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Ministros do STF ajudaram a anular processos contra Lula e endossaram inquérito das fake news.| Foto: Nelson Jr./STF

Costumo dizer a meus amigos advogados que seu papel social é semelhante ao de um Chico Xavier desses aí. Assim como o finado peruquista dizia ter o dom de conversar com gasparzinhos e quiçá convencê-los a não incomodar as pessoas reais, os advogados têm o dom de não apenas entender, como agir naquilo que para o brasileiro médio é um mundo invisível e incompreensível, o mundo da Lei. Longe de ser o famoso “mínimo moral” da fantasia rabulesca, a legislação brasileira, assim como as instituições que a criam e preservam, habita um plano invisível e incompreensível de existência. A ordem social e a legislação positiva tocam-se apenas raramente; no mais das vezes, aliás, a legislação positiva tupiniquim atenta contra a ordem natural. Não invejo os delegados de polícia, cujo dificílimo ofício é transportar do mundo da ordem social para o castelo de cartas da legislação os males perpetrados por elementos antissociais. Afinal, se o pobre delegado não conseguir encontrar uma correspondência entre aquilo que motivou a população a chamar a polícia e alguma proibição legal, o fantasioso sistema jurídico brasileiro nada poderá fazer em prol de uma ordem social que propositadamente ignora.

O tal “Estado de Direito”, quimera indispensável da era moderna, é no Brasil pouco mais que a polida atenção prestada aos delírios senis de um idoso respeitado. Só existe “Estado de Direito” no rarefeito mundo da burocracia estatal, de que a maior parte dos brasileiros foge como o diabo da cruz, e olhe lá. Mesmo lá, ainda, vale muito mais que a lei positiva o famoso adágio “aos amigos tudo; aos inimigos a lei”. Não se trata (apenas) de engessar os inimigos pela judiciosa exigência de gincanas burocráticas; a lei serve para atazanar, chatear e mesmo punir os inimigos por atos que em nada ferem a ordem social, mas que os fizeram incorrer no desprazer dos poderosos.

Mesmo assim, ao menos no discurso para inglês ver das autoridades persiste a fantasia. Ou persistia. Afinal, o sacerdócio máximo da idolatria do diploma legal é o Supremo Tribunal Federal. Ninguém depende mais da persistência dessa superstição que os 11 bátimas, cujo papel maior é dar a impressão de haver no país o tal Estado de Direito, a sensação de a legislação positiva ser o mínimo moral, a percepção de ter tal lei aplicação universal. Este é seu papel. Não, porém, como é o papel dos pais educar os filhos, sim como é de pai de família o papel do ator tal em taloutro filme. Ou de homem-morcego. Não se trata de dever moral imediato, mas de participação numa representação coordenada com a do Executivo e com a do Legislativo. Uma vasta peça para inglês ver, em que o interesse pessoal de cada ator leva – ou deveria levar – a um desempenho conjunto que pode não valer o Oscar, mas mantém em funcionamento a ficção de termos aqui o tal Estado de Direito. Sem o qual, diga-se de passagem, estariam todos desempregados ou ao menos forçados a algum trabalho produtivo para pagar os famosos boletos.

Apenas um constitucionalista “mais louco que o Bátima” assumiria simultaneamente as funções de vítima, acusador e juiz

O Homem-Morcego original, dos quadrinhos e filmes, pode ser acusado de muita coisa, mas jamais de sensatez. Parece ser este também o caso dos êmulos brasilianos de sua alfaiataria, ao menos a julgar pelo fogo de rajada que vêm dirigindo aos próprios pés. Apenas um constitucionalista “mais louco que o Bátima” assumiria simultaneamente as funções de vítima, acusador e juiz, e apenas no fundo da mais escura caverna seria possível encontrar tantos outros morcegos prontos a assinar embaixo de tal loucura.

