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J. K. Rowling
J. K. Rowling no RFK Ripple of Hope Awards de 2019, em Nova York, em 12 de dezembro de 2019.| Foto: Dia Dipasupil/Getty Images/AFP

Três eventos bobos, tão bobos que o que mais chama a atenção é a sua insignificância, uniram-se nos meus distorcidos miolos numa demonstração que me parece evidente dos tempos que correm. O primeiro foi um desses acontecimentos que só têm importância para algumas pessoas; quase uma festa familiar, poderíamos dizer. Trata-se de uma colação de grau, uma reminiscência medieval que ainda assombra aqueloutra reminiscência medieval que são as universidades. O segundo foi ainda mais evanescente, se podemos assim dizer: as reações a um tuíte por sua vez reativo a uma situação kafkiana que ocorreu na Inglaterra. A terceira é uma dessas medonhices ultraviolentas que vêm acontecendo, apavorante tanto pelo feito, como pelo contra quem foi feito, bem como pelas palavras ditas pelos agressores e as reações dos envolvidos, mas de que, em última instância, entre mortos e feridos salvaram-se todos.

Umas criancinhas estavam fazendo um “presépio vivo” numa praça na França, praça aliás dedicada a São Jorge. Havia uns cordeirinhos e um burrico de verdade, levados por uma fazenda em que desempregados são capacitados para o trabalho. Uma boa meia-dúzia de corais se apresentaria, tudo para celebrar o nascimento d’Aquele que mandou o jovem rico vender tudo o que tinha e dar o dinheiro aos pobres, d’Aquele que disse que seria mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus. D’Aquele que não tinha uma pedra onde repousar a cabeça. Pois bem, uma récua de coisa de cinquenta boçais vestidos de preto e mascarados irrompeu, berrando serem “os anticapitalistas” e mandando “dar um basta aos fascistas”. Escarraram nas crianças e avançaram contra os corais. O presépio e a apresentação musical, compreensivelmente, foram dissolvidos. O Arcebispo lamentou o ocorrido, e só. Não houve quem defendesse as crianças e os cantores, não houve quem enfrentasse os atacantes. Faltou um São Jorge para dar cabo dos camisas-negras que fizeram as vezes de dragão.

Já na Pérfida Albion, a autora de Harry Potter defendeu num tuíte uma moça que foi demitida de seu serviço por afirmar a obviedade gritante de que a humanidade é binariamente dividida em dois sexos, e que nem reza braba pode mudar tal condição. O Judiciário inglês não a ajudou, afirmando que tal “opinião” não estaria dentre as que o direito de livre expressão e crença protege(!).

Na colação de grau, por sua vez, numa universidade federal de Humanas, os alunos quase todos bradaram “Lula Livre!”, como se o molusco em questão já não tivesse recuperado no tapetão o direito legal de ir e vir, soltando para isso milhares de outros facínoras pelas ruas. Os poucos formandos que não se alinham com a extrema-esquerda calaram-se, por medo. O máximo que houve foi um orador que notadamente não bradou em defesa do meliante em questão, e foi por isso vaiado por seus fãs. Não houve, como eu torcera para haver, sabedor que já era de que haveriam brados moluscófilos, um gritinho que fosse em defesa de Cristo Rei, ou ao menos do retorno do ora errante eneadáctilo a sua justa condição anterior de presidiário.

O que isso tudo tem em comum, e que se cristalizou na minha pobre mente de bêbado contumaz, é como os estertores da Modernidade – em cujo vigor nada havia de mais comum que a perseguição brutal e maciça aos “heréticos”, como soube na carne qualquer defensor da nobreza ou do clero na França do Terror, do povo judeu na Berlim nazista, da livre iniciativa privada na Moscou comunista ou do comunismo na Nova Iorque capitalista – unem-se aos delírios da Pós-Modernidade. A diferença primeira, mais grave e crucial, entre estas fases do mesmo fenômeno de negação sistemática da realidade é que enquanto a Modernidade contava com as multidões, criando sempre uma massa crítica de seguidores composta de jovens completamente acríticos e dispostos a tudo ceder ou fazer em prol de uma ideia comum, a Pós-Modernidade é primordialmente individualista. “Cada cabeça uma sentença” seria uma forma de expressar este individualismo radical, que faz com que seja possível negar coisas tão ululantemente óbvias quanto a esfericidade da Terra ou a binaridade dos sexos.

Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, resta ainda bastante Modernidade no ar para que exista ainda uma crença – modernamente delirante – na construção da realidade, do tão falado “mundo melhor”, operada pelo cale-a-boca de alguma forma institucionalizado. Em outras palavras, habitantes de bolhas – coisas que pela sua própria natureza são efêmeras e frágeis –, incapazes de perceber que sua bolha não só não engloba gente bastante para dar rumos ao que quer que seja, que dirá para “construir um mundo melhor”, acham-se no direito, que os fascistas de outrora baseavam na força real, de calar o Outro.

É enorme a diferença entre uma massa crítica e uma bolha. Aquela só tem como piorar, só tem como crescer em força e em poder destrutivo. Já uma bolha só tem como se dissolver; a bolha de hoje é tão diversa da bolha de ontem quanto o são galhos diferentes duma mesma árvore. Assim, a bolha, digamos, dum admirador de Obama terá passado em poucos anos da noção de que duas pessoas do mesmo sexo não têm como casar-se a admitir tal tolice e, mais tarde um pouco, a defender com unhas e dentes que basta uma pessoa declarar-se pertencente ao sexo oposto para que, num ato de mágica instantânea, tão impossível transformação se opere. Os membros da bolha são mais ou menos os mesmos, ainda que os laços que os unem sejam não só tênues como essencialmente diversos do credo do momento na bolha.

