que se Lhe consagra não imunidade, pois isso não existe enquanto estamos neste vale de lágrimas, mas simplesmente um foco mais preciso nas coisas do alto, que não se deixa cair e dominar tão completamente pelas paixões mais baixas. Quem assim vive não se entregará à luxúria como não se entregará à glutonia, e pela mesma razão.

Já quem se deixa levar, quem mergulha em delírios de grandeza (como se a todos não esperassem covas tão semelhantes!), quem se acha importante, importante o suficiente para “merecer” aquilo, como provavelmente era o caso do médium estuprador, esse está literalmente perdido. É o peso da nossa natureza que nos arrasta. Ao ver o médium, devemos pensar não que ele é um monstro, mesmo que ele o seja, mas que nós mesmos temos em nós o potencial para sermos tão monstruosos quanto. O que nos afasta de estuprar em série mulheres e mocinhas não é uma suposta superioridade moral nossa, mas o nosso cuidado atento e permanente, somado à falta de um ambiente propício a isso.

Não estou dizendo que todo suposto milagreiro seja estuprador, mas digo, sim, que isso certamente é para eles uma tentação muitíssimo maior que para nós outros, que não somos procurados por milhares de pessoas que nos veem como sua tábua de salvação. Sem uma entrega real a Deus, sem uma vida de oração, sem custódia de si mesmo, nas condições em que ele se encontrava, é quase impossível evitar que se cometa este ou outros pecados. Duvido, por exemplo, que o mesmo estuprador não seja podre de rico a esta altura do campeonato e não coma apenas coisas refinadas e caras, e foi por ter acesso ao que ele tinha mesmo independentemente do dinheiro, entre outras coisas, que o Cristo declarou ser mais difícil um rico entrar no Reino dos Céus que um camelo passar pelo buraco de uma agulha. O sentido da parábola é claro: trata-se de um evento miraculoso, de uma intervenção divina direta, que pode possibilitar a alguém que viva cercado de tentações ascender aos Céus. Sem isso, não há esperança. Dinheiro algum abriria as portas do Céu.

O espiritismo tem em si o problema de não entender como se opera a tentação, de não perceber o que é a natureza humana e acreditar numa suposta “evolução” através de várias pessoas diferentes que em comum só teriam (sem o saber) um “espírito” que iria aos poucos melhorando. Um sujeito como o tal médium, evidentemente, sempre em contato suposto com “espíritos de luz”, seria mais “evoluído” que o vulgo.

Ora, Lúcifer também é puro espírito, espírito de luz (daí o seu nome, aliás), e era o mais belo, o mais “evoluído” de todos quando caiu. Quanto mais nós, seres humanos! Mesmo santos evidentes, como o Padre Pio, viviam de modo a minimizar as tentações e facilitar o combate a elas. Não por serem covardes, mas por saberem, e melhor que nós outros, o que elas realmente são. Veja-se o quarto de Padre Pio ou o de Santa Teresa. Não é à toa que são ditos “celas”. São efetivamente lugares para calar a voz das paixões mais baixas, permitindo assim que a pessoa se dedique ao que é realmente bom. E é isso que nós, na medida em que vivemos num ambiente péssimo, numa sociedade hipersexualizada e mesmo abertamente depravada, devemos fazer: penitência, oração e caridade. Buscar a santidade, no matrimônio ou fora dele. Viver a castidade de acordo com nosso estado. Orar e vigiar. Sem isso, o caminho que o médium percorreu é o nosso. Sem isso, da cela em que ele certamente há de estar em breve, ele pode nos dizer “eu sou você amanhã”.

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