O vetor da doença, diria eu, é aquele identificado pelo Lorde Acton: “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe por absoluto”. No vácuo de poder de uma presidência fraca, os quirópteros planaltinos atiraram-se com sofreguidão à busca de uma ampliação de seu poder de fato, ainda que às expensas do seu poder de direito. E o poder é uma bebida que sobe rápido à cabeça; tão rápido, que os maiores interessados na manutenção do teatrinho de Estado de Direito tupiniquim são quem mais o sabota. Mais ainda, até: é tamanha a esganação com que se apropriam do poder que mal percebem tanto o perigo de serrar o galho em que se está sentado quanto os corolários outros de suas ações. Afinal, quando as urnas levaram o bolsopresidente ao poder foi-lhe imposto pelos militares um tutor fardado como vice. A razão é evidente: se eles confiassem nele, teríamos hoje um general Bolsonaro, não um presidente de tal nome.

As ações a cada dia mais delirantes do pessoal que divide a praça com o Congresso e o Executivo, no entanto, têm conseguido conduzir o oficialato superior da ativa e o capitão da reserva a uma reaproximação inaudita. Não se trata apenas dos atentados contra a superstição moderna, de que há ainda verdadeiros crentes nas Forças Armadas, mas também da percepção cada vez mais clara de que eles estão apostando, numa tremenda confusão filogenética, no Molusco. Não é possível saber se se trata de adesão ideológica, de sei lá que interesses, ou da ilusão de poder controlar os nove tentáculos do Kraken tupiniquim. O fato, contudo, é que um presidiário justissimamente condenado foi tirado pela mão de seu habitat natural e judiciosamente colocado na linha de partida da próxima eleição presidencial.

Ao mesmo tempo, pour encourager les autres, pega-se um pobre parlamentar e – rasgando não apenas a legislação positiva, da Constituição para baixo, como a própria teoria da divisão tripartite de poderes – se o pune com prisão fechada por suposto delito de opinião. Prende-se o parlamentar por ser um parlapatão; presume-se que se executará exemplarmente o Executivo, e há quem diga que se há de justiçar um juiz por ter julgado justamente.

Ora, temos todos direito inalienável à imbecilidade, direito fartamente gozado pelo paparrotão parlamentar – e, no caso de um parlamentar, cuja função é justamente a parlenda, vai ainda mais longe tal direito. “Ora”, diriam os defensores da discricionariedade desprovida de delimitações, “ele ameaçou, rugiu, bufou e clamou pelo AI-5”. Que seja; como disse, é o usufruto do direito à imbecilidade. O que ele fez, contudo, foi proferir parvoíces e palermices. Ninguém o acusou de contratar matador ou sequer chamar um ministro para “resolver isso no braço lá fora”, e – convenhamos – a distância entre o bobalhão em questão pedir outro AI-5 (que ele nem deve saber direito o que foi) e conseguir provocá-lo é maior que a que o separa do amor da mais bela atriz de Hollywood. Já os Homens da Capa Preta (© São Cipriano e Tenório Cavalcante) o humilharam, prenderam e expuseram; tudo no mundo real, não no mero gogó. Seu objetivo, ao escolher para punir tão patético paspalho, foi dar um recado “a quem interessar possa”: “Conosco ninguém fodosco!” Ao quê, previsivelmente, uma voz tornada gutural pelo longo silêncio subiu da caserna, perguntando “ah, é?”...

Surgiu então o mais inesperado dos defensores do Estado de Direito, montado num cavalo branco ou quiçá numa motoca: o bolsopresidente, que concedeu a seu pobre êmulo a graça de livrá-lo do povo da caverna. A esquerda, furibunda, imediatamente inundou de argumentos falaciosos a caixa de entrada do Supremo, que – ironicamente – ainda teria, no tal Estado de Direito, a função de executar o édito do Executivo. Temer, de novo, acorreu com farta quantidade de panos quentes, mas o bolsopresidente desta vez manteve-se firme, até por ter ouvido a voz das casernas e saber que nisso tem seu apoio. Em outras palavras, só defende o direito positivo quem tem as costas quentes, coisa bastante alheia à superstição moderna do tal Estado de Direito.