Quando uma canzoada de 50 fascistas do século passado avançava contra inocentes, eles tinham por trás algumas centenas de milhares de outros boçais revestidos da mesma camisa negra. Já os de hoje, que para provar a própria imbecilidade dizem-se “antifascistas”, são só aqueles que ali estão e pouco mais. Se cinquenta ou cem antifascistas de verdade resolvessem mostrar para eles que respeito é bom e preserva os dentes, eles voltariam pra casa com a viola no saco e alguns hematomas em lugares seletos. Não há massa crítica por trás deles, nem possibilidade de haver. Os pais presentes na palhaçada molusquista da colação de grau que descrevi, do mesmo modo, estavam furibundos com a súbita compreensão de que seus filhos passaram quatro anos tendo a mente sistematicamente estuprada para que se reduzissem a comezinha massa de manobra de estelionatários políticos. Imagino que a maior parte dos amigos dos formandos também tenha tido uma boa dose de revolta com a demonstração de inanidade mental de gente que prezam.

A multidão virtual que chorou pitangas por conta do apoio simbólico (uma rechitegue num tuíte?!) dado pela escritora à vítima dum Judiciário enlouquecido também não sai dos domínios da virtualidade. Tal como um cardume de piranhas, eles se deslocam de dissenção em dissenção, atacando, atacando sempre, e gritando seus slogans e delírios do momento. A sensação de enorme presença virtual dos delirantes acontece apenas por sua enorme capacidade de criar em si indignação contra quem prega que dois mais dois são quatro, de modo semelhante ao de uma criança que consegue chorar quando quer, para tornar mais efetiva a sua birra.

Agora vejam bem os senhores como a coisa é completamente delirante: não se trata mais de juntar um país inteiro na crença monolítica em uma determinada utopia a construir. Isto, pelo menos, ainda carregava uma medida de verossimilhança proporcional à factibilidade da utopia. Juntando-se uns milhões de jovens idiotizados dá pra, sei lá, matar todos os proprietários de terras, ou sei lá que condição absurda e genocida aquela ideologia utópica específica demandava. Mas agora não são mais milhões, nem têm eles sequer como ter a esperança de juntar tanta gente. São, ao contrário, bolhas ridiculamente ínfimas (os formandos de Humanas reunidos “construindo um mundo novo”? Sério?!), quase sem comunicação com as demais pessoas (o que evidentemente prejudica tremendamente a sua capacidade de arrebanhamento de adeptos), mas via de regra ultraviolentas, investindo contra toda expressão que lhes chegue ao conhecimento dos aspectos da realidade que não se coadunam com seu delírio particular.

Não se trata mais de “construir um mundo melhor”, mas de destruir a expressão dos elementos remanescentes do mundo anterior (leia-se da realidade factual), quando expressos de tal maneira e em tais meios que cheguem aos ouvidos dos habitantes da bolha. É coisa pontual, caso a caso, e no fim das contas bastante rara, justamente por estarem eles numa bolha, sem falar com mais ninguém. De vez em quando habitantes dessas bolhas conseguem chegar a cargos de mando, onde podem criar problemas mais graves, como foi o caso da injustiça judiciária contra a qual a escritora protestou debilmente. Continuam, porém, numa bolha. Ela pode se expandir, como quando os professores duma universidade garantem que só sejam empregados habitantes da mesma bolha, preferencialmente tendo toda a formação deles sido dirigida pelos mesmos sujeitos que decidem se lhe darão o emprego. O mesmo ocorre em concursos para juiz ou promotor. Mas continua sendo uma bolhazinha ridícula, dissociada do mundo lá fora, minoritária e completamente incapaz de se tornar um dia majoritária, que dirá consensual.

O que tende a vir a ocorrer é a formação de contra-bolhas, de antifascistas reais que cacem antifas pelas ruas das cidades, ou imbecilidade semelhante. Em suma, pancadaria generalizada. Comentando sobre este texto com meu filho, ele me contou que uma amiga feminista apanhou feio (fisicamente) num “coletivo” feminista de que faz parte por não aceitar que rapazes de vestidinho de chita sejam moças. Já houve pequenas batalhas campais, aliás, entre feministas por esta mesma razão, por esta mesma dissensão de diagrama de Venn.

Isto, senhores, é mais um sintoma duma dissolução social terminal. Tentaram, por quase duzentos anos, criar sociedades de cima pra baixo, baseando-se na ideia estúpida de que as leis construiriam, ao invés de refletir, a sociedade. Ora, leis são descobertas, não criadas. “Não matarás”, “2 + 2 = 4”, “dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e inversa do quadrado da distância” e “a espécie humana é dividida em dois sexos opostos e complementares” são apenas reflexos dum mesma e única realidade. Agora nem isso. Bastam os punhos de cinquenta boçais, ou a caneta de um idiota terminal assentado em alto posto, para que os delírios utópicos se façam perceber de modo ultraviolento, sem, contudo, jamais conseguir dominar a realidade, tão maior que eles. É por isso que o Brasil elegeu um meme que poderia ser trocado por um taxista aleatório sem qualquer prejuízo. É por isso que o Brexit avança. É por isso que sempre digo que a supostamente terrível batalha entre globalistas, eslavistas e neoconservadores é uma luta pelo leme do Titanic afundando.

A realidade, amado leitor, persiste. E após duzentos anos de uso de óculos pintados de preto ou cor-de-rosa, ela vem se afirmando. Daí a reação desesperada de utopistas em seus estertores: como ratos encurralados, só sabem atacar. Perdoai-os, Senhor, pois eles não sabem o tamanho da burrada em que estão metidos.

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