As ações a cada dia mais delirantes do pessoal que divide a praça com o Congresso e o Executivo têm conseguido conduzir o oficialato superior da ativa e o capitão da reserva a uma reaproximação inaudita

Ao longo de toda essa novela – ou parlenda –, o silêncio do Legislativo foi ensurdecedor. Deveriam ser eles os maiores interessados em garantir o direito dos parlamentares à parlapatice, mas assim como o poder subiu à cabeça de uns a debilidade desceu às gônadas de outros. Ouviu-se um que outro sussurro daquele lado, mas só. Após o golpe decisivo com que a bolsoespada cortou de forma totalmente inesperada por todos o nó górdio tecido e amarrado pela empáfia elevada à undécima potência, todavia, ao procurar no bolso os óculos encontraram os parlamentares a gonadia perdida. O presidente da Câmara já declarou que quem pode decidir pela perda de um mandato é o Congresso, não a sobrançaria de quem não entendeu ser em seu caso relativo o adjetivo “supremo” e absoluto o sentido etimológico de “ministro”. Mais de 50 parlamentares já assinaram projeto que perdoa – além do coleguinha cavalheirescamente resgatado da boca do lobo – todas as demais vítimas da sôfrega sede de superioridade do insolente ex-constitucionalista. Em ato da mais fina ironia, o resgatado foi nomeado membro titular da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde terá por função fazer no âmbito parlamentar aquilo de que abdicou no geral um STF mordido pela mosca azul. Tornou-se ainda ele vice-presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.

O infame eneadáctilo estuprador dos cofres públicos, libertado contra a lei e contra a moral, resmungou roufenho que seria “estúpido” e “medíocre” o bolsossalvador do deputado. Repito: o mesmo sujeito que protegeu, apaniguou e perdoou um terrorista sanguinário e devolveu às garras de Fidel dois honestos atletas que tentaram fugir no Brasil de seu feitor vituperou quem fez justiça.

Enquanto isso, na sua bolha de mármore de Carrara, os ministros ainda se creem possuidores do poder que se arrogaram. Deram prazo de dez dias para que o salvador de sua vítima “se explique” acerca do ato de justiça que perpetrou. À sua vítima, como um ex-cônjuge psicopata que cobra obediência de quem lhe escapou aos murros, deram prazo de 48 horas para “explicar” por que retirou a humilhante tornozeleira eletrônica que lhe impuseram. Seu advogado sobejamente já o fez: ele “é um homem livre e não usa tornozeleira”. Ameaçaram, ainda, negar validade à graça presidencial, como se de direito ou de fato pudessem fazê-lo. Pergunta-se, então: onde está o maior perigo – não apenas às fábulas positivistas, mas à própria convivência pacífica dos poderosos, mais que dos poderes – a não ser ali, à direita do Congresso, na mesma praça erigida pelo suor dos candangos?

A esta altura do campeonato, o golpe de mestre do bolsoalforriador certamente lhe há de ter valido vitória quase certa na próxima eleição. O efeito eleitoral de sua demonstração pública de hombridade não chega a ser comparável ao da facada com que a esquerda, querendo matá-lo, garantiu-lhe a vitória, mas também neste quesito foi uma ação magistral. Não “ministral”. Os resmungos do ex e provavelmente futuro presidiário demonstram que acusou o golpe.

Por mais forte que tenha sido o soco, contudo, os adversários do Brasil e – num distante segundo lugar – do bolsopresidente ainda não beijaram a lona. Aquém de um golpe militar, que só um fanfarrão como o careca bolsoarrancado das garras doutro pode realmente desejar, o que pode ser feito? A melhor pedida seria, a meu ver, a que se atém às regras do jogo: o impeachment pelo Senado – e no atacado. Todas as questões políticas deveriam ser rejulgadas, da escandalosa proteção ao criminoso-mor à perseguição de inocentes por supostos crimes de opinião.

O fato maior de tudo isso, entretanto, é que mesmo após o bolsorresgate aos 47 minutos do segundo tempo a única vítima de tudo isso no momento presente é um tal de Estado de Direito. Vítima hipossuficiente, desconhecida por estas bandas, sem parente, sem amigos; dificilmente virá a ser salva.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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